quinta-feira, 20 de abril de 2017

TERRA SONÂMBULA, de Milton Hatoum








Há dois anos, em julho, revisitei sem nostalgia "El Norte Grande", como os chilenos nomeiam o deserto. Depois voltei a Santiago e viajei de trem à região de Bío Bío, onde fiquei uns dias numa pequena cidade onde nasceram dois artistas chilenos: o poeta Nicanor Parra e o pianista Claudio Arrau.

No fim de uma tarde gelada, entrei num café da calle Arauco, conde uma moça morena olhava com ar pensativo um livro aberto sobre a mesinha. Aproveitei a pausa da leitura e perguntei onde ficava a casa de infância de Arrau. Percebeu meu sotaque e respondeu em português: "Muito perto daqui... Nada fica tão longe, só a África".

Estranhei a última frase, que terminava num continente. Falava com um leve sotaque brasileiro, e isso aumentou minha curiosidade. Me sentei ao lado dela e pedi um conhaque.

Disse que era moçambicana, conhecia as interpretações de Arrau e sabia que o famoso pianista, ainda criança, viajara com sua mãe à Alemanha.

"Foi embora do Chile quando tinha uns sete anos", disse Filomena. "Mais ou menos com essa idade, eu saí da África e vim para cá. Eu também queria ser pianista, mas não tive a sorte de Arrau..."

Ficou séria, como se estivesse arrependida do que acabara de dizer.

"Não foi uma questão de sorte. Eu não tinha o talento de Claudio Arrau nem tinha uma mãe para me levar à Alemanha. Meu pai fugiu do Chile poucos meses depois do golpe militar. Viajou para Moçambique e conheceu minha mãe durante a luta pela Independência. Depois começou a guerra civil. Sou filha dessa guerra e dessa aventura amorosa. Em 1990, vim com meu pai ao Chile..."

Mas você não esqueceu a língua materna.

"Estudei português com um professor brasileiro... Leio e falo bem, mas não consigo escrever corretamente, o espanhol se intromete... Meu pai aprendeu português e ronga uma língua africana... Minha mãe conversava comigo em ronga e português. Me formei em Santiago... Durante o inverno trabalho aqui, num hospital da cidade... Milhares de turistas vêm esquiar no sul... Cuido dos acidentados... Latino-americanos com fraturas, muitos são brasileiros... Ainda bem que os brasileiros não sabem o que é uma guerra fratricida... Nessa loucura assassina, não tem dia nem noite, tudo é pesadelo, sem sonhos..."

Você se lembra disso?

"Muitas lembranças daquele tempo foram apagadas... Às vezes, a memória morre para nos deixar vivos, para nos dar esperança. A lembrança mais forte? Uma manhã ensolarada... Minha mãe não acordou em casa... Eu não entendia isso... Uma criança de sete anos não pode entender. Ficava em casa com os meus parentes africanos e meu pai saía para procurar minha mãe... Meses e meses de busca... Ele me dizia que ela ia voltar... Até hoje, ninguém sabe o que aconteceu. Me lembro vagamente das acácias e do mar... E também das rezas das pessoas que pediam chuva, das vozes em outras línguas indígenas. Às vezes, sinto saudade de Maputo, uma saudade vaga, que eu não sei definir, não sei dizer... A leitura desse livro me levou de volta a Moçambique, ao sofrimento da guerra... Mas não é só a guerra. É um mundo de magia e horror, de morte e sabedoria, de tantas perdas e também de uma busca... A história de um menino, um dos personagens, é uma viagem às vozes da minha infância... Como se eu mesma reaprendesse a ler, a escrever, a sonhar... Os romances fazem isso, inventam vidas paralelas..."

Olhou para a escuridão lá fora, disse que nessa noite ia nevar nas montanhas.

Você se sente chilena ou moçambicana?

"Não sei", disse Filomena. "A pátria não é uma escolha? Um sentimento? Meu pai é chileno... Ele me diz isso com convicção. Moçambique é a pátria da minha mãe desaparecida. Dois países tão diferentes..."

Filomena pediu licença e se levantou: tinha que ir ao hospital, o plantão começava às sete.

"A casa onde nasceu Claudio Arrau é um museu... Você atravessa a Praça da Constituição e dobra à esquerda. Mas agora o museu não está aberto, só amanhã..."

Quando fechou o livro, li o título do romance de Mia Couto: Terra Sonâmbula.




(OESP; 11/9/2015)



(Ilustração: Frank Benson; la lectora - 1910)

















Um comentário:

  1. childfree-sem filhos22 de abril de 2017 às 14:23

    http://lelivros.cafe/book/download-o-mundo-assombrado-pelos-demonios-a-ciencia-vista-como-uma-vela-no-escuro-carl-sagan-em-epub-mobi-e-pdf/

    http://www.uipa.org.br/como-ajudar/

    https://osgriffins.blogspot.com.br/p/south-park.html

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