quinta-feira, 9 de março de 2017

A MENINA MAIS FEIA DO MUNDO!, de Ana Elisa Ribeiro






Nunca conheci menina tão feia. Tinha uns cabelos escorridos, na altura quase da cinturinha de pilão, caindo pelas espáduas avermelhadas como a da índia de Alencar. Fazia as unhas delicadamente e piscava enormes olhos verdes em todas as direções. Era alta, o que me deixava invejosa. Se tinha algo que me dava vontade era de ser grande, não só para aparecer mais do que todos, mas primeiro para ter lugar no fim da fila da escola, posição sempre mais interessante. No recreio, ser baixo significava estar sempre adiante, com todos os demais nos meus calcanhares. Não tinha graça, exceto para aqueles que chamávamos de “os fominhas”.

A menina era feia como uma criatura mitológica. Monstrenga. Alta, morena, roliça, intoleravelmente atraente. Alimentava mais da metade dos sonhos de todos os meninos da escola. Era esbelta como uma porta. Intangível como uma ideia. Bem-vestida, bem-cuidada, mas distante. Não conseguia trocar duas palavras educadas sequer com a professora, aquela autoridade. Imaginávamos que, quando a menina feia crescesse, seria uma dona Magda como aquela: alta, escorregadia e fria. Os cabelos longos se tornariam coques apertados em cima da cabeça e se poderia ver com mais calma a verruga na nuca.

Os meninos da minha turma desejavam a menina feia. Eles queriam brincar com ela, tocar-lhe os dedos e as partes abauladas da bunda, queriam pensar coisas pornográficas e fazer gracinhas eróticas para ver se ela deixaria. A menina avançava com eles e recuava quando a brincadeira parecia incontornável. Ela falava muito de cremes de cabelo e de perfumes, também sabia algo sobre esmaltes e gostava de variar os batons. Ela se produzia, mesmo quando era obrigatório o uso de uniforme. Ela não parecia igual a ninguém. Ela se parecia com todas as protagonistas das novelas. Nem mesmo os uniformes a tornavam mais uma entre tantas outras.

Um dia, vimos a mãe da menina feia vir buscá-la na escola. Abriu-se a porta do carrão e saiu de lá uma imensa peruona. Muito loura e de bastas sobrancelhas negras, de imensos olhos acentuadamente azuis, unhas coloridas e beiços sádicos. Era uma jamanta. Não podia ser apenas uma mulher. Era, ao mesmo tempo, a mãe e a filha, talvez ainda o arremedo da avó espanholona. Travestida de um roupeiro inteiro, quase não se via rosto embaixo de tanta iluminação. Era obrigatório visá-la. Quase uma aparição amedrontadora. Com aquelas unhas, não era possível segurar um bebê. Com aquele cheiro forte, não se podia evitar a alergia. Com aqueles saltos altíssimos, não se podia andar. Era uma marcha que começava no chão e impactava até os cachos formatadinhos do cabelo amarelo. A menina feia nunca deve ter tido tempo de ser menininha. Não ouvi a voz da geringonça humana. A menina feia tinha muito caminho pela frente. Tal mãe, quase a filha. Um quase embaraçoso.

Mas não era assim o menino. Nunca eu vira gente tão bonita. Parecia um conceito. Liso, esguio, fechado. Inequivocamente, dizia um bom dia e um boa tarde, toda vez que chegava na sala. Mesmo quando ninguém respondia, ele cumprimentava o ar. Não era por ninguém. Era por ele. Alimentava pombos doentes, tinha pena de passarinhos e sabia tocar violão. Não sei ao certo a cor dos cabelos, o tamanho dos pés, a textura das mãos ou a cor dos olhos. Não dava tempo de saber. A laçada dele era antes. O fino do olhar de educado e lisonjeiro. Não sei direito se tinha espinhas e um pé tortinho. Não consegui notar embaixo daquele ar de queda livre que ele tinha. Era o menino mais bonito do mundo. Desses que deixam suspiros no ar, mas só para quem sabe sentir. Entrava na sala e lançava um brevíssimo olhar pelo arredor. Quando eu conseguia pegar a visada dele, mirava meus mais intensos sonhos. Era uma espécie de bênção, debaixo de uns cabelos pretíssimos e penteados para o lado esquerdo.

Minha angústia era aceitar os diversos em seus ritmos sincopados. A menina feia, com seus jasmins; o menino lindo, com sua hipnose. A peruona espanhola com sua britadeira de partir o dia a dia. As pessoas que valem a pena são assim: têm traços transparentes. Não se medem pelas cores nem pelos apetrechos. Elas nos inquietam sem usar os peitos ou as nádegas. Elas não somem da memória. O menino mais bonito que eu já conheci tinha um olhar tão doce que eu não lhe sabia a cor dos olhos. E ele me fez agrados tão bonitos que não guardei-lhe as medidas. Até hoje, e sempre, o que me faz lembrar dele é um beijo de olhos fechados, no meio da tempestade de vento, e um armário cheio de chocolates.





(Ilustração: Jean Bailly)




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