quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

RELAÇÃO HISTÓRICA DE 1753: A CIDADE ABANDONADA, de Anônimo (*)

 


Fonte: Revista trimestral de história e geografia do Instituto Geográfico Brasileiro. Tomo i, 1839-40. 1839, Rio de Janeiro (Biblioteca Nacional). Os espaços do manuscrito expressos em pontos são os lugares roídos de cupim. A grafia original foi mantida.




“Relação Histórica de uma oculta, e grande Povoação antiquissima sem moradores, que se descubrio no ano de 1753.

Em a América............................ nos interiores............................. contíguos aos............................. Mestre de Can............................

e sua commitiva, havendo dez annos que viajava pelos

sertões, a vêr se descubria as decantadas minas de prata do grande descubridor Moribeca, que por culpa de hum Governador se não fizerão patentes, pois queria usurpar-lhe esta gloria, e o teve prezo na Bahia até morrer, e ficarão por descubrir. Veio esta notícia ao Rio de Janeiro em o principio do anno de 1754.”.

* * *

Depois de uma larga, e importuna perigrinação, incitados da insaciavel cobiça do ouro, e quasi perdidos em muitos annos por este vastissimo Certão, descubrimos uma cordilheira de montes tão elevados, que parecião chegavão à Região etherea, e que servião de throno ao vento, às mesmas estrellas; o luzimento que de longe se admirava, principalmente quando o Sol fazia impressão no cristal de que era composta, formando huma vista tão grande, e agradavel, que ninguem daquelles reflexos podia afastar os olhos; entrou a chover antes de entrarmos a registrar esta cristallina maravilha, e viamos sobre a pedra escalvada correr as aguas precipitando-se dos altos rochedos, parecendo-nos como a neve, ferida pelos raios do Sol, pelas agradaveis vistas d’aquelle .............. uina se reduziria .......................................... das aguas, e a tranquilidade ........ do tempo nos resolvemos a investigar aquelle admirável prodigio da natureza, chegando-nos ao pé dos montes, sem embaraço algum de matos, ou rios, que nos difficultasse o transito; porem circulando as montanhas, não achamos passo franco para executarmos a resolução de acomettermos estes Alpes, e Pyrineos Brasilicos, resultandonos deste desengano uma inexplicavel tristeza.

Abarracados nós, e com o designio de retrocedermos no dia seguinte, succedeo correr hum negro, andando à lenha, a hum veado branco, que vio, e descobrir por este acaso o caminho entre duas serras, que parecião cortadas por artificio, e não pela Natureza: com o alvoroço d’esta novidade principiamos a subir, achando muita pedra solta, e amontoada, por onde julgamos ser calçada desfeita com a continuação do tempo. Gastamos boas tres horas na subida, porem suave pelos cristaes que admiravamos, e no cume do monte fizemos alto, do qual estendendo a vista, vimos em hum campo raso maiores demonstrações para a nossa admiração.

Devizamos cousa de legoa e meia huma Povoação grande, persuadindo-nos pelo dilatado da figura ser alguma cidade da côrte do Brazil, descemos logo ao Valle com a cautella ...... seria em semelhante caso, mandando explor

.............. gar a qualidade, e ................... se bem que repararam .................... fuminéz, sendo este, hum dos signaes evidentes das Povoações.

Estivemos dois dias esperando aos exploradores para o fim que muito desejavamos, e só ouvimos cantar gallos para ajuizar que havia alli povoadores; até que chegaram os nossos desenganados de que não havia moradores, ficando todos confuzos: resolveu-se depois hum indio da nossa commitiva a entrar a todo o risco, e com precaução; mas tornando assombrado, affirmou-nos não achar, nem descobrir rastro de pessoa alguma; este caso nos fêz confundir de sorte, que não acreditamos pelo que viamos de domicilios, e assim se arrujaram todos os exploradores a ir seguindo os passos do indio.

Vierão confirmando o referido depoimento de não haver povo, e assim nos determinamos todos a entrar com armas por esta povoação, em huma madrugada, sem haver quem nos sahisse ao encontro a impedir os passos, e não achamos outro caminho, senão o unico que tem a grande povoação, cuja entrada he por tres arcos de grande altura, o do meio he maior, e os dois dos lados são mais pequenos; sobre o grande e principal divisamos letras que se não poderão copiar pela grande altura.

Faz uma rua da largura dos tres arcos com casas de sobrados de huma, e outra parte, com as fronteiras de pedra lavrada e já denegrida;....... inscripções, abertas todas

....................ortas são baixas de fei..................nas notando que pela regularidade e simetria com que estão feitas, parece huma só propriedade de casas, sendo em realidade muitas, e algumas com seus terrados descoubertos, e sem telha, por que os tectos são de ladrilho requeimado huns, e de lages outros.

Corremos com bastante pavor algumas casas, e em nenhuma achamos vestigios de alfaias, nem moveis, que podessemos pelo uso, e trato, conhecer a qualidade dos naturaes: as casas são todas escuras no interior, e apenas tem huma escassa luz, e como são abobadas, resonavão os echos dos que fallavão e as mesmas vozes atemorisavão.

Passada, e vista a rua de bom comprimento, demos em huma Praça regular, e no meio d’ella uma columna de pedra preta de grandeza extraordinaria, e sobre ella huma estatua de homem ordinario, com huma mão na ilharga esquerda, e o braço direito estendido, mostrando com o dedo index ao Povo Norte; em cada canto da dita Praça está huma Agulha, à imitação das que usavão os Romanos, mas algumas já maltratadas, e partidas como feridas de alguns raios.

Pelo lado direito d’esta Praça está hum soberbo edificio, como casa principal de algum senhor da Terra; faz hum grande salão na entrada, e ainda com medo não corremos todas as ca...... sendo tantas, e os retret................zerão formar algum ...............mara achamos hu.....................

massa de extraordin....................soas custavão o levantal-a.

Os morcegos erão tantos, que investião as caras das gentes, e fazião uma tal bulha, que admirava: sobre o portico principal da rua está uma figura de meio relevo talhada da mesma pedra, e dispida da cintura para cima, coroada de louro; representa pessoa de pouca idade, sem barba, com huma banda atravessada, e hum fraldelim pela cintura; debaixo do escudo da tal figura tem alguns characteres já gastos com o tempo; divisão-se porem os seguintes: — (Veja-se a estampa, inscrição N. 1).

Da parte esquerda da dita Praça está outro edificio totalmente arruinado, e pelos vestigios bem mostra que foi templo, porque ainda conserva parte do seu magnifico frontespicio, e algumas naves de pedra inteira: occupa grande território, e nas suas arruinadas paredes se veem obras de primor com algumas figuras, e retratos embutidos na pedra com cruzes de vários feitios, corvos, e outras miudezas, que carecem de largo tempo para descrevel-as.

Segue-se a este edificio huma grande parte de povoações toda arruinada, e sepultada em grandes, e medonhas aberturas da terra, sem que em toda esta circunferencia se veja herva, arvore ou planta produzida pela Natureza, mas sim montões de pedra, humas toscas e outras lavradas, pelo q’entendemos ........verção, porque ainda entre ................ da de cadaveres, que .......... e parte d’esta infeliz ..... da e desamparada, talvez por algum terremoto.

Defronte da dita Praça corre arrebatadamente um caudaloso rio largo, e espaçoso com algumas margens, que o fazem muito agradável à vista: terá de largura onze, até doze braças, sem voltas consideraveis, limpas as margens de arvoredo, e troncos, que as innundações costumão trazer; sondamos a sua altura, e achamos nas partes mais profundas quinze, e até dezesseis braças. Da parte d’alem tudo são campos muito viçosos e com tanta variedade de flores, que parece andou a Natureza mais cuidadosa por estas partes, fazendo produzir os mais mimosos campos de Flora: admiramos tambem algumas lagoas todas cheias de arroz, do qual nos aproveitamos, e também dos inumeráveis bandos de patos, que se crião na fertilidade d’estes campos, sem nos ser difficil o caçal-os sem chumbo, mas sim às mãos.

Tres dias caminhamos rio abaixo, e topamos huma catadupa de tanto estrondo pela força das agoas, e resistencia do lugar, que julgamos o não fazia maior as boccas do decantado Nilo, que parece o grande Oceano. He todo cheio de peninsulas, cobertas de verde relva, com algumas arvores dispersas, que fazem) ..............davel. Aqui achamos .............. a falta d’elle se nos................ta

variedade de caça....tros muitos animais creados sem caçadores que os corrão, e os persigão.

Da parte do Oriente d’esta catadupa achamos subcavões, e medonhas covas, fazendo-se experiencia da sua profundidade com muitas cordas; as quaes por mais compridas que fossem, nunca podemos topar o seu centro. Achamos tambem algumas pedras soltas; e na superfície da terra, cravadas de prata, como tiradas das minas, deixadas ao tempo.

Entre estas furnas vimos huma coberta com huma grande lage, e com as seguintes figuras lavradas na mesma pedra, que insinuão grande mysterio ao que parece (Inscrição N. 2). Sobre o portico do templo vimos outras da forma seguinte designadas. (Inscrição N. 3).

Afastado da povoação, tiro de canhão, está hum edificio, como casa de campo de duzentos e cincoenta passos de frente: pelo qual se entra por um grande portico, e se sobe por uma escada de pedra de varias cores, dando-se logo em huma grande sala, e depois d’esta em quinze casas pequenas todas com portas para a dita sala, e cada huma sobre si, e com sua bica d’agoa .................. a qual agoas e ajunta..................mão no pateo exter.............. columnatas em cir...............ra quadrada por artificio, suspensas com os seguintes characteres. (Inscrição N. 4).

Depois d’esta admiração, entramos pelas margens do rio a fazer experiencia de descubrir ouro, e sem trabalho achamos boa pinta na superficie da terra, promettendo-nos muita grandeza, assim de ouro, como de prata: admiramos o sêr deixada esta povoação dos que a habitavão, não tendo achado a nossa exacta diligencia por estes certões, pessoa alguma, que nos conte d’esta deploravel maravilha, de quem fosse esta povoação, mostrando bem nas suas ruinas a figura, e grandeza que teria, e como seria populosa, e opulenta nos seculos em que floresceo povoada; estando hoje habitada de andorinhas, morcegas, ratos, e raposas, que cevadas na muita creação de galinhas e patos, se fazem maiores que hum cão perdigueiro. Os ratos tem as pernas tão curtas, que saltão como pulgas e não andão, nem correm como os de povoado.

D’aqui d’este lugar se apartou hum companheiro, o qual com outros mais, depois de nove dias de boa marcha avistaram, à beira de huma grande enseada que faz hum rio, huma canoa, com duas pessoas brancas, e de cabellos pretos, e soltos, vestidas á Europea ............ hum tiro como signal para se ve.................. para fugirem. Ter................ felpudos, e bravos ..........ga a elles se encrespão todos, e investem.

Um nosso companheiro chamado João Antonio achou em as ruinas de huma casa hum dinheiro de ouro, figura esferica, maior que as nossas moedas de seis mil e quatro centos: de huma parte com a imagem, ou figura de hum moço posto de joelhos; e da outra parte hum arco, huma coroa, e huma setta, de cujo genero não duvidamos se ache muito na dita povoação, ou cidade desolada, porque se foi subverção por algum terremoto, não daria tempo o repente a pôr em recato o precioso; mas he necessario um braço muito forte, e poderoso para revolver aquelle entulho calçado de tantos annos, como mostra.

Estas noticias mando a Vm. d’este certão da Bahia, e dos rios Paracaçú, Unã, assentando não darmos parte a pessoa alguma, por que julgamos se despovoarão villas, e arraiaes; mas eu a Vm. a dou das minas que temos descoberto, lembrado do muito que lhe devo.

Supposto que da nossa companhia sahio já hum companheiro com pretexto differente, com tudo peço a Vm. largue essas penurias, e venha utilizar-se d’estas grandezas, usando da industria de peitar esse indio, para se fazer perdido e conduzir a Vm. para estes thesouros, &

c..............................................charão nas entradas..................bre lages.............



(*) Apud livro Esqueleto na Lagoa Verde – Ensaio sobre a vida e o sumiço do coronel Fawcett, de Antonio Callado. Embora não haja prova, acredita-se que o Coronel Fawcett, um explorador inglês que tinha desde criança a curiosidade por descobertas improváveis, tenha lido esse manuscrito e tenha ido, com mais dois amigos, em busca dessa cidade abandonada no interior, possivelmente, da Bahia, algo que nunca se comprovou existir. Fawcett foi assassinado nessa busca, em 1925 e, em 1952, os Diários Associados patrocinaram a viagem de busca de um túmulo onde ele poderia estar enterrado. Leia o texto de Antonio Callado, OS OSSOS NÃO ERAM DO CORONEL FAWCETT, neste mesmo blog. (Nota do blog)



(Ilustração: Primeira página do manuscrito - foto da Fundação Biblioteca Nacional)

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