sexta-feira, 14 de abril de 2017

MONTAIGNE, de André Gide






Montaigne é autor de um só livro: Ensaios. Mas nesse livro único, escrito sem estrutura preestabelecida, sem método, ao acaso dos acontecimentos e das leituras, procura entregar-se por inteiro aos seus leitores. Publica quatro edições sucessivas dos Ensaios. Ia dizer quatro moagens: a primeira, com 47 anos, em 1580. Volta ao texto, corrige-o, remata-o e, ao morrer (em 1592) deixa um exemplar da obra sobrecarregado de variantes e de acréscimos, que as edições posteriores têm que tomar em consideração. Entrementes Montaigne viaja pela Alemanha do Sul e pela Itália (1580-81) e desempenha, de 1581 a 1585, as importantes funções de Maire (1) de Bordéus. Essa experiencia da vida pública, nesses tempos assaz perturbados pelas guerras religiosas, essas observações colhidas nos países estrangeiros, Montaigne as comunicará a seus leitores para que delas se beneficiem.

Mas desde então, desviando o espírito dos negócios públicos para ocupar-se tão somente consigo mesmo (quero dizer com seu pensamento próprio), vai fechar-se em sua "livraria"(2). E até a morte não mais deixará o castelo de Périgord, onde nasceu. Escreve novos capítulos, que formarão o terceiro livro dos Ensaios; revê os dois primeiros, corrige-os, melhora-os, junta-lhes seiscentos acréscimos. Acontece-lhe também, tornando-o mais pesado, atravancar o texto original com montes de citações colhidas em suas constantes leituras, pois Montaigne continua persuadido de que tudo foi dito, e preocupado com mostrar que o espírito do homem em toda parte e em todos os tempos permanece igual em sua essência Essa abundância de citações, que tornam certos capítulos dos Ensaios um bolo compacto de autores gregos e latinos, nos induziria a duvidar da originalidade de Montaigne, não fosse ela viva a ponto de sobrepujar a mixórdia.

O exibicionismo erudito não era peculiar a Montaigne, nessa época em que a cultura grega e romana ainda subia à cabeça. Observa Gibbon, muito judiciosamente, que o estudo das letras antigas, bem anterior ao início do renascimento, antes retardou do que fez progredir o desenvolvimento intelectual dos povos do Ocidente. É que em tal estudo se procurava, então, menos uma inspiração e um trampolim do que modelos. A erudição no tempo de Bocácio e Rabelais pesava sobre as inteligências, e longe de ajudá-las a se libertarem as sufocava. A autoridade dos antigos, e em particular de Aristóteles, atolava a cultura numa rodeira, e durante o século XVI a Universidade de Paris quase que só formou pedantes e parlapatões

Não chega Montaigne a rebelar-se contra essa erudição livresca, mas soube tão bem assimilá-la, fazê-la sua, que em nada ela lhe perturba o pensamento. E nisso se diferencia dos demais. Quando muito, atendendo a moda do dia, atopeta seus escritos de citações. Mas observa: "De que nos vale ter o ventre cheio de viandas se não se digerem, se não se transformam em nós mesmos, se não nos engordam e fortalecem?" (Livro I, cap. 25). Também, e gostosamente, se compara às abelhas que "rapinam aqui e acolá as flores mas, em seguida, com seu furto fabricam o mel, que é exclusivamente seu".

O êxito dos Ensaios seria inexplicável sem a extraordinária personalidade do autor. Que novidade trazia ao mundo? O conhecimento de si mesmo; e qualquer outro conhecimento lhe parece incerto; mas o ser humano que descobre, e que nos revela, é tao autêntico, tão verdadeiro, que nele todos os leitores dos Ensaios se reconhecem.

Em cada época da história uma imagem convencional da humanidade tenta cobrir esse ser real. Montaigne afastará a fantasia para alcançar o essencial; se o consegue, fá-lo por um esforço assíduo de singular perspicácia: opondo a convenção, as crenças aceitas, aos conformismos, um espírito crítico sempre alerta, a um tempo flexível e tenso. Malabarista, com tudo divertido, sorridente, indulgente mas sem complacência, procura conhecer, porém não moralizar.

Para Montaigne o corpo importa tanto quanto o espírito; não separa um do outro e evita cuidadosamente apresentar-nos seu pensamento de um modo abstrato. É portanto muito importante vê-lo antes de ouvi-lo. Aliás, ele próprio nos fornece todos os elementos de seu retrato de corpo inteiro. Observemo-lo.

De estatura um pouco pequena, tem o rosto cheio sem ser gordo. Usa a barba toda, segundo a moda da época, mas não muito longa. Todos os sentidos são nele "inteiros , quase perfeitos. Embora tenha abusado, licenciosamente, de uma saúde robusta, esta se mantém garbosa, apenas de leve alterada pela pedra aos 47 anos. Seu andar é firme; seus gestos arrebatados; sua voz alta e sonora. Fala de bom grado, sempre com veemência, agitando-se muito. Come de tudo e com tal voracidade que lhe ocorre morder os dedos, pois nessa época ainda não se usavam garfos. Monta a cavalo seguidamente e mesmo em sua velhice as mais longas cavalgadas não o fadigam. Dormir, diz-nos, toma grande parte de sua vida.

A importância de um autor decorre não somente de seu valor próprio mas ainda, e em boa parte, da oportunidade de sua mensagem. Alguns há cuja mensagem têm hoje apenas uma importância histórica e já não repercute mais; em tempos idos terá acordado consciências, alimentado entusiasmo, provocado revoluções; não nos diz mais respeito. Os grandes autores são aqueles que não satisfazem somente as necessidades de um país e de uma época, mas fornecem um alimento suscetível de saciar as fomes diversas de nacionalidades diferentes e de gerações sucessivas. "Um leitor capaz descobre muitas vezes nos escritos de outrem qualidades diversas das que o autor neles pôs ou percebeu; e empresta-lhes assim sentidos e aspectos mais ricos", diz Montaigne (Livro I, cap. 25). Será ele próprio "capaz" e poderá responder as novas perguntas que podem ter em vista fazer-lhe os "leitores capazes" da jovem América? Quero crer que sim.

Em nossa época, em qualquer país, os espíritos construtores são particularmente apreciados; aquilo por que mais se felicita um autor é o fato de propor-nos um sistema bem ordenado, um método para a solução dos angustiosos problemas políticos, sociais e morais que atormentam, mais ou menos, todos os povos e cada um de nós em particular. Em verdade, Montaigne não nos traz nenhum método (de resto um método útil em sua época seria impraticável hoje em dia), nenhum sistema filosófico ou social. Nada menos ordenado que seu pensamento; deixa-o brincar ao acaso, vagabundear ao léu. E mesmo a sua dúvida perpétua, que levou Emerson a considerá-lo o mais perfeito representante do cepticismo (i. e., do anti-dogmatismo, do espírito de pesquisa e investigação), compara-se, já o disseram, a esses remédios purgativos que o paciente expele juntamente com as matérias por eles varridas. Porém, assim como muitos viram em seu "Que sais-je" a última palavra de sua sabedoria e do seu ensinamento, a mim tal conclusão não satisfaz. Não é o ceticismo o que me agrada nos Ensaios, nem é essa a lição que neles vou buscar. Um "leitor capaz" saberá encontrar em Montaigne mais e melhor do que dúvidas e interrogações

Quer parecer-me que, ante a pergunta atroz de Pilatos, cujo eco repercute através dos tempos:: "Que é a verdade?", Montaigne encampa, ainda que de um modo totalmente humano e profano, e em sentido muito diferente, a de uma resposta de Cristo: "Eu sou a verdade". Montaigne estima (é o que isso quer dizer) nada me ser possível conhecer realmente senão ele próprio. E é o que o induz a tanto falar de si; pois o conhecimento próprio lhe torna mais importante do que qualquer outro. "É preciso, escreve, tirar a máscara tanto das coisas como das pessoas". (Livro 1, cap. 20). E para desmascarar-se ele se retrata. E como máscara, é mais do país e da época que do homem, sobretudo pela máscara é que as pesoas diferem; de maneira que, no indivíduo verdadeiramente desmascarado, poderemos reconhecer com facilidade nosso semelhante.

Montaigne chega mesmo a pensar que o retrato que apresenta de si pode tornar-se de interesse tanto mais geral quanto mais particular se revelar; e é em razão dessa verdade profunda que tamanho interesse devotamos a seu retrato, pois "todo homem traz em si a forma total da condição humana" (Livro III, cap. 2). Há mais: Montaigne está convencido de que "o ser verdadeiro é o princípio de uma grande virtude" (Livro II, cap. 18), como diria Píndaro; e essas palavras admiráveis que Montaigne toma de Plutarco, o qual as tirou de Píndaro, eu as faço minhas; desejaria inscrevê-las no frontispício dos Ensaios, pois o que se exprime sobretudo nelas é que constitui o ensinamento que colho em toda a obra.

Entretanto não parece que Montaigne tenha desde logo percebido, ele próprio, o alcance e a ousadia dessa resolução tomada de só aceitar a si mesmo verdadeiro e só se retratar com fidelidade. Daí essa hesitação inicial de seu traço, esse abrigo que procura nos densos matagais da história, esse amontoado de citações e de exemplos (ia dizer de "autorizações"), esse titubear infindável. Interessa-se por si a princípio confusamente, sem saber com exatidão o que mais importa e apreensivo quanto ao que merece maior atenção, pois talvez seja o que mais omissível se apresenta e o que mais comumente se despreza. Tudo, nele próprio, permanece curioso a seus olhos, divertido e surpreendente. "Não vi no mundo monstro ou milagre mais manifesto do que eu mesmo; fazemo-nos ao estranho, qualquer que seja, pelo uso e pelo tempo, porém quanto mais me frequento e me conheço, mais a minha deformidade me espanta, menos entendo o que vai em mim". Bem divertido é ouvi-lo falar assim de sua deformidade, quando o que nele amamos é precisamente o que nos permite identificá-lo como igual a nós, homem simplesmente, homem comum.

É somente a partir do terceiro e último livro dos Ensaios (que não figura nas primeiras edições) que, em plena posse, não de si mesmo (não o estará nunca, nem ninguém o poderá estar jamais) mas de seu assunto, Montaigne não mais titubeia; sabe então o que quer dizer, o que importa dizer, e di-lo excelentemente, com uma graça na maneira, uma jovialidade, uma felicidade de expressao e uma sutileza incomparáveis.

"Os outros formam o homem (os moralistas), eu o relato", escreve (Livro III, cap. 2); e logo adiante mais sutilmente: "Não pinto o ser, pinto-lhe a passagem" (os alemães diriam o "werden"). Com efeito, Montaigne mostra-se sempre preocupado com o perpétuo fluxo de todas as coisas e, com tais palavras, aponta a instabilidade da personalidade humana, que nunca é e apenas toma consciência de si mesma num fugidio "devenir". Pelo menos, em meio ao desmoronamento de todas as outras, cresce essa certeza de que acerca do assunto de si mesmo, ele, Montaigne, é "o mais sábio homem vivo"; e de que "jamais nenhum outro chegou com maior precisão e amplitude ao fim proposto à sua tarefa", para a qual somente uma virtude se exige, "a fidelidade". E Montaigne acha que pode advertir: "esta aí se encontra, a mais sincera e a mais pura".

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Creio provir o grande prazer que nos proporcionam os Ensaios do grande prazer que Montaigne experimentou ao escrevê-los e que sentimos, por assim dizer, em cada frase. De todos os capítulos que compoem os três livros dos Ensaios um só é francamente fastidioso; é o maior de todos, o único escrito com aplicação, sequência e cuidado na composição: o da "Apologia de Raymond de Sebonde", filósofo espanhol do século XV, que ensinou medicina na Universidade de Toulouse e de quem Montaigne traduzira penosamente a "Theologia Naturalis" a pedido de seu pai. "Foi uma tarefa bem estranha e nova para mim; mas gozando então a felicidade de uns lazeres e não podendo nada recusar às ordens do melhor dos pais, levei-a a cabo como pude" (Livro II, cap. 12). Esse capítulo, que se colocou entre os do segundo livro dos Ensaios, foi entretanto o primeiro que Montaigne escreveu. É dos mais célebres e mais amiúde citado, pois figura entre aqueles em que o pensamento de Montaigne, tão desordenado e naturalmente erradio, se esforça mais seriamente por desenvolver uma espécie de doutrina e por dar uma aparente consistência a seu inconsistente ceticismo. Mas, exatamente porque o refreia sem cessar, seu pensamento perde aqui toda a sua graça, todo o encanto delicioso de sua despreocupada ociosidade; sentimos que o dirige para um objetivo e seu pensamento nos agradará sobretudo quando, mais tarde, ele o deixar colher, ao acaso dos encontros, todas as flores dos atalhos inesperados pelos quais se aventura hesitante, sem traçado preconcebido. Compraz-me observar aqui que as obras mais felizes, mais belas, são também aquelas que o autor leve maior alegria e maior prazer em escrever, aquelas em que menos se sentem o esforço e o controle. Em matéria de arte de nada serve a "seriedade"; o prazer é o melhor dos guias. Em todos, ou em quase todos os outros escritos dos Ensaios, o pensamento de Montaigne permanece, por assim dizer, no estado fluido; tão hesitante, tão cambiante e mesmo contraditório que, com o correr dos tempos, todas as interpretações lhe puderam ser dadas. Alguns, como por exemplo Pascal e Kant, procuram descobrir um cristão em Montaigne; outros, como Emerson, veem nele um protótipo do cético; outros um precursor de Voltaire. Sainte-Beuve chega a julgar os Ensaios uma espécie de preparação, de antecâmara, para a Ética de Spinoza. Porém Sainte-Beuve parece-me mais perto da verdade quando escreve: "A pretexto de se particularizar, de se enfeixar com suas manias singulares, atingiu um recanto de todos. E nesse seu retrato (no retrato que de si mesmo traçou com displicência, sem pressa, retocando-o sem cessar) foi, na medida mesmo em que se pormenorizou a si próprio, o melhor pintor, e o mais hábil, da maioria dos homens". "Ondulante e diverso" diria Montaigne de si mesmo. E também: "Todos trazem o seu bem em si" (Port-Royal; III, cap. 2).

Julgo que o fato de ter aceito as inconsequências e as contradições de seu próprio eu constitui uma grande força em Montaigne. Logo no início do segundo livro dos Ensaios, a frase seguinte a um tempo nos desperta e nos alerta: "Os que se dedicam ao controle das ações humanas encontram o maior obstáculo em juntá-las e dar-lhes igual lustre, pois elas se contradizem comumente de tão estranha maneira, que parece impossível terem saído da mesma fonte" (Livro I, cap. 1). Essa inconsequência do ser humano nenhum dos grandes especialistas do coração, Shakespeare, Cervantes ou Racine, deixou de percebê-la até certo ponto. Mas, sem dúvida alguma, o estabelecimento provisório de uma psicologia algo sumária, de grandes linhas determinadas e fixas, se fazia necessário de início à construção de uma arte clássica. Era preciso que houvesse amorosos totalmente amorosos, avaros totalmente avaros, ciumentos inteiramente ciumentos, e não homens que fossem a um tempo um pouco tudo isso. Montaigne refere-se a esses "bons autores" (e o que diz se aplica aos que vieram depois, mais ainda do que aos que já conhecia) que "escolhem um caráter universal, e de acordo com a imagem, vão acertando e interpretando as ações do personagem; e se não conseguem torcê-las suficientemente apelam para a dissimulação" (Livro II, cap. 1). E acrescenta: "Augusto lhes escapou", assim como Saint-Evremont dirá mais tarde: "Há refolhos e meandros em nossa alma que lhe escaparam (a Plutarco)… julgou os homens grosseiramente e não percebeu a que ponto são contraditórios em si mesmos… O que lhe parecia inconsequente ele o atribuía a causas estranhas… que Montaigne compreendeu muito melhor". Sou de opinião que Montaigne soube ver muito mais do que apenas "a inconstância", como Saint-Evremont. Creio que, debaixo dessa palavra, se esconde em verdade o problema essencial, que só muito mais tarde será ventilado por Dostoiewsky, e em seguida por Proust. O que levará alguns a observarem: "O que aqui se coloca em debate é a própria noção do homem sobre a qual vivemos", noção que Freud e outros, na atualidade, procuram destruir. É, talvez, pelas súbitas luzes jogadas inopinadamente, e como que involuntariamente, sobre as fronteiras da personalidade e sobre a instabilidade do eu, que Montaigne me parece mais surpreendente. É por elas que nos toca mais diretamente.

Sem dúvida, os contemporâneos de Montaigne menosprezaram esses trechos que mais nos comovem hoje; não souberam vê-los ou, pelo menos, avaliar-lhes a importância. E talvez o próprio Montaigne, compartilhando dessa indiferença, assim como compartilhava da curiosidade de sua época pelo que já agora não nos interessa, dissesse, volvendo a terra hoje em dia: "Se me houvesse passado pela cabeça que isso vos preocuparia, diria muito mais!" Por que não o fizestes? Pois não nos importa que agradásseis a vossos contemporâneos, mas sim a nós mesmos. É, o mais das vezes, pelo que lhe censurou e desdenhou à sua época que um escritor consegue alcançar-nos através dos tempos. Faz-se mister uma perspicácia singular para discernir entre as preocupações do dia aquilo que poderá atrair o interesse das gerações porvindouras.

Antes a volúpia do que o amor parece ter desempenhado papel importante na vida de Montaigne. Casou, ao que se presume, sem grande entusiasmo, e se ainda assim foi bom marido, não deixou de escrever já no fim da vida: "Será talvez mais fácil privar-se por completo das relações sexuais, que permanecer sempre estritamente fiel ao dever em companhia de uma esposa" (Livro II, cap. 33), o que não comprova em absoluto que o tenha feito. Tinha um triste conceito das mulheres, e, passado o prazer que lhe davam, relegava-as aos cuidados do lar. Anotei, nos Ensaios, os trechos em que Montaigne a elas se refere; não há um só que não seja injurioso. Quanto aos filhos que teve, informa-nos sumariamente de que "morreram todos na primeira infância" (Livro II, cap. 8). Uma única filha escapa a tal infortúnio, e essas desgraças sucessivas não parecem tê-lo afeado demasiado.

Entretanto Montaigne não é incapaz de simpatia. Em especial pelos pequenos e humildes. "Dedico-me de bom grado aos pequenos, por uma natural compaixão que muito pode sobre mim" (Livro III, cap. 13). Mas, para equilíbrio de sua razão, é necessário que reaja imediatamente: "Compadeço-me ternamente das aflições alheias e choraria facilmente em companhia de outrem se soubesse chorar". (Livro II, cap. 11). La Rochefoucauld dirá, anos mais tarde, antecipando-se ao famoso "sejamos duros" de Nietzsche: "Sou pouco sensível à piedade e desejara não o ser em absoluto". Mas tais declaracões me comovem particularmente quando provêm daqueles que, como Montaigne ou Nietzsche, têm a alma naturalmente terna.

Da vida sentimental de Montaigne somente a amizade encontra oco em sua obra. A que consagrou a Etienne de la Boétie, três anos mais velho do que ele, e autor de uma única brochura Discours sur la servitude volontaire, parece ter tido em seu coração e em seu espírito um lugar considerável. Esse pequeno opúsculo não nos permite considerar La Boétie "o maior homem do século", como afirmava Montaigne, porém nos leva a compreender a natureza desse afeto do autor de Ensaios por uma alma extraordinariamente generosa e nobre.

Outra amizade ocupou também lugar especial na vida de Montaigne: a que dedicou a Maria de Gournay a quem chamava sua "filha por afinidade" "por certo querida muito mais que paternalmente, e conservada, no meu retiro e na minha solidão, como uma das melhores partes de meu próprio ser". É o que nos diz na velhice. E até acrescenta: "Somente a ela contemplo ainda neste mundo". Tinha ela apenas vinte anos, e Montaigne cinquenta e quatro, quando sentiu pelo autor dos Ensaios essa admiração e esse afeto "mais que excessivos". Seria indesculpável não nos referirmos a essa ligação puramente espiritual, porquanto foi graças aos cuidados de Mlle. de Gournay que pudemos ter a terceira e mais importante edição dos Ensaios (1595), publicada três anos após a morte de Montaigne. E à sua devoção devemos a conservação dos manuscritos que serviram mais tarde para estabelecer as mais completas edições

Por mais bela que tenha sido sua amizade por La Boétie, é-nos permitido pensar que talvez tivesse constrangido até certo ponto Montaigne. Podemos imaginar o que teria sido esse voluptuoso se não houvesse encontrado o amigo. E principalmente cabe-nos meditar sobre o que seria de seus Ensaios se La Boétie não morresse tão jovem (com 33 anos) e se tivesse continuado a exercer seu domínio sobre o espirito do amigo. Sainte-Beuve cita a propósito uma frase magnífica de Plínio, o Moço: "Perdi a testemunha de minha vida... temo viver doravante mais displicentemente". Mas essa displicência é o que mais admiramos em Montaigne. Diante de Lá Boétie fantasiava-se um pouco à moda antiga. É sincero, como sempre, pois está apaixonado de heroísmo, mas não aprecia, e dia a dia o apreciará menos que o homem se mostre afetado. E cada vez mais há de temer também que lhe seja necessário diminuir-se para subir. 

Em uns versos latinos que lhe envia, La Boétie escreve a Montaigne: "A ti, amigo, que nos temos inclinado tanto para os vícios como para as virtudes rutilantes, cabe combater com mais afinco". Tanto por tendência natural como por filosofia, uma vez desaparecido La Boétie, Montaigne procurará "combater" cada vez menos a si próprio. Nada repugna mais a Montaigne do que uma personalidade (ia dizer impersonalidade) fictícia laboriosamente alcançada e controlada de acordo com a decência, a moral, os costumes e quaisquer vestígios de preconceitos. Dir-se-ia que o ser verdadeiro, que tudo isso molesta, falseia ou desvirtua, tem para ele um valor místico, e que dele espera uma qualquer revelação. Bem compreendo quão fácil se torna aqui jogar com as palavras, ver apenas do ensinamento de Montaigne o conselho de entregar-se à natureza, de seguir cegamente os instintos e mesmo dar preferencia aos mais vis que sempre hão de parecer os mais sinceros, isto é, os mais naturais, aqueles que pela sua própria densidade se depositarao fielmente no fundo do recipiente, mesmo depois que os mais nobres transportes o hajam sacudido…

Acredito porém que seria mal compreender Montaigne, o qual, embora conceda a tais instintos que temos em comum com os animais uma parte porventura demasiado bela, sabe alçar seu vôo e não consente jamais em se tornar escravo ou vítima deles.

É natural que, com tais idéias, Montaigne se sinta pouco disposto ao arrependimento, à contrição. "Envelheci de oito anos desde minhas primeiras publicações", escreve em 1588, "mas duvido de que me tenha corrigido em qualquer sentido" (Livro III, cap. 9). Mais ainda: "Minhas desordens nesse ponto (o desregramento dos costumes) desgostaram-me como deviam; eis tudo". (Livro II, cap. 11). Declarações dessa ordem abundam na última parte dos Ensaios. Posteriormente acrescenta, ainda, para maior indignação de muitos: "Se tivesse que reviver, tornaria a viver como vivi; nem lamento o passado nem temo o futuro" (Livro III, cap. 2). Em verdade, essas declaracões são nada menos que cristãs. Sempre que Montaigne alude ao cristianismo, fá-lo com a mais estranha, senão maliciosa impertinência. Ocupa-se amiúde com a religião, jamais com Cristo. Nem uma só vez cita-lhe a palavra. É de se duvidar que jamais haja lido os Evangelhos, ou melhor, é certo que nunca os leu seriamente. Quanto às suas reverências ante o catolicismo, exprimem elas, é evidente, muita prudência. Não se deve esquecer as instruções dadas em 1572 por Catarina de Medícis a Carlos IX e que provocaram o massacre dos protestantes em toda a França. O exemplo de Erasmo (falecido em 1536) o põe de sobreaviso. Compreende-se que não desejasse ser constrangido a escrever retratações. Bem sei que Erasmo não escreveu, finalmente, as suas, mas teve que prometer à Igreja fazê-lo. E essa simples promessa já não deixa de ser incomodativa. É preferível a astúcia. No capítulo intitulado Das preces, Montaigne multiplica os acréscimos conciliatórios nas edições de 1582 e 1595. Por ocasião de sua viagem, em 1581, presenteara o Papa Gregório XIII (fundador do calendário ainda em uso hoje) com um exemplar de seu livro. O Papa o felicita, porém com algumas restrições que o autor levará em consideração posteriormente. Montaigne insiste por demais, e através de inúmeras repetições, sobre sua perfeita ortodoxia e sua submissão à Igreja. Esta mostrava-se então assaz conciliatória. Pactuara com o desabrochar cultural do Renascimento. Erasmo, a despeito da acusação de ateísmo que fizera com que lhe condenassem os livros em Paris, fora indicado para o cardinalato; as obras de Maquiavel, tão profundamente irreligiosas, haviam sido impressas em Roma por ordem de Clemente VII.

A tolerância e o relaxamento instigavam os grandes líderes da Reforma a uma intransigência ainda maior. Com o catolicismo, Montaigne podia ajeitar-se; com o protestantismo, não. Ele aceitava a religião com a condição de se contentar ela com a fachada. O que escrevia acerca dos "príncipes mais capazes" ele o pensava também das autoridades eclesiásticas: "Todo respeito e toda submissão lhes são devidos, exceto os da inteligência; não cabe à minha razão curvar-se e dobrar-se mas sim a meus joelhos". (Livro III, cap. 8).

Para melhor proteger seu livro, sente a necessidade de ainda acrescentar algumas linhas tranquilizadoras, em que mal o reconhecemos, aqueles capítulos de seus Ensaios que mais se revelam suscetíveis de alertar os corações sinceramente cristãos. "Esse único fim de outra vida, felizmente imortal, merece que lealmente abandonemos comodidades e prazeres". Esse trecho que, aliás, permanece manuscrito e que só conhecemos depois de sua morte (Livro I, cap. 39), bem como outros semelhantes, parece colocar-se em sua obra à guiza de para-raio, ou melhor, como esses rótulos de xarope ou limonada que, em épocas de "regime seco", se grudam nas garrafas de whisky. Pois não lemos com efeito algumas linhas adiante que: "De unhas e dentes devemos agarrar-nos a esses prazeres da vida que os anos nos arrancam das mãos uns após outros". (Livro I, cap. 39). Esse trecho da primeira edição, mal mascarado pelas linhas acrescentadas, mostra-nos o verdadeiro Montaigne, o "inimigo jurado de qualquer falsificação" (Livro I, cap. 40). Tão cautelosa palinódia me indignaria se não pensasse ter ela sido imprescindível para que chegasse até nós a sua mercadoria. "Pode ter parecido excelente católico, escreve Sainte-Beuve, salvo por se ter mostrado muito pouco cristão". E assim com justeza se diria de Montaigne o que ele mesmo disse do imperador Julião: "Em matéria de religião era só trapaça; apelidaram-no o Apóstata, por haver abandonado a nossa; creio mais verosímil, entretanto, não a ter tido jamais no coração e, sim, a ter aceito por obediência às leis". E ajunta, citando Ammien Marcellin: "Há muito alimentava com ternura o paganismo em seu coração, mas não ousava abrir-se porque todo o seu exército era cristão". Por isso mesmo Julião o atrai tao fortemente.

O que Montaigne admira no catolicismo, o que lhe agrada e o que o leva a propugná-lo, é a ordem, a antiguidade. "Nesse debate em virtude do qual a França se vê jogada na guerra civil, o melhor e mais sábio partido é sem dúvida aquele que leva a manter a religião e a ordem antiga do país". (Livro II, cap. 19). Pois "todas as grandes mutações abalam o Estado e o desmantelam". E ainda "o mal antigo e mais conhecido é sempre mais suportável do que o mal recente e não experimentado ainda" (Livro III, cap. 9). Além de sua ignorância dos Evangelhos, não há onde procurar outras razões para explicar seu ódio aos reformadores protestantes. Montaigne deseja conservar tal qual é a religião da Igreja, a religião francesa; e não por acreditá-la a única boa, mas por considerar perigoso mudar.

Pelos mesmos motivos sentimos em toda a vida de Montaigne, através de todos os seus escritos, um constante amor à ordem e à medida, à preocupação do bem público e à resistência a deixar que, contra o interesse geral, prevaleça seu interesse particular. A retidão de seu julgamento e a defesa dessa retidão atilem mais do que tudo a seus olhos, e lhe parece dever se sobreporem a quaisquer considerações: "…antes romper com os negócios a sujeitar-lhes minha fé e minha consciência". Prefiro tomá-lo aqui ao pé da letra sem indagar se não se gaba demasiado; pois é necessário em nossos dias que tais palavras sejam ouvidas, como era necessário nos tempos agitados de Montaigne que algumas consciências íntegras mantivessem sua independência e sua autonomia acima das submissões gregárias e das covardes concordâncias. "Todas as generalizações são covardes e perigosas" (Livro III, Cap. 8) e mais ainda: "não há trem de vida mais estúpido e frágil do que aquele que se pauta pelas ordenações e disciplinas" (Livro III, cap. 13). Os trechos desse gênero abundam nos Ensaios e como me parecem da mais alta importância, sobretudo hoje, citarei ainda este: "O público exige que se traia e que se minta (ainda terá de acrescentar mais tarde e que se massacre); abdiquemos dessa incumbência em favor de outros mais obedientes e acomodatícios" (Livro III, cap. 1). Decididamente Montaigne se adaptava mal à política. Tampouco se mostraria hábil na direção dos negócios, e quando renunciou às suas funções de magistrado, ou mais tarde, ao deixar a "marie" de Bordéus, para ocupar-se exclusivamente de si mesmo, julgou com muito bom senso que assim é que melhor serviria o Estado. A humanidade inteira, ajunto eu, pois é preciso observar que a ideia de humanidade se coloca, em Montaigne, muito acima da ideia de Pátria. Depois de um extraordinário elogio à França, ou pelo menos a Paris "glória da França e um dos mais nobres ornamentos do mundo", que ele "ama de ternura até em suas verrugas e suas manchas" (Livro III, cap. 9), toma o cuidado de declarar a amizade mais alta que dedica ao gênero humano: "considero todos os homens meus compatriotas e tanto abraço a um polonês como a um francês, pospondo os laços nacionais aos universais e comuns" (idem). E diz mais: "As amizades puras que adquirimos sobreexcedem as que as ligações de clima e de sangue nos outorgam. A natureza colocou-nos livres no mundo. Nós é que nos prendemos a certos lugares tal qual os reis da Pérsia que se comprometiam a somente beber a água do rio Choaspez, abdicando assim nesciamente do direito de usar todas as demais águas e secando, para seus olhos, todo o resto do mundo". (idem).

Permanecemos sempre em débito para com Montaigne; como fala de tudo sem ordem nem método, cada qual respiga nele o que mais lhe apetece e, o que não raro, é o que outro menosprezou. Nenhum autor será mais facilmente invocado sem perigo de traição, pois ele próprio dá o exemplo e sem cessar se contradiz e se trai a si próprio. "Em verdade, não temo confessá-lo", diz ele, "em caso de necessidade acenderia facilmente uma vela a S. Miguel e outra à serpente" (Livro III, cap. 1). E por certo é isso coisa que há de agradar mais à serpente do que a S. Miguel. Eis porque Montaigne não foi nada apreciado pelos partidários, a quem não apreciava tampouco. Daí não ter ter sido muito acatado, depois de sua morte, pelo menos na França asperamente dividida pelos partidos. De 1595 (lembremos que faleceu em 1592) a 1635 houve apenas três ou quatro novas edições dos Ensaios. Foi no estrangeiro, na Itália, na Espanha, e sobretudo na Inglaterra, que Montaigne se tornou logo popular, durante esse período de desfavor, ou de indiferença, na França. Encontramos na obra de Bacon e na de Shakespeare vestígios indiscutíveis da influência dos Ensaios.

Afastando-se do cristianismo, é de Goethe que se aproxima por antecipação: "Amo, pois, a vida e a cultivo tal qual apeteceu a Deus outorgar-ma. A natureza é um guia amável, mas não menos prudente e justo". Essas frases, que figuram entre as últimas dos Ensaios, Goethe, mais tarde, as assinaria de bom grado sem dúvida. Assim remata a sabedoria de Montaigne. Nenhuma palavra inútil; e Montaigne muito cuidadosamente acresce à ideia de prudência, de justiça e de cultura a sua declaração de amor a vida.

O que principalmente Montaigne nos ensina é aquilo a que se deu muito depois o nome de liberalismo. E parece-me que, hoje em dia, em uma época que as convicçoes políticas ou religiosas dividem horrivelmente os homens e os jogam uns contra os outros, essa é a mais sábias das lições. "Nas dissenções atuais deste Estado", diz, "meu interesse não me leva a ignorar as qualidades louváveis de meus adversários nem as censuráveis daqueles que segui" (Livro III, cap. 10). Acrescenta pouco mais tarde: "Uma boa obra não perde seus encantos por demandar contra mim" (idem). E mais adiante, no último momento: "Querem que nossa persuasão e nossos juízos sirvam não à verdade, porém aos projetos de nosso desejo. Eu me inclinaria antes para a outra extremidade, tão grande é o medo que tenho de ser subornado pelo meu desejo. Tanto mais quanto desconfio um pouco sentimentalmente das coisas que desejo" (idem). Tais qualidades de espírito e de alma nunca foram tao desejáveis, e jamais prestariam maiores serviços, do que nestes tempos em que tanto se desprezam.

Essa rara e extraordinária propensão, de que nos entretém amiúde, para ouvir e aceitar a opinião de outrem, a ponto de deixá-la prevalecer contra a sua própria, o impediu de se aventurar mais avante no caminho que seria mais tarde o de Nietzsche. Retém-no também uma prudencia natural, que, para sua salvação, nunca abandona de bom grado. Teme as regiões desérticas e aquelas em que o ar se rarefaz demasiado. Mas uma irrequieta curiosidade lhe anda ao encalço, e, no campo das Ideias, comporta-se sempre como nas suas viagens. O secretário que o acompanhou então anotou em seu diário: "Nunca o vi (a Montaigne) menos cansado, nem menos queixoso de suas dores (sofria de pedras, o que não o impedia de permanecer a cavalo longas horas); por caminhos e pousadas mantinha o espírito atento a tudo o que encontrava e procurava sempre entreter-se com os estrangeiros, o que, creio eu, lhe atenuava os padecimentos". Declarava não ter outro projeto em vista senão o de passear por regiões desconhecidas. O mesmo diarista acrescenta: "Tão grande era seu prazer de viajar que detestava as vizinhanças dos lugares de pouso obrigatório". E tinha por hábito afirmar que "após uma noite agitada, ao lembrar-se pela manhã que devia visitar tal nova cidade, ou região, se levantava cheio de alegria". O próprio Montaigne escreve nos Ensaios: "Bem sei que tomado ao pé da letra esse prazer de viajar revela inquietude e irresolução; em verdade são estas as minhas qualidades dominantes. Confesso que somente no sonho e no desejo encontro algo que me prenda; só o desejo de variedade me satisfaz; e assim também a posse da diversidade". (Livro III, cap. 9).

Montaigne tinha cerca de cinquenta anos ao empreender a primeira e única grande viagem de sua vida: a viagem à Alemanha do Sul e à Itália. Durou ela dezassete meses; e talvez durasse mais ainda, dado o extremo prazer que sentia, se a sua eleição imprevista para a "Mairie" de Bordéus não o houvesse inesperadamente chamado à França. Desde então é para as ideias que transfere essa viva curiosidade que o empurrava para as estradas.

É muito edificante acompanhar, através das edições sucessivas dos Ensaios, a modificação de sua atitude ante a ideia da morte. Intitula um dos primeiros capítulos de seu livro: "De como filosofar é aprender a morrer". E aí lemos : " Com nada me entretive mais do que com imaginar a morte, mesmo na minha idade mais licenciosa". Tratar-se-ia de atenuar o horror dessas ideias domesticando-as. E na última edição de seus Ensaios, chega afinal a escrever: "Graças a Deus, posso ir-me quando Lhe aprouver, sem saudade de coisa alguma. Desprendo-me de tudo; logo me despedirei de todos, menos de mim. Nunca um homem se preparou mais pura e plenamente para deixar o mundo, nem se desprendeu dele mais completamente do que eu espero fazê-lo…", "e a vinda da morte não me trará nenhuma novidade" (Livro I, cap. 20). Essa morte ele quase chega a amá-la, como ama todas as coisas naturais.

Montaigne teve um fim muito cristão, é-nos relatado. Convenhamos em que não tomara esse caminho. É verdade que sua mulher e sua filha o assistiam em seus últimos instantes e sem dúvida o incitaram, por simpatia, como ocorre não raro, a morrer não dessa morte "quieta, solitária e recolhida, bem minha, adequada à minha vida retirada" (Livro III, cap. 9), que lhe "satisfizera", porém mais devotamente do que espontaneamente o tivera feito. Terá sido o pressentimento desse fim que o levou a escrever: "Se, entretanto, me coubesse escolher (a morte) eu preferiria, creio, o cavalo ao leito, e morrer fora de minha casa e longe dos meus" (idem).

Se me censurarem haver por demais acerado as ideias de Montaigne, eu responderei que inúmeros comentadores se preocupam com aparar-lhes as arestas. Nada mais fiz do que retirar os botões das pontas, desembrulhá-las da estopa que entulha um pouco os Ensaios e por vezes impede que os golpes nos atinjam. Mas a grande preocupação dos pedagogos, para com os autores audazes, mesmo quando já clássicos, é de torná-los inofensivos; ora, eu admiro a que ponto o trabalho dos anos já se encarrega naturalmente disso. Ao fim de muito pouco tempo o gume das mais novas ideias se gasta; por outro lado, uma espécie de adaptação permite manejá-las sem perigo de ferir-se.

Montaigne em sua viagem à Itália admira-se de encontrar os mais altivos monumentos da antiga Roma não raro semi-enterrados entre escombros. É pelo cimo que eles pouco a pouco se esboroam. Mas seus próprios escombros erguem mais alto o solo em que marchamos. E se, de nossos dias, tal ou qual campanário nos parece menos alto é porque o contemplamos de menos baixo.



Notas:

(1) Cargo equivalente ao de Prefeito em nossa organização administrativa (N. do T.).
(2) Entre aspas no texto original. Livraria no francês do século XVI tinha o sentido de biblioteca. Em inglês é ainda o vocábulo usado "library" (N. do T.).


(Tradução de Sérgio Milliet;  Biblioteca do Pensamento Vivo)



(Ilustração: Anonymous - 17th century, Montaigne studies)




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