sexta-feira, 31 de maio de 2019

NOS OLHOS DO INTRUSO, de Rubens Figueiredo






Não lembro a primeira vez. Mas aqui e ali comecei a ouvir comentários: aquela é a cidade que interessa, é onde as coisas acontecem, o futuro fugiu para lá. Advertências que repetiam a verdade mais simples, não há como negar. Hoje, parecem ressoar a voz de um oráculo. Mas era uma verdade que entendi mal, que me apressei em traduzir totalmente errado, nos termos da euforia de um menino, ou até de um tolo. 

Talvez eu pudesse ter ficado como estava, talvez o futuro ainda dormisse bem longe até hoje, se naquela noite eu não tivesse ido ao teatro. Três atores representavam vários papéis e a história da peça quase não importava. O espetáculo consistia muito mais na velocidade e na perfeição das metamorfoses dos atores. Em poucos minutos, eles trocavam de roupa, peruca e maquiagem, encarnavam outra voz, outra personalidade, e tudo com um vigor que só podia nascer de um tipo de vida. 

No final da peça, algumas fileiras à minha frente, aconteceu. Quando as pessoas se levantaram, entrevi, no intervalo das cabeças, um homem parecido com alguém que eu conhecia. Talvez fosse a dança de tantos rostos a meu redor, mas o efeito era o de muitas feições distintas convergindo e se sobrepondo no ar transparente. 

Uma desconfiança incômoda me obrigou a olhar melhor e então deparei com um sujeito igual a mim mesmo, apenas um pouco mais novo. 

Sacudido por uma espécie de insulto, experimentei o temor de estar sendo sorrateiramente substituído. 

Com os olhos naquele homem, esqueci que devia continuar andando. 

As pessoas atrás de mim, na minha fileira, me repreenderam com resmungos. Tentei me livrar do meu estupor, mas o máximo que consegui foi observar o homem da maneira mais discreta que podia. As fileiras escorriam todas na mesma direção, o público escoava ligeiro para o funil da saída e logo o perdi de vista. 

Se uma coisa deriva sempre de outra, se todo fato espalha efeitos em todas as direções, por que não ver no que se seguiu uma continuação, um sistema? Podia parecer um desses acasos bobos, uma dessas situações tão corriqueiras que nem paramos para pensar. Em um intervalo de semanas, pelo menos três amigos se aproximaram de mim para dizer que me tinham visto em lugares que eu não conhecia, locais aonde eu nunca fora, fazendo coisas que eu absolutamente não podia ter feito, porque estava ocupado, em outra parte. 

Na primeira vez, juro, tentei negar. Depois, diante da alegre certeza da pessoa à minha frente, me resignei a ouvir em silêncio. A seguir, de uma maneira que eu mal percebi, passei pouco a pouco a acreditar que era eu mesmo que ia àqueles lugares e punha em prática aquelas ações. Eu até sorria e pelo menos uma vez cheguei a inventar explicações adicionais, coerentes, que vi serem bem aceitas pelo meu ouvinte. 

Outros talvez não prestassem atenção. Outros talvez não encadeassem uma coisa à outra. Sei que, mesmo na vida mais banal, há lugar para tudo. 

Mas, um dia, no centro da cidade, um homem completamente desconhecido me cumprimentou com familiaridade. O sinal fechou e, enquanto eu atravessava a rua, o homem, andando em sentido contrário, acenou ligeiro com a mão. Receoso de me mostrar mal-educado com algum conhecido, correspondi ao aceno. O sinal abriu, os carros e ônibus andaram, bloquearam minha visão e eu o perdi na multidão da calçada oposta. 

Tempos depois, eu vinha andando distraído pela rua. Quando dei por mim, uma pessoa que não pude reconhecer me dirigia palavras apressadas. Mencionou de passagem um nome estranho para mim como se fosse um amigo comum. Depois pediu desculpas pela pressa, se despediu e foi embora. 

Algo desse tipo se repetiu ainda, talvez em um espaço de alguns meses, duas ou três situações que outras pessoas poderiam interpretar como encontros fortuitos com lunáticos, do tipo que prolifera nas ruas, eu sei. Mas a minha lua é a mesma de todo mundo. 

Aos poucos, as atividades que esses desconhecidos atribuíam a mim começaram a me parecer familiares. As pessoas que eles mencionavam chegaram a se tornar íntimas para mim, com seus nomes e suas ambições cotidianas. Tudo ia se incorporando à minha memória. O meu passado se expandia com um novo elenco de pessoas e fatos, ao mesmo tempo em que o meu presente também se ampliava, numa espécie de movimento de conquista. Minha vida abarcava muitas outras vidas e assim eu conseguia me sentir mais vivo do que nunca. 

Um dia, numa rua do centro, tomei coragem. Arrisquei cumprimentar alguém que eu, com absoluta certeza, não conhecia. Após um instante de surpresa bem natural, nas circunstâncias, a pessoa respondeu ao meu cumprimento, de forma discreta. Sua expressão deu a entender que, naquele momento, não tinha tempo para conversar comigo como gostaria, e seguiu adiante. 

Por que pedir mais? Vi naquilo uma confirmação, e não poderia ser de outro modo. Agora, eu olhava o mundo à minha volta com o ardor de uma simpatia desconhecida. Via as pessoas entrando e saindo pelas portarias dos prédios, contemplava a fila de cabeças voltadas para mim nas janelas dos ônibus e sabia que no mundo ninguém mais seria para mim um estranho. 

Vivi assim um tempo, até que, certa manhã, o telefone me acordou. A voz do outro lado avisou que uma determinada pessoa havia morrido. Citou um nome, que não reconheci nem me dei ao trabalho de memorizar. Mas anotei a hora e o lugar do funeral. A voz ainda lamentou que ele tivesse morrido ainda jovem, e garantiu que “todos” iriam lá. 

Cheguei em cima da hora, um pouco atrasado até. Achei que por isso ninguém se aproximou para me cumprimentar. Raciocinei que temiam perturbar a cerimônia. Uma música de órgão descia gelada das paredes e só um segundo antes de o caixão ser fechado distingui as feições do defunto. 

Foi rápido, uma sombra correu sobre o véu transparente. Mas creio ter reconhecido o homem que eu, nem sei quanto tempo antes, vira no teatro. O homem igual a mim. Com a tampa fixada em seu lugar, o caixão deslizou por uma esteira na direção de uma porta e desapareceu no crematório. 

Antes que eu me refizesse da surpresa, todos haviam ido embora sem sequer se despedir de mim. Em poucos dias, as coisas começaram a mudar. 

Encostei no balcão de uma lanchonete, pedi um cafezinho, na esperança de que o garçom conversasse um minuto comigo, sobre o tempo, o trânsito, o que fosse. Mas ele logo virou a cara para o meu sorriso, como se estivesse diante de um estranho, um intrometido. 

A rigor, aqui e ali, eu descobria motivos para pensar que me consideravam um importuno. Em lugares onde eu esperava ser recebido como um irmão, me rechaçavam com a frieza e a hostilidade educada que só se descarrega sobre os intrusos. Mesmo nos ambientes que, antes, eram para mim perfeitamente familiares - meu trabalho, minha vizinhança, meus colegas - eu me via tratado como alguém indesejável. Foi nessa altura que resolvi me mudar para uma outra cidade, a cidade de que eu ouvia falar com tanta simpatia. 

Tratei de me adaptar o mais depressa possível. Tentei refazer minha vida, reconstituir à minha volta um convívio humano que me justificasse. 

Mas isso se revelou difícil. Pelo menos, eu não era tratado como um invasor. Acho que eu poderia ter vivido assim bastante tempo, sem maiores problemas. Mas agora isso não será possível. Há poucos dias, em uma barbearia, rodeado de espelhos que corriam diante de mim e às minhas costas, entendi o que era o futuro e por que ele estava nesta cidade. 

O barbeiro terminou de aparar meu cabelo, ergueu dos meus ombros o pano branco com um floreio do braço e então me levantei. Quando contemplava a mim mesmo no espelho, reparei com o canto dos olhos o reflexo de um homem, umas três cadeiras à esquerda. Ele me fitava com insistência. Tinha um ar quase desnorteado, na verdade, e achei que já devia estar me observando desde algum tempo. 

Por instinto, desviei o rosto pois o homem me pareceu agitado. Fingi que não o via e estou certo de que o deixei convencido disso. Mas os espelhos permitiam olhares diagonais. Por esse ângulo, pude notar que o sujeito era extraordinariamente parecido comigo. Apenas um pouco mais velho. 

Fui para a rua. Forcei minhas pernas a caminhar e vi a calçada fugindo para trás sob os meus passos. Sei agora por que vim para esta cidade. O olhar admirado do homem na barbearia foram as boas-vindas e também uma despedida para mim. Já posso sentir o calor das chamas estalando. Mas, até que chegue a minha vez, esse sujeito ainda vai ouvir falar muito de mim. 



(Cem melhores contos brasileiros do século



(Ilustração: Shupliak Oleg; optical illusion paintings)






Nenhum comentário:

Postar um comentário