domingo, 4 de fevereiro de 2024

O PESADELO DA LEGENDÁRIA CANTORA POPULAR VINA APSARA, de Salman Rushdie




"No Dia dos Namorados de 1989, último dia de sua vida, a legendária cantora popular Vina Apsara acordou chorando de um sonho em que era a vítima de um sacrifício humano. Homens de torso nu, parecidos com o ator Christopher Plummer, prendiam-lhe os pulsos e tornozelos. Estava estendida, nua, se retorcendo, em cima de uma pedra polida entalhada com a imagem do pássaro-serpente Quetzalcoatl. A boca aberta da serpente emplumada circundava uma reentrância escura da pedra, e embora sua própria boca estivesse escancarada, gritando, o único barulho que ouvia era o espoucar de flashes; mas antes que pudessem cortar sua garganta, antes que sua vida borbulhasse para aquele cálice terrível, ela acordou, ao meio-dia, na cidade de Guadalajara, México, numa cama desconhecida, com um estranho meio morto a seu lado, um mestiço nu de pouco mais de 20 anos, identificado pela interminável cobertura da imprensa posterior à tragédia como Raúl Páramo, o playboy herdeiro de um conhecido barão da construção civil local, dono, entre outras, da empresa que possuía o hotel.

Tinha suado muito e os lençóis ensopados recendiam ao vazio sem sentido daquele encontro noturno. Raúl Páramo estava inconsciente, a boca branca, o corpo sacudido, a cada poucos minutos, por espasmos que Vina reconheceu idênticos ao seu retorcer do sonho. Momentos depois, ele começou a fazer uns barulhos assustadores com a traqueia, como se alguém estivesse lhe cortando a garganta, como se seu sangue fosse escorrer pelo sorriso escarlate de uma ferida invisível para dentro de um cálice fantasma. Em pânico, Vina saltou da cama e agarrou as roupas, a calça de couro e o bustiê de lantejoulas douradas com que, na noite anterior, tinha encerrado sua apresentação no palco de um centro de convenções da cidade. Arrogante, desesperada, entregara-se a esse joão-ninguém, a esse menino com menos da metade de sua idade, pescado, mais ou menos ao acaso, da multidão de trás do palco, os conquistadores de sala de espera, os admiradores caprichados com buquês de flores, os magnatas da indústria, os aristotrastes, os reis da droga, os príncipes da tequila, todos com limusines e champanhe e cocaína e talvez até diamantes para oferecer à estrela da noite.

O sujeito se apresentou, exibido, abanando o rabo, mas ela não queria saber nem o nome dele, nem o tamanho de sua conta bancária. Colheu-o como se fosse uma flor que queria prender entre os dentes, como se fosse uma refeição para viagem, e alarmou-o com a ferocidade de seus apetites, porque começou a devorá-lo assim que a porta da limo se fechou, antes mesmo que o chofer tivesse tempo de levantar a divisória que garantia a privacidade dos passageiros. Depois, ele, o chofer, falou com reverência de seu corpo nu e, quando os jornalistas o dobraram com tequila, murmurou coisas sobre aquela nudez possessiva e predatória como se fosse um milagre, quem diria que já passou dos 40, acho que alguém lá em cima queria que ela ficasse sempre do jeito que era. Eu faria qualquer coisa por uma mulher dessas, gemeu o chofer, dirigia a 200 por hora se ela quisesse velocidade, batia numa parede de concreto se o desejo dela fosse morrer.

Só quando saiu para o corredor do décimo primeiro andar do hotel, semivestida e confusa, tropeçando nos jornais não recolhidos, cujas manchetes sobre testes nucleares franceses no Pacífico e inquietação política na província sulista de Chiapas mancharam as solas de seus pés descalços com o gemido da tinta, só então ela entendeu que o apartamento que tinha deixado era o seu mesmo, que havia batido a porta e estava sem a chave, e foi sorte dela, naquele momento de vulnerabilidade, topar com uma pessoa que era eu, mr. Umeed Merchant, fotógrafo, apelidado "Rai", seu camarada, por assim dizer, desde os velhos dias de Bombaim, e o único fotógrafo num raio de mil e um quilômetros que nem sonharia em fotografá-la num tal estado adorável e escandaloso, todo o seu ser momentaneamente fora de foco, e, pior ainda, aparentando a idade, o único ladrão de imagens que nunca roubaria dela aquele ar assustado e perseguido, aquele desamparo congestionado e indiscutivelmente empapuçado, o chafariz embaraçado dos cabelos ressecados, tingidos de vermelho, sacudindo num topete de pica-pau, a boca adorável tremendo, insegura, com os pequenos fiordes impiedosos dos anos descendo, fundos, pelos cantos, o próprio arquétipo da louca deusa do rock a meio caminho da ruína e da desolação.

Ela decidira ficar ruiva para essa turnê porque à idade de 44 estava começando de novo: uma carreira solo, sem Ele, pela primeira vez nos muitos anos em que estava na estrada com Ormus, de forma que não era mesmo de surpreender que ela ficasse desorientada, desequilibrada quase o tempo todo. E solitária. Não tinha como não admitir. Vida pública ou vida privada, não faz diferença, esta é a verdade: quando ela não estava com ele, não importava com quem estivesse, estava sempre sozinha.

Desorientação: perda do Leste. E de Ormus Cama, seu sol.

E não era só pura sorte ela topar comigo. Eu estava sempre ali, à sua disposição. Sempre cuidando dela, sempre à espera de seu chamado. Se ela quisesse, haveria dúzias como eu, centenas, milhares. Mas acho que era só eu. E da última vez que me pediu socorro eu não pude atender, e ela morreu. Encerrou no meio a história de sua vida, uma canção inacabada, abandonada na ponte, roubada do direito de acompanhar a letra de sua vida até a rima final e plena.

Duas horas depois que a resgatei do abismo sem fundo do corredor do hotel, um helicóptero nos levou para Tequila, onde don Ángel Cruz, dono de uma das maiores plantações de cacto agave azul e da famosa destilaria Ángel, um cavalheiro famoso pela amplitude de sua voz de contratenor, pelo volume da barriga e pela generosidade de sua hospitalidade, ia oferecer um banquete em homenagem a ela. Enquanto isso, o playboy amante de Vina tinha sido levado para o hospital, vítima de uma taque induzido por drogas que, de tão grave, acabou sendo fatal, e durante os dias seguintes, por causa do que aconteceu com Vina, o mundo recebeu análises detalhadas do conteúdo da corrente sanguínea, estômago, intestinos, escroto, órbitas, apêndice, cabelos do morto, na verdade de tudo, menos do cérebro, que não devia conter nada de interessante, e estava tão completamente diluído em narcóticos a ponto de ninguém entender suas últimas palavras, proferidas durante o delírio comatoso final. Alguns dias depois, porém, a informação chegou à Internet, onde um tarado por ficção fantástica de apelido elrond@rivendel.com, transmitindo do bairro Castro de San Francisco, explicou que Raúl Páramo estava falando orcish, a língua infernal inventada pelo escritor Tolkien para os criados do Senhor do Escuro Sauron: Ash nazg durbatutûk, ash nazg gimbatul, ash nazg thrakatulûk agh burzum-ishi krimpatul. Depois disso, os boatos sobre práticas satânicas, talvez saurônicas, espalharam-se incontrolavelmente pela rede. O que circulava era que o amante mestiço seria adorador do diabo, servidor do Submundo jurado de sangue, que havia dado a Vina Apsara um anel sem preço, porém maligno, que provocou a tragédia e arrastou-a para o Inferno. Mas a essa altura Vina já estava passando para a lenda, transformando-se num recipiente em que qualquer idiota podia derramar suas bobagens, ou, digamos, um espelho da cultura, e podemos melhor entender a natureza dessa cultura se dissermos que encontrava o seu espelho mais verdadeiro num cadáver.

Um anel para a todos governar, um anel para encontrá-los, um anel para a todos trazer e na escuridão aprisioná-los. Sentei ao lado de Vina Apsara no helicóptero até Tequila, e não vi anel nenhum no dedo dela, a não ser o talismã de pedra da lua que ela sempre usava, seu elo com Ormus Cama, sua lembrança do amor."



(O Chão Que Ela Pisa; tradução de José Rubens Siqueira).



(Ilustração : Henry Fuseli - The-Nightmare II)

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