quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

A UMA MULHER QUE SENDO VELHA SE ENFEITAVA, de Dom Tomás de Noronha

 



Escuta, ó Sara, pois te falta espelho

Para ver tuas faltas,

Não quero que te falte meu conselho

Em presunções tão altas;

Lembro-te agora só, que és terra, e lodo,

E em terra hás de tornar-te deste modo,

Mas não te digo, nem te lembro nada,

Porque há muito, que em terra estás tornada.

 

Que importa, que algum tempo a prata pura

De tuas mãos nascesse,

E que de teus cabelos a espessura

As minas de ouro desse,

Se o tempo vil, que tudo troca, e muda,

Somente de ouro pôs por mais ajuda

Em tuas mãos de prata o amarelo,

E a prata de tuas mãos em teu cabelo.

 

Se um tempo foram de marfim brunido

No século dourado,

Não vês, que o tempo as tem já consumido?

Não vês, que as tem gastado?

Deixa, Senhora, deixa os vãos enredos,

Pois quando toco teus nodosos dedos,

Me parece, que apalpo sem enganos

Cinco cordões de frades Franciscanos.

 

Viciando a natureza com tuas tintas,

Com pincéis delicados

Jasmins, e rosas em teu rosto pintas,

Deixa estes vãos cuidados,

Que quanto mais tua cara se alvorota

Máscara me pareces de chacota,

E se sem tintas, cuido neste passo

Que esta máscara está em calhamaço.

 

Como pretendes pois com mil enganos

Vestir mil primaveras,

Se passou a primavera de teus anos?

Como não desesperas,

Se o tempo te pôs já no Inverno frio,

Aonde toda fruta perde o brio?

Parecendo teu rosto, e porque enfada,

Fruta, que se secou, noz arrogada.

 

Se feitura de Deus Eva não fora,

Dissera sem porfias

Que de Eva foste mãe, velha senhora,

Pois te sobejam os dias

Para esta presunção, que agora tenho;

E concluindo enfim, a alcançar venho,

Pois alcançar não posso a tua idade,

Que deves de ser mãe da eternidade.

 

Parece que teus olhos por consciência

A idade os tem metidos

Em duas lapas fazendo penitência;

E estão tão escondidos,

Que quando os vou buscar, porque me choram

Não acerto com o beco, onde moram,

Porque o tempo os mudou seu passo, e passo

Da flor do rosto lá para o cachaço.

 

Se a meus olhos despida te ofereces,

Minha alma logo pasma,

E estética nos ossos me pareces,

Ou quando não fantasma;

E assim, senhora, se te vejo em osso,

Com essa cara posta em tal pescoço,

Me pareces, tirada a cabeleira,

Em cima de um bordão uma caveira.

 

Como ainda queres em desatinos

Dar a meninos mama:

Se já contigo desmamei meninos?

Deixa essa torpe fama,

Sabe que sei (e disto não me gabo)

Que te alugou sem dúvida o diabo,

Invejando teu corpo, cara, e dedos

Para fazer a Santo Antão os medos.

 

Deixa, senhora, deixa o vão cuidado,

A sagrado te acolhe,

Primeiro que te ponham em sagrado;

Este conselho escolhe,

Admite o que te digo sem desgosto,

Que eu quando vejo teu funesto rosto

Já também dele o seu conselho tomo,

Porque mudo me dá Memento homo.

 

 

(Fénix Renascida, V)

 

(Ilustração: Anthony van Dyck (1624) - portrait of Sofonisba Anguissola)

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