sexta-feira, 15 de julho de 2016
TANGERINE-GIRL, de Rachel de Queiroz
De princípio a interessou o
nome da aeronave: não “zepelim” nem dirigível, ou qualquer outra coisa
antiquada; o grande fuso de metal brilhante chamava-se modernissimamente blimp.
Pequeno como um brinquedo, independente, amável. A algumas centenas de metros
da sua casa ficava a base aérea dos soldados americanos e o poste de amarração
dos dirigíveis. E de vez em quando eles deixavam o poste e davam uma volta,
como pássaros mansos que abandonassem o poleiro num ensaio de voo. Assim, de
começo, aos olhos da menina, o blimp existia como uma coisa em si — como um
animal de vida própria; fascinava-a como prodígio mecânico que era, e principalmente
ela o achava lindo, todo feito de prata, igual a uma joia, librando-se
majestosamente pouco abaixo das nuvens. Tinha coisas de ídolo, evocava-lhe um
pouco o gênio escravo de Aladim. Não pensara nunca em entrar nele; não pensara
sequer que pudesse alguém andar dentro dele. Ninguém pensa em cavalgar uma
águia, nadar nas costas de um golfinho; e, no entanto, o olhar fascinado
acompanha tanto quanto pode águia e golfinho, numa admiração gratuita — pois
parece que é mesmo uma das virtudes da beleza essa renúncia de nós próprios que
nos impõe, em troca de sua contemplação pura e simples.
Os olhos da menina
prendiam-se, portanto, ao blimp sem nenhum desejo particular, sem a sombra de
uma reivindicação. Verdade que via lá dentro umas cabecinhas espiando, mas tão
minúsculas que não davam impressão de realidade — faziam parte da pintura, eram
elemento decorativo, obrigatório como as grandes letras negras U. S. Navy
gravadas no bojo de prata. Ou talvez lembrassem aqueles perfis recortados em
folha que fazem de chofer nos automóveis de brinquedo.
O seu primeiro contato com a
tripulação do dirigível começou de maneira puramente ocasional. Acabara o café
da manhã; a menina tirara a mesa e fora à porta que dá para o laranjal, sacudir
da toalha as migalhas de pão. Lá de cima um tripulante avistou aquele pano
branco tremulando entre as árvores espalhadas e a areia, e o seu coração
solitário comoveu-se. Vivia naquela base como um frade no seu convento —
sozinho entre soldados e exortações patrióticas. E ali estava, juntinho ao
oitão da casa de telhado vermelho, sacudindo um pano entre a mancha verde das
laranjeiras, uma mocinha de cabelo ruivo. O marinheiro agitou-se todo com
aquele adeus. Várias vezes já sobrevoara aquela casa, vira gente embaixo
entrando e saindo; e pensara quão distantes uns dos outros vivem os homens,
quão indiferentes passam entre si, cada um trancado na sua vida. Ele estava
voando por cima das pessoas, vendo-as, espiando-as, e, se algumas erguiam os
olhos, nenhuma pensava no navegador que ia dentro; queriam só ver a beleza
prateada vogando pelo céu.
Mas agora aquela menina
tinha para ele um pensamento, agitava no ar um pano, como uma bandeira; decerto
era bonita — o sol lhe tirava fulgurações de fogo do cabelo, e a silhueta
esguia se recortava claramente no fundo verde-e-areia. Seu coração atirou-se
para a menina num grande impulso agradecido; debruçou-se à janela, agitou os
braços, gritou: “Amigo!, amigo!”— embora soubesse que o vento, a distância, o
ruído do motor não deixariam ouvir-se nada. Ficou incerto se ela lhe vira os
gestos e quis lhe corresponder de modo mais tangível. Gostaria de lhe atirar
uma flor, uma oferenda. Mas que podia haver dentro de um dirigível da Marinha
que servisse para ser oferecido a uma pequena? O objeto mais delicado que encontrou
foi uma grande caneca de louça branca, pesada como uma bala de canhão, na qual
em breve lhe iriam servir o café. E foi aquela caneca que o navegante atirou;
atirou, não: deixou cair a uma distância prudente da figurinha iluminada, lá
embaixo; deixou-a cair num gesto delicado, procurando abrandar a força da
gravidade, a fim de que o objeto não chegasse sibilante como um projétil, mas
suavemente, como uma dádiva.
A menina que sacudia a
toalha erguera realmente os olhos ao ouvir o motor do blimp. Viu os braços do
rapaz se agitarem lá em cima. Depois viu aquela coisa branca fender o ar e cair
na areia; teve um susto, pensou numa brincadeira de mau gosto — uma pilhéria
rude de soldado estrangeiro. Mas quando viu a caneca branca pousada no chão,
intacta, teve uma confusa intuição do impulso que a mandara; apanhou-a, leu
gravadas no fundo as mesmas letras que havia no corpo do dirigível: U. S. Navy.
Enquanto isso, o blimp, em lugar de ir para longe, dava mais uma volta lenta
sobre a casa e o pomar. Então a mocinha tornou a erguer os olhos e,
deliberadamente dessa vez, acenou com a toalha, sorrindo e agitando a cabeça. O
blimp fez mais duas voltas e lentamente se afastou — e a menina teve a
impressão de que ele levava saudades. Lá de cima, o tripulante pensava também —
não em saudades, que ele não sabia português, mas em qualquer coisa pungente e
doce, porque, apesar de não falar nossa língua, soldado americano também tem
coração.
Foi assim que se estabeleceu
aquele rito matinal. Diariamente passava o blimp e diariamente a menina o
esperava; não mais levou a toalha branca, e às vezes nem sequer agitava os
braços: deixava-se estar imóvel, mancha clara na terra banhada de sol. Era uma
espécie de namoro de gavião com gazela: ele, fero soldado cortando os ares; ela,
pequena, medrosa, lá embaixo, vendo-o passar com os olhos fascinados. Já agora,
os presentes, trazidos de propósito da base, não eram mais a grosseira caneca
improvisada; caíam do céu números da Life e da Time, um gorro de marinheiro e,
certo dia, o tripulante tirou do bolso o seu lenço de seda vegetal perfumado
com essência sintética de violetas. O lenço abriu-se no ar e veio voando como
um papagaio de papel; ficou preso afinal nos ramos de um cajueiro, e muito
trabalho custou à pequena arrancá-lo de lá com a vara de apanhar cajus; assim
mesmo ainda o rasgou um pouco, bem no meio.
Mas de todos os presentes o
que mais lhe agradava era ainda o primeiro: a pesada caneca de pó de pedra.
Pusera-a no seu quarto, em cima da banca de escrever. A princípio cuidara em
usá-la na mesa, às refeições, mas se arreceou da zombaria dos irmãos. Ficou
guardando nela os lápis e canetas. Um dia teve ideia melhor e a caneca de louça
passou a servir de vaso de flores. Um galho de manacá, um bogari, um
jasmim-do-cabo, uma rosa menina, pois no jardim rústico da casa de campo não
havia rosas importantes nem flores caras.
Pôs-se a estudar com mais
afinco o seu livro de conversação inglesa; quando ia ao cinema, prestava uma
atenção intensa aos diálogos, a fim de lhes apanhar não só o sentido, mas a
pronúncia. Emprestava ao seu marinheiro as figuras de todos os galãs que via na
tela, e sucessivamente ele era Clark Gable, Robert Taylor ou Cary Grant. Ou era
louro feito um mocinho que morria numa batalha naval do Pacífico, cujo nome a
fita não dava; chegava até a ser, às vezes, careteiro e risonho como Red
Skelton. Porque ela era um pouco míope, mal o vislumbrava, olhando-o do chão:
via um recorte de cabeça, uns braços se agitando; e, conforme a direção dos
raios do sol, parecia-lhe que ele tinha o cabelo louro ou escuro.
Não lhe ocorria que não
pudesse ser sempre o mesmo marinheiro. E, na verdade, os tripulantes se
revezariam diariamente: uns ficavam de folga e iam passear na cidade com as
pequenas que por lá arranjavam; outros iam embora de vez para a África, para a
Itália. No posto de dirigíveis criava-se aquela tradição da menina do laranjal.
Os marinheiros puseram-lhe o apelido de “Tangerine-Girl”. Talvez por causa do
filme de Dorothy Lamour, pois Dorothy Lamour é, para todas as forças armadas
norte-americanas, o modelo do que devem ser as moças morenas da América do Sul
e das ilhas do Pacífico. Talvez porque ela os esperava sempre entre as
laranjeiras. E talvez porque o cabelo ruivo da pequena, quando brilhava à luz
da manhã, tinha um brilho acobreado de tangerina madura. Um a um,
sucessivamente, como um bem de todos, partilhavam eles o namoro com a garota
Tangerine. O piloto da aeronave dava voltas, obediente, voando o mais baixo que
lhe permitiam os regulamentos, enquanto o outro, da janelinha, olhava e dava
adeus.
Não sei por que custou tanto
a ocorrer aos rapazes a ideia de atirar um bilhete. Talvez pensassem que ela
não os entenderia. Já fazia mais de um mês que sobrevoavam a casa, quando
afinal o primeiro bilhete caiu; fora escrito sobre uma cara rosada de rapariga
na capa de uma revista: laboriosamente, em letras de imprensa, com os
rudimentos de português que haviam aprendido da boca das pequenas, na cidade:
“Dear Tangerine-Gírl. Please você vem hoje (today) base X. Dancing, show. Oito
horas P.M.” E no outro ângulo da revista, em enormes letras, o “Amigo”, que é a
palavra de passe dos americanos entre nós.
A pequena não atinou bem com
aquele “Tangerine-Girl”. Seria ela? Sim, decerto… e aceitou o apelido, como uma
lisonja. Depois pensou que as duas letras, do fim: “P.M.”, seriam uma
assinatura. Peter, Paul, ou Patsy, como o ajudante de Nick Carter? Mas uma
lembrança de estudo lhe ocorreu: consultou as páginas finais do dicionário, que
tratam de abreviaturas, e verificou, levemente decepcionada, que aquelas letras
queriam dizer “a hora depois do meio-dia”.
Não pudera acenar uma
resposta porque só vira o bilhete ao abrir a revista, depois que o blimp se
afastou. E estimou que assim o fosse: sentia-se tremendamente assustada e tímida
ante aquela primeira aproximação com o seu aeronauta. Hoje veria se ele era
alto e belo, louro ou moreno. Pensou em se esconder por trás das colunas do
portão, para o ver chegar – e não lhe falar nada. Ou talvez tivesse coragem
maior e desse a ele a sua mão; juntos caminhariam até a base, depois dançariam
um fox langoroso, ele lhe faria ao ouvido declarações de amor em inglês,
encostando a face queimada de sol ao seu cabelo. Não pensou se o pessoal de
casa lhe deixaria aceitar o convite. Tudo se ia passando como num sonho — e
como num sonho se resolveria, sem lutas nem empecilhos.
Muito antes do escurecer, já
estava penteada, vestida. Seu coração batia, batia inseguro, a cabeça doía um
pouco, o rosto estava em brasas. Resolveu não mostrar o convite a ninguém; não
iria ao show; não dançaria, conversaria um pouco com ele no portão. Ensaiava
frases em inglês e preparava o ouvido para as doces palavras na língua
estranha. Às sete horas ligou o rádio e ficou escutando languidamente o
programa de swings. Um irmão passou, fez troça do vestido bonito, naquela hora,
e ela nem o ouviu. Às sete e meia já estava na varanda, com o olho no portão e
na estrada. Às dez para as oito, noite fechada já há muito, acendeu a pequena
lâmpada que alumiava o portão e saiu para o jardim. E às oito em ponto ouviu
risadas e tropel de passos na estrada, aproximando-se.
Com um recuo assustado
verificou que não vinha apenas o seu marinheiro enamorado, mas um bando ruidoso
deles. Viu-os aproximarem-se, trêmula. Eles a avistaram, cercaram o portão —
até parecia manobra militar —, tiraram os gorros e foram se apresentando numa
algazarra jovial.
E, de repente, mal lhes foi
ouvindo os nomes, correndo os olhos pelas caras imberbes, pelo sorriso
esportivo e juvenil dos rapazes, fitando-os de um em um, procurando entre eles
o seu príncipe sonhado — ela compreendeu tudo. Não existia o seu marinheiro
apaixonado — nunca fora ele mais do que um mito do seu coração. Jamais houvera
um único, jamais “ele” fora o mesmo. Talvez nem sequer o próprio blimp fosse o
mesmo…
Que vergonha, meu Deus! Dera
adeus a tanta gente; traída por uma aparência enganosa, mandara diariamente a
tantos rapazes diversos as mais doces mensagens do seu coração, e no sorriso
deles, nas palavras cordiais que dirigiam à namorada coletiva, à pequena
Tangerine-Girl, que já era uma instituição da base — só viu escárnio,
familiaridade insolente… Decerto pensavam que ela era também uma dessas
pequenas que namoram os marinheiros de passagem, quem quer que seja… decerto
pensavam… Meu Deus do Céu!
Os moços, por causa da
meia-escuridão, ou porque não cuidavam naquelas nuanças psicológicas, não
atentaram na expressão de mágoa e susto que confrangia o rostinho redondo da
amiguinha. E, quando um deles, curvando-se, lhe ofereceu o braço, viu-a com
surpresa recuar, balbuciando timidamente:
— Desculpem… houve engano…
um engano…
E os rapazes compreenderam
ainda menos quando a viram fugir, a princípio lentamente, depois numa carreira
cega. Nem desconfiaram que ela fugira a trancar-se no quarto e, mordendo o
travesseiro, chorou as lágrimas mais amargas e mais quentes que tinha nos
olhos.
Nunca mais a viram no
laranjal; embora insistissem em atirar presentes, viam que eles ficavam no
chão, esquecidos — ou às vezes eram apanhados pelos moleques do sítio.
(O melhor da crônica
brasileira)
(Ilustração: Camilo Lucarini - Laying nude under window light)
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