segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

HISTÓRIA DAS MENTALIDADES, de Eduardo Marques da Silva

 



De acordo com Jacques Le Goff, temos novas maneiras de ler a História, principalmente a social. Tudo havia sido transformado, e novamente a maneira de perceber a História se modificava metodologicamente. Saber como se deu tudo acabava sendo mais um novidadeiro e estrondoso desafio, com novos pensadores do tempo historiográfico no mundo e para o mundo, com foco na História das Mentalidades. Para ele, mentalidade vai além da história. É, inicialmente, ir ao encontro de outras ciências humanas.

Segundo Le Goff, Marc Bloch reconhece no estudo das mentalidades da Idade Média uma ampla gama de crenças e de práticas – algumas legadas por magias milenares, outras nascidas em épocas relativamente recentes no seio da civilização animada de grande fecundidade mítica.

O historiador das mentalidades aproximar-se-á, pois, do etnólogo, visando a alcançar o nível mais estável das sociedades. Ernest Labrousse diz que o social é mais lento que o econômico e o mental mais ainda do que o social. Do estudo dos ritos, das práticas cerimoniais, o etnólogo remonta para as crenças, os sistemas de valores. Assim, os historiadores da Idade Média, após Marc Bloch, Percy Ernst Schramm, Ernst Kantorovicz, Bernard Guenée, por meio das sagrações, das curas milagrosas, das insígnias do poder, das recepções reais, descobriram uma mística monárquica, uma mentalidade política e renovaram a história política medieval.

Próximo do etnólogo, o historiador das mentalidades deve também se duplicar em sociólogo. Seu objeto é o coletivo. A mentalidade de um indivíduo histórico, sendo esse um grande homem, é justamente o que ele tem de comum com outros homens de seu tempo. O historiador de mentalidades encontra-se particularmente muito próximo do psicólogo social. As noções de comportamento ou de atitude são para este e para aquela essência.

A Psicologia social inclina-se para a Etnologia e desta para a História. Dois domínios manifestam essa inclinação recíproca da história das mentalidades: os marginais e desviados nas épocas passadas e o progresso paralelo das sondagens de opinião e de análises históricas de comportamentos eleitorais. Desse ponto de vista, um dos interesses da história das mentalidades revela-se: as possibilidades que oferece à Psicologia histórica de ligar-se a outra grande corrente da pesquisa histórica de hoje: a História quantitativa.

Ciência aparentemente do movente e do matizado, a história das mentalidades pode, com certas adaptações, utilizar os métodos quantitativos aperfeiçoados pelos psicologistas sociais. Da mesma maneira, seus vínculos com a etnologia permitirão que recorra a outro grande arsenal das ciências humanas atuais: os métodos estruturalistas.

Mas a história das mentalidades não se define somente pelo contrato com as outras ciências humanas e pela emergência de um domínio repelido pela história tradicional. Ela é o lugar de encontro de exigências opostas que a dinâmica própria à pesquisa histórica atual força ao diálogo. Situa-se no ponto de junção do individual e do coletivo, do longo tempo e do quotidiano, do inconsciente e do intencional, do estrutural e do conjuntural, do marginal e do geral. Quando Huizinga chama Jean de Salisbury de “espírito pré-gótico”, reconhecia-lhe uma superioridade de antecipação com respeito à evolução histórica, pela expressão em que o espírito evoca a mentalidade, fazendo desta a testemunha coletiva de uma época, como Lucien Febvre fez de um Rabelais arrancado ao anacronismo dos eruditos das ideias para voltar à historicidade concreta dos historiadores das mentalidades.

O discurso dos homens, em qualquer tom em que tenha sido pronunciado – o da convicção, o da emoção, o da ênfase –, é frequentemente apenas um amontoado de ideias feitas, de lugares comuns, de restos de culturas e de mentalidades de diversas origens e várias épocas. André Varagnac fala de arqueocivilização, restos sendo reunidos por coerências mentais, senão lógicas, seguindo o deciframento de sistemas psíquicos próximos da bricolage intellectuel em que Claude Lévi-Strauss reconhecia o pensamento selvagem.

A história das mentalidades obriga o historiador a interessar-se por alguns fenômenos essenciais de seu domínio: as heranças (das quais os estudos ensinam a continuidade), as rupturas, a tradição, as maneiras pelas quais se reproduzem mentalmente as sociedades, as defasagens, produto do retardamento dos espíritos em se adaptar às mudanças e a inegável rapidez com que evoluem os diferentes setores da história, um campo de análise privilegiado para a crítica das concepções lineares a serviço histórico.

Os homens servem-se das máquinas conservando as mentalidades anteriores a elas. Os automobilistas têm vocabulário de cavaleiros; os operários das fábricas do século XIX, a mentalidade dos camponeses. A mentalidade é aquilo que muda mais lentamente. História das mentalidades, história da lentidão na história.

Qual a origem da história das mentalidades? Mental que se refere ao espírito e tem origem no vocabulário da escolástica clássica medieval. O aparecimento de mental (no século XV) e mentalidade (no século XIX) indica que o substantivo corresponde a outras necessidades, decorre de uma conjuntura que não o adjetivo. Mentalidade, filha da filosofia inglesa do século XVII, designa a coloração coletiva do psiquismo, a maneira particular de pensar e de sentir “de um povo, de certo grupo de pessoas etc.”. Confinado em inglês, a língua técnica da filosofia, em francês torna-se logo de uso corrente, surgido no século XVIII no domínio científico do campo de uma nova concepção da história. Inspira Voltaire (Essai sur lês moeurs et l’espirit des nations (1754), como está no dicionário Robert, 1842).

Em 1900, Proust sublinha a novidade e a palavra toma seu sentido corrente. É o sucedâneo popular da Weltanschauung alemã, a visão do mundo, de tudo um pouco, um universo mental ao mesmo tempo estereotipado e caótico. É uma visão corrompida do mundo, o entregar-se à propensão dos maus instintos psíquicos. Fatalidade pejorativa, direto ou antífrase. Uma vil ou bela mentalidade, ou que mentalidade. O inglês a conservou no caso do adjetivo: mental (subentendendo-se deficiente).



REFERÊNCIAS

LE GOFF, Jacques. História nova. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

HOBSBAWM, E. J. Bandidos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1976. SILVA, Eduardo Marques da. As neoamazonas e o moderno mundo econômico em transformação: onde surgem? Disponível em: www.educacaopublica.rj.gov.br. Publicado em 3 de março de 2009.

SILVA, Eduardo Marques da. Raízes de uma escola de inclusão social e sociocultural cidadã para apresados recuperáveis: uma sugestão. Disponível em: www.educacaopublica.rj.gov.br. Publicado em 16 de janeiro de 2007.

SILVA, Eduardo Marques da. Pós-escravidão, a educação submissa na cibercidadania. Disponível em: www.educacaopublica.rj.gov.br. Publicado em 21 de agosto de 2007.



(Ilustração: Hieronymus Bosch (ca. 1450-1516)

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