sábado, 10 de fevereiro de 2024
EU NÃO ERA MAIS FILHO ÚNICO, de Abdourahman A. Waberi
Mamãe voltou uma tarde em que o céu estava com boa cara. Não estava só. Transportava alguma coisa numa cestinha protegida do sol por uma coberta semelhante a esses tecidos de juta utilizados pelas mulheres do interior que apareciam lá em casa para vender os gêneros que todo filho de nômade aprecia: leite de camela, manteiga clarificada, manta de carne de camela seca e temperada com pérolas de sal, ovos de avestruz. O fino do fino era a bossa do dromedário cortada em dados que de longe pareciam pequenos tabletes de sabão transparente. Meu pai separava os tecidos mais bonitos para depois vendê-los aos turistas apreciadores do artesanato tradicional.
Pois veja, Béa, não se tratava de uma cesta, mas de um berço minúsculo, tão minúsculo que dava a impressão de desaparecer nos braços da minha mãe. O produto embrulhado com tanta precaução, não tinha nada a ver com carne de caça ou bossa de camelo destinada a excitar as papilas gustativas dos citadinos nostálgicos da savana. Foram os youyous das vizinhas que me deixaram com a pulga atrás da orelha. O berço não continha uma iguaria especial. Já não havia dúvida possível: soluços quase imperceptíveis chegavam até mim. Mamãe tinha feito a mala para um destino mantido em segredo e agora voltava precedida das manifestações de atenção de todas as mulheres do bairro, que acorreram atendendo a um sinal que escapara à minha vigilância. Se não estivéssemos em pleno meio-dia, eu teria pensado que elas haviam se comunicado com a ajuda de lanternas-de-tempestade de pavio longo, utilizando um código sofisticado cuja decifração escapara ao meu entendimento. Não era porque eu acabava de ter acesso à leitura graças a Madame Annick que eu teria podido decifrar facilmente o método de comunicação das mulheres do bairro. Fosse como fosse, todas haviam comparecido àquele encontro intempestivo ou planejado havia muito tempo. Elas não pareciam registrar minha presença, de tão ocupadas que estavam em elogiar e inspecionar cada dobra de pele, cada osso e cada cabelo da cabeça daquele pequeno ser que minha mãe, trêmula de emoção, segurava nos braços. Uma matrona enxugou o rosto de Zahra com um trapo extraído de seus seios fartos e depois assoou com ele o nariz da minha mãe, porque ela não podia se permitir largar por um instante que fosse o seu bebê ou mesmo entregar o cesto a outra senhora, como costumava fazer comigo quando eu chorava, para poder se assoar com a maior tranquilidade do mundo. Outra matrona que acabava de entrar na casa veio dar dois beijos longos, estalados e sonoros nas bochechas estriadas de lágrimas de minha mãe, lágrimas que eu adivinhava quentes como podia estar o mar na praia dos Tritons no ápice do calor.
Observando todas as mulheres aglomeradas ao redor do bebê recém-chegado àquele nosso recanto da terra, entendi um pouco melhor o chamado instinto maternal, que dispensa palavras. Claro que eu não falava do jeito que estou falando agora, Béa, você pode imaginar, mas chegava intuitivamente ao cerne da relação entre um bebê e sua mãe ou seu pai. Acho que essa relação supera todas as relações que tenhamos conhecido no passado. Os pais ideais não têm expectativa alguma sobre a progenitura. Estão lá apenas para o bem de seus filhos. Para suas transformações, sua felicidade. Reconheço que não é esse o procedimento adotado pela maioria dos pais que eu conheci e ainda conheço, mas é guiado por ele que eu me vejo, ao lado de sua mãe Margherita, de sua avó Carlotta, dos seus irmãos mais velhos, Yacine e Elmi, de seu avô Salvatore.
A matrona que havia chegado por último conversava com vovó Cochise, que por sua vez redobrava suas atenções para com minha mãe, a quem repreendia como se minha mãe fosse uma menina e não a esposa de seu filho mais velho, para ela o bem mais precioso do mundo. Minha avó se chamava Nadifa, embora eu nunca tivesse ouvido ninguém chamá-la por esse nome. Para mim, ela era a avó Cochise. Sempre seria a avó Cochise. Para os outros, era a Anciã, e todos rezavam em silêncio quando a ouviam chegar. Ou seja: ela suscitava medo e respeito.
O regresso de minha mãe atraiu boa parte das mulheres do bairro. O conciliábulo que a cercava havia começado uma boa hora antes, mas mesmo assim nenhuma matrona ousava se afastar do berço. Juntas, pareciam galinhas cacarejando em torno da mãe e de seu recém-nascido, enquanto duas velhas de lábios emaciados se uniam para desvendar os segredos da vida e as chaves do destino.
Tinham a missão de acalmar os espíritos dos mortos antes que o recém-nascido emitisse seus primeiros vagidos dentro da casa onde a partir de agora faria seus cocôs, daria seus arrotos, ensaiaria os primeiros passos. O conciliábulo se prolongava e ninguém via nada de alarmante nisso. As galinhas cacarejavam sem interrupção. Mamãe transpirava como uma muçarela.
Quando as especialistas em ciência das trevas encerraram sua entrevista particular, era quase noite. As vizinhas foram saindo uma a uma, erguendo lampiões à altura dos ombros. Demorei algum tempo para reparar que fazia mais de duas horas que o bairro estava mergulhado na escuridão. O mecânico-chefe da EDD, a companhia elétrica do Djibuti, teria se esquecido de ligar o interruptor geral? Teria ido curar sua ressaca de khat com a cabeça entre as coxas da amante? Seus assistentes teriam ficado sem coragem de acordá-lo? Foi nesse ambiente um pouco feérico por causa da obscuridade e do zumbido dos lampiões que meu irmão caçula deu seu primeiro grito.
Me levantei de um salto, Béa, eu que habitualmente sou lento no gatilho, para pular no pescoço da minha mãe, que secava lágrimas abundantes.
Tive tempo de observar de perto o meu novo coinquilino.
A pele de seu bumbum era macia e franzida.
Olhos próximos um do outro e a boca fazendo bico.
Ele já sabia vagir suficientemente alto para ter minha mãe sob seu jugo.
A julgar por suas pernas a balançar com energia, meu coinquilino era de uma têmpera diferente da minha.
Certamente, seria tão dinâmico quanto eu era frágil. E tão vigoroso quanto eu era doentio.
A noite foi uma prorrogação da tarde: vizinhos se revezavam para felicitar meu pai, que acabava de chegar. Eu não ouvira o pipoco de sua Solex; devia estar com a cabeça longe. No dia seguinte um imã veio abençoar meu coinquilino. Claro, foi minha avó quem soprou à orelha do religioso o nome de batismo. Tia Dayibo ficou perto do imã a tarde inteira. Depois de cada reza, ela agitava seu terço com espalhafato. Minha mãe parecia muito frágil em seu vestido novo. Papai la Tige estava impecável em seu terno de três peças. Quanto a mim, eu tinha os pés tão apertados pelo sapato, que estava prestes a desmaiar.
“Eu te deixo em muito boas mãos, Ossobleh!”
Foi assim que o imã se despediu, para grande desgosto da minha tia, que derramou uma derradeira lágrima.
“Bem-vindo ao mundo, Ossobleh!”
Foi assim que os vizinhos, por sua vez, se retiraram.
“Ossobleh, tu serás forte como uma rocha!” Foi assim que minha avó encerrou a cerimônia.
Não me lembro mais do resto.
Eu tinha ido dormir.
Vovó se esqueceu de me contar uma história.
Ninguém veio me desejar boa-noite.
Ossobleh chorava à noite.
Eu não era mais filho único.
(Por que você dança quando anda?; tradução de José Almino)
(Ilustração: Odette Dalpé: retratos)
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