(Ilustração: Max Beckmann - A noite – 1919)
sexta-feira, 3 de março de 2017
ONDE NÃO HÁ NADA, NÃO HÁ NADA, de Émile Zola
No quarto, que se conservara fechado, as persianas deixavam entrar, pouco a pouco, manchas pardas de luz que se espalhavam em leque pelo teto. O ar viciado ficava cada vez mais pesado, mas todos continuavam no seu sono da noite: Lénore e Henri nos braços um do outro, Alzire com a cabeça para trás, apoiada na corcunda, enquanto o velho Boa-Morte, com a cama de Zacharie e Jeanlin só para ele, roncava de boca aberta. Nenhum ruído no cubículo ao lado da escada, onde a mulher de Maheu voltara a dormir dando de mamar a Estelle, com o seio caído para o lado, a criança atravessada na barriga, empanturrada de leite, adormecida também, sufocando-se nas carnes moles dos seios maternos.
O relógio de cuco, embaixo, deu seis horas. Ouviu-se ao longo das fachadas dos casebres o bater de portas, depois o pisar de tamancos na pedra das calçadas: eram as separadoras de carvão que partiam para a mina.
Até as sete horas houve outra vez silêncio; a partir de então, as persianas se abriram e através das paredes ouviram-se bocejos e limpar de gargantas. Por algum tempo rangeu uma máquina de moer café, sem que ninguém acordasse no quarto.
Subitamente, um barulho de tapas e gritos ao longe fez Alzire sentar na cama. Deu-se conta da hora e, descalça, correu e sacudiu a mãe.
— Mamãe! mamãe! É tarde e tens o que fazer... Cuidado! Vais esmagar Estelle.
E puxou a criança já meio sufocada sob a abundância dos seios.
— Inferno de vida! — tartamudeou a mulher, esfregando os olhos. — Ando tão esfalfada que podia dormir o dia inteiro. Veste Lénore e Henri, levo-os comigo; tu ficas com a Estelle, não quero expô-la, tenho medo de que apanhe alguma doença com este tempo maldito.
Lavou-se às pressas, enfiou uma velha saia azul, a mais limpa que tinha, uma bata de lã cinzenta, na qual pusera dois remendos na véspera.
— E a sopa, como é que vai ser? Vida miserável! — murmurou ela de novo.
Enquanto sua mãe descia, esbarrando em tudo, Alzire retornou ao quarto levando consigo Estelle, que voltara a berrar; já estava acostumada com as manhas da criança; nos seus oito anos, possuía astúcias de mulher capazes de acalmá-la e distraí-la. Com muito jeito, deitou-a na sua cama ainda quente e adormeceu-a dando-lhe um dedo para chupar. Não era sem tempo, porque começava outra algazarra: teve que apaziguar Lénore e Henri, que enfim acordavam. Esses dois não se entendiam muito bem, só se abraçavam enquanto dormiam. A menina, de seis anos, engalfinhava-se no garoto logo que acordava; este, que era dois anos mais moço, recebia os tapas sem retribuí-los. Ambos tinham uma cabeça enorme, como um balão, de cabelos eriçados e amarelos. Foi preciso que Alzire puxasse a irmã pelas pernas, ameaçando-a com uma boa surra. Depois repetiu-se a algazarra durante a lavagem do rosto e a cada peça de roupa que Alzire lhes enfiava. Evitava-se abrir as persianas para não perturbar o sono do velho BoaMorte, que continuava a roncar, apesar da terrível gritaria das crianças.
— Está pronto! Vocês ainda estão aí em cima? — gritou a mãe.
Tinha aberto os postigos das janelas, reavivado o fogo, colocado mais carvão. Sua esperança era que o velho não tivesse engolido toda a sopa, mas encontrou o tacho lambido. Colocou no fogo um punhado de aletria que tinha de reserva havia três dias; comê-la-iam assim, feita em água, sem manteiga: não devia restar nada da insignificância da véspera, mas ficou surpresa ao ver que Catherine, ao preparar as porções, miraculosamente deixara um pouco, do tamanho de uma noz. Fora isso, no entanto, desta vez o guarda-comida estava completamente vazio; nada, nem uma côdea de pão, um resto de provisões, um osso para roer... Que ia ser deles se Maigrat não quisesse fiar mais, se os burgueses da Piolaine não lhe dessem cem soldos? Quando os homens e a moça voltassem da mina teriam que comer alguma coisa; infelizmente ainda não tinham inventado um meio para que se vivesse sem comer.
— Vão descer ou não vão? — gritou ela, zangada. — Já devia ter saído.
Quando Alzire e as duas crianças apareceram, repartiu a aletria em três pratos pequenos. Ela não estava com fome, disse. Ainda que Catherine já tivesse passado água pela borra de café da véspera, passou mais um pouco e bebeu dois canecos de um café tão fraco que mais parecia chá. Mesmo assim, sentiu-se reconfortada.
— Escuta — repetiu ela a Alzire —, deixa teu avô dormir, cuida de Estelle para que não quebre a cabeça, e, se ela acordar e berrar muito, aqui tens um torrão de açúcar... Prepara uma água açucarada e dá-lhe algumas colheradas. Sei que és sensata e não vais comê-lo.
— E a escola, mãe?
— A escola... pois fica para um outro dia. Estou precisando de ti.
— E a sopa, queres que a faça, se demorares?
— A sopa, a sopa... Não, espera por mim.
Alzire, de uma inteligência precoce de menina enferma, sabia fazer sopa muito bem. Devia ter compreendido, não insistiu.
Agora todo o conjunto habitacional já estava desperto, grupos de crianças iam para a escola arrastando os tamancos. Deram oito horas; à esquerda, na casa de Levauque, um barulho de conversa foi aumentando. As mulheres começavam o seu dia, em volta das cafeteiras, mãos nos quadris, tagarelando sem descanso, verdadeiras línguas — de trapo. Uma cabeça definhada, de lábios grossos e nariz chato, apareceu repentinamente do outro lado do vidro da janela, gritando:
— Escuta, tenho novidade!
— Não, não, mais tarde — respondeu a mulher de Maheu. — Tenho de sair.
E, receando sucumbir ao oferecimento de um copo de café quente, empurrou aos tapas Lénore e Henri para a porta e saíram. Em cima, o velho Boa-Morte continuava a roncar num compasso que embalava a casa.
Na rua, a mulher admirou-se ao constatar que o vento amainara. Era um degelo súbito, o céu cor de terra, as paredes viscosas de uma umidade esverdeada, os caminhos encharcados de uma lama resinosa, dessa lama típica das regiões carboníferas, negra como a fuligem diluída, espessa e pegajosa a ponto de lá ficarem enterrados os tamancos. Logo de saída teve de bater em Lénore porque a menina divertia-se em juntar o lodo sobre os tamancos, como numa pá. Ao deixar o conjunto habitacional, contornou o aterro e tomou o caminho do canal, atravessando, para encurtar caminho, ruas intransitáveis, terrenos baldios fechados por tapumes cobertos de hera. Passou por diversos galpões compridos edifícios de fábricas, altas chaminés cuspindo fuligem, sujando esses arredores arrasados de subúrbio industrial. Por trás de um bosque de choupos, a velha mina Réquillart exibia o desmoronamento de sua torre do sino de rebate, da qual só restavam em pé as vigas mais grossas. Dobrando à direita, a mulher e as duas crianças entraram na estrada real.
— Espera um pouco, porcalhão! — exclamou a mãe — Vou te ensinar como é que se fazem bolas de barro.
Agora era Henrique, tinha apanhado um punhado de lama para amassar. As duas crianças, esbofeteadas em conjunto, voltaram à ordem, mas sem deixar de olhar para trás, para ver as pegadas que haviam feito na lama. No fim, já patinhavam, exaustas dos esforços que faziam para despegar os tamancos a cada passada.
Do lado de Marchiennes, a estrada tinha duas léguas retas de pavimento que mais pareciam uma fita embebida de graxa entre terras avermelhadas. Do outro lado, porém, esta mesma estrada descia em ziguezague através de Montsou, construída num declive ondulado que ia dar na planície. Essas estradas ao norte, traçadas a cordel entre as cidades manufatureiras, com curvas suaves e subidas lentas, estavam sendo construídas aos poucos, tendentes a transformar um departamento numa colmeia de trabalho. As casinhas de tijolos, pintadas em cores variadas para alegrar o ambiente — umas de amarelo, outras de azul, outras de preto, estas últimas sem dúvida já antecipando a cor final de todas —, desciam serpenteando à direita e à esquerda, até a base do declive. Algumas belas casas de dois andares, residências dos chefes das fábricas, furavam a linha apertada das fachadas estreitas. Uma igreja, também de tijolos, mais parecia algum modelo novo de alto-forno, com seu campanário quadrado, já sujo da poeira do carvão. E, entre as refinarias de açúcar, cordoarias e fábricas de moagem, o que dominava eram as salas de baile, os botequins, as cervejarias, e em tão grande número que, para mil casas, havia mais de quinhentas tabernas.
Ao aproximar-se dos depósitos da companhia, vasto renque de armazéns e oficinas, a mulher resolveu levar Henri e Lénore pela mão, um à direita, outro à esquerda. Logo adiante ficava o palacete do diretor, o Sr. Hennebeau, uma espécie de chalé amplo, separado da estrada por uma grade, com um jardim onde vegetavam árvores raquíticas.
Nesse momento, em frente à porta, estacionava uma carruagem; desembarcaram um senhor condecorado e uma senhora de capa de peles: alguma visita de Paris vinda pelo trem e que devia ter descido na estação de Marchiennes, porque a Sra. Hennebeau, surgindo na meia-luz do vestíbulo, soltou uma exclamação de surpresa e alegria.
— Caminhem, seus malandros! — ralhou a mulher, puxando as duas crianças, que se arrastavam pela lama.
Estava chegando à venda de Maigrat, daí seu nervosismo. Maigrat morava bem ao lado do diretor, um simples muro separava o palacete da sua casinha; tinha ali um armazém, uma edificação comprida que dava para a estrada; era uma loja sem vitrine, mas onde havia de tudo: condimentos, artigos defumados, frutas, pão, cerveja, caçarolas. Antigo fiscal na Voreux, Maigrat começara com uma pequena cantina; depois, graças à proteção dos chefes, seu negócio aumentara, matando pouco a pouco o comércio a varejo de Montsou. Ele centralizava as mercadorias, a considerável clientela dos conjuntos habitacionais de mineiros permitia-lhe vender mais barato e abrir créditos maiores. Aliás, permanecera nas mãos da companhia, que lhe tinha construído a casinha e o armazém.
— Aqui estou outra vez, Sr. Maigrat — disse a mulher com humildade, ao dar com ele justamente à porta.
O homem encarou-a sem responder. Era gordo, frio e polido, e gabava-se de nunca voltar atrás numa decisão.
— O senhor não pode mandar-me embora como ontem. Temos de comer pão, daqui até sábado... Eu sei, nós lhe devemos sessenta francos há dois anos...
Tentava explicar-se em frases curtas, saídas a custo. Era uma dívida antiga, contraída durante a última greve. Vinte vezes tinham prometido saldá-la, mas não conseguiam, mal podiam entregar-lhe quarenta soldos por quinzena. Para cúmulo, acontecera-lhes uma desgraça na antevéspera, ela tivera de pagar vinte francos a um sapateiro que os ameaçava com uma penhora; eis a razão por que estavam sem dinheiro, de outro modo teriam ido até sábado, como os outros mineiros.
Maigrat, barrigudo, de braços cruzados, respondia negativamente com a cabeça a cada súplica.
— Só dois pães, Sr. Maigrat. Sou comedida, nem quero café. Nada mais que dois pães de três libras(*) por dia...
— Não! — berrou ele enfim com toda a força.
Sua esposa apareceu: uma criatura insignificante, que passava os dias sobre o livro do registro, sem mesmo ousar levantar a cabeça. Fugiu assustada ao ver a infeliz virar para ela uns olhos de súplica ardente. Dizia-se que cedia o leito conjugal às operadoras de vagonetes que faziam parte da clientela. Era coisa sabida: quando um mineiro queria uma prorrogação do crédito, bastava enviar sua filha ou esposa, feias ou belas, contanto que fossem condescendentes.
A mulher de Maheu, que continuava a suplicar com o olhar, sentiu-se chocada com o clarão pálido daqueles olhinhos que a desvestiam. Encolerizou-se; compreenderia tal audácia antes de ter tido sete filhos, quando era jovem. Partiu puxando violentamente Lénore e Henri, que juntavam cascas de nozes jogadas na sarjeta para levar para casa.
— O que está fazendo não lhe trará nenhum proveito, Sr. Maigrat, não esqueça!
Agora só lhe restavam os burgueses da Piolaine. Se esses não dessem os cem soldos, então o melhor seria deitar-se e esperar pela morte.
Tomou à esquerda o caminho de Joiselle. A sede da administração era ali, numa volta da estrada, um verdadeiro palácio de tijolos, onde os ricaços de Paris, príncipes, generais e gente do governo vinham todos os outonos participar de grandes jantares. Enquanto caminhava, ia pensando onde gastaria os cem soldos: primeiro pão, depois café, em seguida um quarto de manteiga e um alqueire(**) de batatas para a sopa da manhã e para o guisado da noite; finalmente, talvez um pouco de torresmos, porque o pai precisava de carne.
O pároco de Montsou, Padre Joire, passou levantando a batina, com delicadezas de velho gato bem alimentado que tem medo de molhar o pelo. Era um bom sujeito, só que fingia não se interessar por nada, para não ter problemas nem com operários, nem com patrões.
— Bom dia, senhor pároco.
Ele não parou, apenas sorriu para as crianças e deixou-a parada no meio da estrada. Apesar de não ter religião, ela imaginou de repente que esse padre ia dar-lhe alguma coisa.
E a caminhada recomeçou na lama negra e pegajosa. Ainda tinha dois quilômetros pela frente e as crianças deixavam-se arrastar, cansadas, não se divertindo mais. À direita e à esquerda da estrada desenrolavam-se os mesmos terrenos baldios, fechados por tapumes cobertos de hera, os mesmos edifícios de fábricas, sujos de fumaça, coroados de altas chaminés. Depois, em pleno campo, as terras planas se estendiam, imensas, iguais a um oceano de moitas escuras, sem o mastro de uma árvore até a linha violácea da floresta de Vandame.
— Mamãe, me leva no colo!
Levou-os, ora um, ora outro. Charcos acidentavam o calçamento, arregaçou a saia para não chegar muito suja. Três vezes quase caiu, tão escorregadias estavam aquelas malditas pedras. Ao chegarem, finalmente, à escadaria da mansão, dois cães enormes correram para eles ladrando tão forte que as crianças começaram a chorar de medo. Foi preciso que o cocheiro apanhasse um chicote.
— Tirem os tamancos e entrem — disse Honorine.
Na sala de jantar mãe e filhos ficaram imobilizados, atordoados pelo calor, sem jeito diante dos olhares daquele casal de velhos estendidos em suas poltronas.
— Minha filha — disse a dona da casa —, faze a tua caridade.
Os Grégoire encarregavam Cécile da distribuição de suas esmolas. Com isso pensavam estar inculcando na filha uma bela educação. Era preciso ser caridoso; diziam mesmo que sua casa era a casa de Nosso Senhor. Deleitavam-se em dizer que praticavam a caridade com inteligência; na verdade, viviam possuídos do pavor de serem enganados e de encorajarem os vícios. Por isso nunca davam dinheiro, nunca! nem dez soldos, nem mesmo dois; então não era sabido que assim que um pobre se via com dois soldos ia logo bebê-los? Suas esmolas, portanto, eram sempre em gêneros, principalmente em roupas quentes, distribuídas no inverno às crianças indigentes.
— Ah, pobrezinhos! — exclamou Cécile. — Estão roxos de frio... Honorine, vai buscar o pacote no armário.
As criadas também olhavam aqueles miseráveis com a piedade e a ponta de inquietação daqueles que não precisam preocupar-se com o que vão jantar. Enquanto a camareira subiu, a cozinheira permaneceu ali, voltou a colocar o que sobrara do bolo na mesa e ficou de braços cruzados.
— Felizmente — continuou Cécile — ainda tenho dois vestidos de lã e uns lenços de pescoço. Vocês vão ver como os pobrezinhos vão ficar aquecidos!
Só então a mulher de Maheu pôde soltar a língua; disse gaguejando:
— Muito obrigada, senhorita... Os senhores todos são muito bons.
Os olhos encheram-se de lágrimas, estava certa de que lhe dariam os cem soldos, só não sabia como pedi-los se não oferecessem. A camareira estava custando a voltar, houve um silêncio embaraçoso. Agarradas à saia da mãe, as crianças arregalavam os olhos na contemplação do bolo.
— Você só tem esses dois? — perguntou a Sra. Grégoire para romper o silêncio.
— Não, senhora. Tenho sete. O Sr. Grégoire, que voltara ao seu jornal, teve um sobressalto de indignação.
— Sete filhos! Por quê, Santo Deus?
— Que imprudência! — murmurou a senhora.
A mulher de Maheu esboçou um gesto vago de desculpa. Que havia de fazer? Não eram planejados, vinham naturalmente. Depois, quando cresciam, sempre produziam, ajudavam na manutenção da casa. Na família dela, por exemplo, todos poderiam viver muito bem se não fosse o avô que começava a ficar velho; dos filhos, apenas dois dos rapazes e a moça mais velha é que estavam em idade de trabalhar na mina. O problema era alimentar os menores, que não faziam nada...
— Então — continuou a Sra. Grégoire —, há muito tempo que trabalham nas minas?
Um sorriso mudo passou pelo rosto lívido da mulher.
— Sim, sim, há muito tempo. Eu trabalhei até os vinte anos. Quando dei à luz pela segunda vez, o médico disse que eu morreria se continuasse na mina; parece que o trabalho estava atacando-me os ossos. Aliás, foi nessa ocasião que me casei, e tinha muito que fazer em casa. Mas, do lado do meu marido, eles trabalham nisso há séculos, desde o tetravô, que sei eu! Seja como for, a família sempre trabalhou na mina, a partir das primeiras escavações em Réquillart.
Com um olhar sonhador, o Sr. Grégoire examinou aquela mulher e aquelas crianças esquálidas, suas carnações linfáticas, seus cabelos descoloridos, a degenerescência que até as fazia mirrar, roídas pela anemia, de uma fealdade triste de esfomeados.
Fez-se novo silêncio; apenas a hulha ardia, lançando um jato de gás. Na sala ligeiramente úmida respirava-se esse ar pesado de bem-estar no qual medra, sonolenta, a felicidade burguesa.
— Mas o que é que ela está fazendo? — exclamou Cécile impaciente. — Mélanie, vá dizer-lhe que o pacote está no fundo do armário, à esquerda.
Nesse entretempo, o Sr. Grégoire concluiu em voz alta as reflexões que lhe inspirava a visão desses famintos.
— Há muita desgraça neste mundo, isso é verdade; mas, minha boa mulher, é preciso que se diga que os operários nem sempre têm juízo... Em lugar de porem um dinheirinho de lado, como fazem os nossos camponeses, os mineiros bebem, contraem dívidas, terminam não tendo com que alimentar a família.
— O senhor tem razão — respondeu gravemente a mulher do mineiro. — Nem sempre trilhamos a estrada certa. É isso que sempre digo a esses malandros, quando se queixam... Eu tive sorte, meu marido não bebe, a não ser nos domingos de festa, quando às vezes toma uns tragos, mas só então. E o que é formidável, no caso dele, é que antes do nosso casamento tomava cada bebedeira de ver tudo de pernas para o ar, com perdão dos senhores... Mas o comportamento atual do meu marido não nos tem servido de grande coisa. Há dias, como hoje, que nem revirando todas as gavetas da casa se encontraria um tostão.
Com isso queria insinuar-lhes a idéia da moeda de cem soldos; e, continuando com sua voz arrastada, explicou o caso da dívida fatal, no começo pequena, depois grande e devoradora. Pagaram regularmente durante algumas semanas; um dia atrasaram e depois disso nunca mais conseguiram pôr-se em dia. O buraco era cada vez maior, os homens desgostavam-se do trabalho, que nem lhes permitia pagar as dívidas. Inferno de vida! Desse atoleiro não sairiam mais... Mas, que diabo, também era preciso saber compreender: um mineiro precisava de um gole de cerveja para limpar a garganta. Infelizmente tudo começa por aí, e, quando as dificuldades chegam, ele não sai mais da taberna. Vendo bem, e sem querer queixar-se de ninguém, talvez os operários não estivessem ganhando o suficiente para viver.
— Pensava — disse a Sra. Grégoire — que a companhia lhes fornecesse casa e carvão.
A mulher de Maheu lançou um olhar oblíquo para a hulha que ardia na chaminé.
— Sim, é verdade, fornecem-nos carvão, não é grande coisa, mas sempre acende... Quanto à casa, o aluguel é de seis francos por mês, parece que não é grande coisa, mas muitas vezes como é duro pagar... De forma que hoje, nem que me cortassem em pedaços, não encontrariam dois soldos. Onde não há nada, não há nada.
O casal resolveu ficar em silêncio, confortavelmente refestelados, pouco a pouco enojados e inquietos com todo aquele alarde de miséria. A outra, receando tê-los ofendido, acrescentou, com seu ar justo e calmo de mulher prática:
— Não me estou queixando. As coisas são assim, temos que aceitar, de nada adiantaria lutar, não mudaríamos nada, claro... O melhor mesmo é continuar trabalhando honestamente, como Deus quer, não é verdade, meus senhores?
O dono da casa aprovou-a com entusiasmo.
— Com tais sentimentos, minha boa mulher, é que se vencem os infortúnios.
Honorine e Mélanie trouxeram finalmente o pacote; Cécile desatou-o e retirou os dois vestidos, alguns lenços de pescoço e até meias e luvas. Tudo ia ficar às mil maravilhas; apressou-se, fez as criadas embrulharem as roupas escolhidas, e, como sua professora de piano acabava de chegar, foi empurrando a mãe e os filhos para a porta.
— Estamos tão apertados — gaguejou a mulher —; se ao menos tivéssemos uma moeda de cem soldos...
A frase engasgou-a: os Maheu eram orgulhosos, não mendigavam.
Cécile, inquieta, olhou para o pai, que recusou terminantemente, com ares de estar cumprindo um dever.
— Não, isso não está nos nossos costumes. Não podemos.
A moça, então, comovida com o semblante transtornado da mãe, quis agradar aos filhos, que não tiravam os olhos do bolo; cortou duas fatias e deu-as às crianças.
— Pronto! É para vocês.
Mas em seguida apanhou novamente os pedaços de bolo e pediu um jornal velho.
— Esperem, repartam com seus irmãos.
E, sob os olhares enternecidos dos pais, pô-los finalmente para fora da sala. As pobres crianças, que não tinham pão, lá se foram carregando respeitosamente as fatias de bolo nas mãozinhas entorpecidas pelo frio.
A mulher de Maheu saiu arrastando os filhos pela estrada, não enxergando mais os campos desertos, a lama negra, o vasto céu lívido que girava. Ao passar novamente por Montsou, entrou resolutamente na loja de Maigrat e suplicou com tal veemência que conseguiu arrancar dois pães, café, manteiga e até sua moeda de cem soldos; o homem emprestava a juro, em curto prazo. Não era ela que ele queria, era Catherine; compreendeu muito bem quando ele lhe recomendou que mandasse a filha para fazer as compras. Ah, gostaria de ver! Que ele se aproximasse muito e Catherine lhe deixaria a cara marcada...
(*)
Libra: antiga medida de peso, equivalente a 459,5 gramas. (N. do T.)
(**)
Alqueire: antiga medida de capacidade para secos e líquidos,correspondente a
13,8 litros.(N.do T)
(Germinal;
tradução de Francisco Bittencourt)
(Ilustração: Max Beckmann - A noite – 1919)
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