sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

NOITE DE GALA, de Yara Maria Camillo








Passa da uma da manhã. A Missa do Galo foi longa e a fila para beijar os pés do Menino Jesus estende-se, procissão para além do pátio, até a esquina da Rua Glicério.

A Menina arregala os olhos para tudo: esta sua Noite de Gala. Delicia-se com o Hosana das Filhas de Maria e o presépio junto ao altar, onde chegará para beijar os pés do Deus feito Menino.

Não a incomoda, como às vezes ocorre, a mão esquecida da mãe sobre a sua, nem o ajuntamento, nem o olhar do "tio" que, meio-rude-meio-terno, afasta-lhe a outra mão que estava a explorar o nariz meio chato, nariz que é a primeira coisa que ela sente ao acordar, porque a avó o aperta de leve, todas as manhãs, afilando-o para que assuma a forma do nariz materno, para que perca a qualidade esborrachada, herança do pai, herança de negro. Apenas, a avó, nesse obstinado ato de esculpir um novo nariz, se esquece de arrebitar-lhe a ponta, de modo que com o passar dos anos ele se tomará afilado, sim, mas ligeiramente adunco.

—Tira a mão do nariz — diz o "tio". — É feio.

Ela consente. Peçam-lhe o que quiserem.

A fila anda mais rápido.

— Beijem o Deus Menino e deixem para rezar em volta do presépio; não vamos retardar a fila — adverte o Padre Romano, que a Menina acha muito bonito, assim, vestido de branco.

A poucos passos do altar a mãe se abaixa e avisa:

— Não encoste a boca no Menino Jesus. Beije de longe, que é a mesma coisa.

...Coisa que a Menina não obedece, porque tomada pelo Adeste Fidelis, porque feliz. Sabe que na volta a mãe e o "tio" Rodrigues serão os primeiros a entrar no kitchenette, sabe que ficará na portaria esperando, junto com a avó, enquanto os dois vão ver se os presentes já chegaram.

Sabe e não tem pressa, prolonga com delícia o gozo próximo.

Se a mãe a viu beijar de verdade os pés do Menino, se a viu encostar a boca onde todos encostam, fingiu que não.

A noite é sereno na volta, os quatro dobram a esquina da Rua Oscar Cintra, a Menina de mãos dadas com a avó, e entram no Edifício Ouro Branco.

A mãe passa altiva pelas louras oxigenadas e um marinheiro, todos aglomerados na portaria, tomando champanhe barato com o zelador. Passa altiva, braços dados com o "tio", que assume ares de carranca.

A avó, soltando a Menina, senta-se no banco de madeira, junto à árvore de Natal, armada perto dos elevadores.

A Menina acha bonitas aquelas moças decotadas, de cabelos cor de ouro; sorri de volta aos sorrisos, e também para o marinheiro Rosalvo, que uma vez lhe deu um chinezinho de louça, pelado.

— Eu queria ser bonita como a Nina — ela disse, um dia, à mãe, que comentou com o "tio" a urgência de sair daquele prédio, "antes que a Menina cresça e comece a entender".

Também agora a Menina queria ser Nina, a mais loura, a mais linda; queria ser Rosalvo, que a abraça.

O "tio" volta pelo corredor e avisa que os presentes chegaram. Estabanada ante o gozo iminente, a Menina dispara corredor afora, escorrega no capacho para deslumbrar-se com os jogos, a boneca, uma xícara com desenhos de flores, um vestido amarelo, tanta coisa, um carrossel com cinco cavalinhos que giram como no Parque Xangai.

Foi-se a surpresa, nada mais a esperar. A Menina sabe que agora virá o guaraná e avelã e amêndoas, sabe que virá o sono e então o dia, os dias.

Mas a noite acontece em outro tom: a avó se levanta da mesa e se apoia na guarda da cama, arfante, a mãe atrás. A Menina quer ir para as duas, o "tio" avisa que fique onde está.

— Rodrigues, corre aqui.

O "tio" se ergue, depois de repetir a ordem.

— Acode aqui, Rodrigues.

Não é a primeira vez da avó doente.

— Um táxi. Chama um táxi.

A Menina se agita. Ela pode ajudar? Não pode, e termina o guaraná que de repente perdeu o gosto. Com quem a deixarão dessa vez, se a vizinha, Dona Laura, viajou?

Demora.

A avó respira com dificuldade, dói só de olhar.

Demora.

A mãe reza, lamenta-se, "linda, a minha mãe", pensa a Menina.

Demora.

O "tio" volta, o táxi chegou. A Menina segue os três pelo corredor, a porta ficou aberta.

Na portaria, as mulheres e o marinheiro correm a ajudar. A mãe chama o zelador para pedir que fique com a filha, desiste ao vê-lo cambaleante e solícito.

Com quem deixar a Menina?

— Você fica — o "tio" propõe à Mãe, que não responde, apenas olha todas aquelas pessoas coloridas, não tem muito tempo, a avó arqueja.


 Se o problema é a Menina, pode deixar que eu tomo conta — diz Nina. — Deixe comigo... Senhora.

A mãe, altivez pejada, assente:

— Obrigada... Nina.

— Por nada... Senhora.

A Menina quer juntar a alegria de ficar com Nina a essa hora triste dos seus, da avó que parece um brinquedo quebrado, assim, encolhida.

A mãe avisa a Nina que a porta do kitchenette ficou aberta, agradece, olha a filha, sai. O táxi contorna a praça, entra na contramão na Rua Helena Zerrener e desaparece. Chuvisca.

A sós com tantos ídolos, a Menina quer rir.

— A tal pensa que tem o rei na barriga — ouve Nina dizer. — Grande senhora ela é, só porque tem um caso permanente.

As mulheres brincam com a Menina, inesperada boneca. Uma delas passa-lhe batom. Rosalvo, o marinheiro, promete-lhe uma tiara. De que cor? Azul. Você gosta de azul?

Gosta, a Menina diz que sim. A avó doente vai virando uma dor longínqua, com gosto de ontem; a alegria do agora vai contagiando a Menina, que não sente medo, como quando fica com Dona Laura, que logo a põe na cama e apaga a luz.

Nina deixa que ela experimente o champanhe, um gole só. A Menina quer... E adora.

O tempo não passa, de tão novo. É um olhar demoradamente para cada mulher, brincos, golas, saias, relógios, meias, é um gostar demais do uniforme azul-marinho de Rosalvo. Timidamente, a Menina aponta-lhe o quepe:

— "Seu" Rosalvo, deixa eu ver seu chapéu?

É bom que todos sorriam com ela, o centro, o miolo da flor cujo pólen é inteiro e somente para Nina, que se despede dos outros e, tomando a mão da Menina, pergunta cadê a chave.

— A porta ficou aberta.

— É mesmo.

A mão conducente de Nina é um suave caminho.

— Então é aqui que você mora? Que chique!

Nina é toda sorrisos, a Menina deslumbra-se mil vezes, mostra os presentes, oferece avelãs e amêndoas e nozes. As duas comem e brincam e riem e tudo parece assim, diferente.

— Agora, cama.

— Não.

— Já, gracinha.

O tempo se apaga, a Menina acorda e vê Nina sentada aos pés da cama, fumando, olhando. A luz acesa.

— Mamãe não voltou ainda, meu bem. Pode dormir de novo, que a Nina está aqui com você.

— Nina?

— Que é?

— Eu suei.

— Você o quê?

— Suei.

— Você... — Dos cabelos louros de Nina, que se abaixa para descobri-la, exala um perfume forte.

— Deixa eu ver... Ah, você fez pipi. Levanta daí.

Em pé, na cama, a Menina apoia-se na mulher, que lhe tira o vestido e a calcinha.

— Vamos trocar de roupa. — Erguendo-a nos braços, leva-a até o bidê. — Senta aí pra eu te lavar. Veja se a água está muito fria... Muito fria?

— Não.

— Bom. Então... Pronto.

A toalha não é tão macia quanto as mãos de Nina.

— Agora me diga onde estão suas roupas.

— Ali — a Menina aponta a cômoda.

— Vem.

Nina a coloca em pé sobre o colchão e abre a primeira gaveta.

— Nina, você foi na Missa do Galo beijar o Menino Jesus?

— Você é meu Menino Jesus, benzinho.

Risos. Nina encontra uma camiseta, uma calcinha:

— Tá bom assim?

— Tá.

— Deixa eu te vestir. Dá o pé, louro.

A Menina obedece e enlaça Nina, aspira com deleite o perfume dos cabelos claros. A mulher a aperta contra si. A Menina não quer soltar-se nunca mais.

— Você é meu Menino Jesus — Nina repete, repelindo-a com doçura.

— Jura?

— Juro.

— Você é linda, Nina. Linda como a Nossa Senhora.

— Não fala assim, gracinha. É pecado.

A Menina se atira no colo que ainda quer rejeitá-la, mas não consegue. E é como se algo nascesse, na noite sem idades.

O marinheiro Rosalvo bate levemente e entra. Com os olhos, Nina lhe pede silêncio. A Menina está quase dormindo. Rosalvo toca o ombro da mulher, deixa que a mão escorregue até os seios. Nina o repele com um tapa. A Menina se mexe um pouco, depois se abandona. Rosalvo volta a apoiar a mão no ombro de Nina, perguntando-se que bicho a terá mordido. Mas não ousa outro gesto e apenas fica ali, imóvel, olhando e olhando.

Num quintal da Rua Tabatinguera, o primeiro galo canta.




(Hiatos)




(Ilustração: Patrice Murciano)



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