sábado, 17 de dezembro de 2016

BARBARIDADE, de Mariana Mesquita






Bárbara é uma doce menina de 13 anos, saudável e feliz. Acorda todos os dias, bem-disposta, às sete da manhã. Cantarola, abre as janelas, respira fundo, sorri e exclama que a vida é bela e que ela é a garota mais feliz do mundo! Deseja bom ­dia às suas bonecas, toma um refrescante banho, penteia seu lindo e sedoso cabelo, veste uma roupa esvoaçante e desce as escadas como uma borboleta sobrevoando um jardim. Antes que a mãe a chame para o café, Bárbara grita: Já estou indo, minha linda mamãe!

O pai lhe dá um beijo na testa e diz que a filha está um bibelô! Bárbara acha graça e lhe devolve o carinhoso beijo. Ela é o orgulho dos pais. A mãe traz a margarina e a família toma seu desjejum feliz.

Depois do café, o pai de Bárbara diz que tem uma surpresa. A mãe lhe entrega uma caixa colorida, com um laço de fita cor-de-rosa. A cor predileta de Bárbara. Ansiosa, ela desembrulha o presente tentando adivinhar o que será. Quase chora de emoção. Seu sonho mais recente foi realizado: é uma linda boneca Barbie vestida de noiva. Bárbara imagina como será o dia de seu casamento e, emocionada, comenta, mais uma vez, que ama muito seus pais. Depois, guarda a boneca junto com as suas outras trinta e cinco Barbies. As esportivas, as executivas, as vestidas para o campo e para o baile. Todas lindas e perfeitas! Mas nenhuma com a graciosidade de Bárbara. Quem sabe um dia não existirá uma Barbie Bárbara?, pensou, sorriu e foi se arrumar para não se atrasar para a aula.

Oito e meia é a hora do ônibus. Bárbara sai de casa saltitante. O motorista que a leva todos os dias pensa: Que graça de menina! Bárbara tem a pele lisa como uma pétala de rosa, os dentes mais brancos que a neve e os cabelos macios, sedosos e com balanço. No colégio, suas notas são as melhores, seus assuntos, os mais interessantes, e todos querem sua amizade. Ela comanda as brincadeiras no recreio. Os professores se orgulham da aluna, e os amigos a amam. Bárbara não faz esforço para agradar, mas é a mais querida do colégio. No recreio, observa os meninos e prevê o dia em que terá que optar entre se casar com Rodrigo Martins ou Eduardo Carvalho. Uma decisão difícil, mas que ainda tem tempo para ser tomada. Certeza, só uma: quer ser mãe de uma linda menina. Como ela. Bárbara suspira, volta para casa, faz seu dever e corre para brincar com sua nova Barbie. A noiva. Sorri. Como sou feliz!

Era assim, foi sempre assim até aquela madrugada maldita. Bárbara dormia ingenuamente. Sonhava com anjos e brinquedos que ganhavam vida. Mas, sem aviso prévio, seu sonho foi interrompido por imagens estranhas, sem nexo, que lhe davam arrepios e tremedeiras. Os anjos fugiram, os brinquedos desapareceram. Ela fazia força para voltar ao sono antigo, mas nada adiantava. Bárbara se debatia, tremia como se seu corpo estivesse sendo invadido, abduzido, carcomido... suava. Tentou, em vão, acordar. Por instinto, tentava negar o que estava fadado a acontecer. Mas era tarde... A natureza havia marcado a data. Às três horas e cinco minutos do dia 15 de abril de 2009... Mais uma adorável e indefesa criança se tornava adolescente!

No dia seguinte, sem lembrar de nada, Bárbara acordou tarde e perdeu a hora do ônibus. Estava molhada de suor, exausta, e não sabia por quê. Eram muitas as novidades. Reparou que seu peito apresentava duas protuberantes bolinhas, de tamanhos diferentes, que despontavam para o alto. Precisava com urgência de um sutiã que escondesse aquelas azeitonas. Seus pés saíram na frente, haviam crescido mais que o resto do corpo. Seu esqueleto, agora, era quase um poste — alto e envergado. O cabelo já não balançava como antes, e ela reparou que seus dentes da frente estavam trepados uns por cima dos outros. Não era justo, mas provavelmente teria que usar aparelho fixo por muitos anos. Sentiu ódio!

Sua casa também parecia ter mudado, estava bem menor. Mas logo percebeu que era ela que não cabia mais no quarto. Havia crescido. Esbarrando em móveis, foi tomar seu banho.

Não! isso não!! Bárbara se olhou no espelho e gritou horrorizada. A acne marcava todo o seu rosto Na ponta do nariz crescia uma volumosa espinha cercada de pequenos e negros cravos. Bárbara quis morrer! Gritava que era a menina mais infeliz do mundo, que ninguém a compreendia, que seus pais eram os culpados por tudo, que nunca mais sairia de casa! Que estava horrorosa! Que odiava sua vida, seus brinquedos, a escola e sua família por ter permitido que essa desgraça acontecesse! A mãe veio, aflita, perguntar que estava acontecendo. O pai chegou a pensar em chamar a ambulância, os bombeiros ou a polícia. Mas Bárbara bateu a porta do quarto, furiosa. Já ia se jogar na cama para se afogar em lágrimas quando viu as trinta e seis Barbies sorrindo e zombando do seu infortúnio... Sem parar para pensar, chutou a Barbie executiva! Que alívio! Sentiu tanto prazer em destruir aquela boneca ridícula que arrancou a cabeça da esportiva e devorou a perna da Barbie noiva! Ninguém me compreende! Oh dia! Oh céus! Oh vida!

O tempo passou, o mato cresceu ao redor e agora ela tinha pentelhos em lugares nunca antes imagináveis. Não demorou muito e a menstruação chegou, para enfatizar a transformação de menina em monstro. Seu corpo inteiro doía, movido e exaurido. Milhares de hormônios borbulhavam em seu corpo, provocando novas e estranhas sensações. Foram três dias de um fluxo intenso. Sentia cólica, tesão, alívio, ódio, calafrio, amor, e chorava, chorava...

Os pais de Bárbara tentaram de tudo. Psicologia, psicanálise, medicina, pedagogia, psico-pedagogia, terapia familiar, individual, ocupacional, homeopatia, fitoterapia, astrologia, filosofia, espiritismo, ciências alternativas, ocultas e nada! Fizeram reuniões com o colégio, com os vizinhos, com pais dos amigos... Foram compreensivos, repressivos, alternativos e autoritários. Mas não era fácil domar a fera. Nada acalmava Bárbara.

Ela agora fazia o que bem queria, na hora em que bem quisesse. Essa era a parte boa. Matava aula, fumava escondido, e, para provar que era a tal, deu para Rodrigo Martins numa noite e para Eduardo Carvalho na outra. Achou tudo um saco!

Cada vez que olhava sua coleção de Barbies, já meio destruídas, tinha mais ódio delas, de si mesma e do mundo. Eu odeio Barbie!

Que ninguém viesse dizer que Bárbara não tinha motivos para se rebelar. A culpa de sua revolta foi aquela noite fatídica quando houve a transformação da criança em fera. Pelo menos, esta certeza ela tinha: a vítima era, e sempre seria, ELA.

No café da manhã em família do dia 13 de agosto, Bárbara havia acordado de mau humor. O pai, exausto, caiu na asneira de chamá-la de rebelde sem causa. A mãe, tolinha, comentou que a nova personalidade da filha fazia com que ela se lembrasse de Gonga, a mulher gorila. Bárbara quis matá-los! Calma, Gonga! Mas será que eles não percebem que são os culpados por tudo? Ela já não suportava mais aquela conversa mole: Um dia você vai nos compreender! Nós te amamos muito, meu bibelô! Essa fase difícil vai passar! ... Chega! Correu para o quarto, bateu a porta e foi devorar uma nova Barbie, quando se deu conta de que não havia sobrado mais nenhuma para abrandar sua ira. Calma, Gonga! Mais raivosa do que nunca, desceu as escadas como um caveirão. E, quando os pais tentaram impedir que ela demolisse a casa, Bárbara virou uma mulher-bomba e explodiu. Estraçalhou o casal como se eles fossem bonecos — Barbie e Ken —, agora sem pernas nem cabeças. Devorou os dois! Comeu o pai, depois a mãe... Não sobrou nem um órgão, nem um membro, nem um pedaço do corpo humano para contar a história. Ufa! Estavam todos em frangalhos. Inclusive Bárbara. Ela saiu ferida e os pais despedaçados. 

Finalmente, suspirou mais calma, olhou o cenário de devastação, sorriu e pensou: Ah, não fode.


(Dez contos de terror)



(Ilustração: Stu Mead (1955) - prelude)


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