quarta-feira, 27 de julho de 2016
O LEÃO E O RATO, de Millôr Fernandes
Depois que o Leão desistiu
de comer o rato porque o rato estava com espinho no pé (ou por desprezo, mas dá
no mesmo), e, posteriormente, o rato, tendo encontrado o Leão envolvido numa
rede de caça, roeu a rede e salvou o Leão (por gratidão ou mineirice, já que
tinha que continuar a viver na mesma floresta), os dois, rato e Leão, passaram
a andar sempre juntos, para estranheza dos outros habitantes da floresta (e das
fábulas). E como os tempos são tão duros nas florestas quanto nas cidades, e
como a poluição já devastou até mesmo as mais virgens das matas, eis que os dois
se encontraram, em certo momento, sem ter comido durante vários dias. Disse o
Leão:
– Nem um boi. Nem ao menos
uma paca. Nem sequer uma lebre. Nem mesmo uma borboleta, como hors-d’oeuvres de
uma futura refeição.
Caiu estatelado no chão,
irado ao mais fundo de sua alma leonina. E, do chão onde estava, lançou um
olhar ao rato que o fez estremecer até a medula. “A amizade resistiria à fome?
” – pensou ele. E, sem ousar responder à própria pergunta, esgueirou-se pé ante
pé e sumiu da frente do amigo (?) faminto.
Sumiu durante muito tempo.
Quando voltou, o Leão passeava em círculos, deitando fogo pelas narinas, com
ódio da humanidade. Mas o rato vinha com algo capaz de aplacar a fome do
ditador das selvas: um enorme pedaço de queijo Gorgonzola que ninguém jamais
poderá explicar onde conseguiu (fábulas!). O Leão, ao ver o queijo, embora não
fosse animal queijífero, lambeu os beiços e exclamou:
– Maravilhoso, amigo,
maravilhoso! Você é uma das sete maravilhas! Comamos, comamos! Mas, antes,
vamos repartir o queijo com equanimidade. E como tenho receio de não resistir à
minha natural prepotência, e sendo ao mesmo tempo um democrata nato e
confirmado, deixo a você a tarefa ingrata de controlar o queijo com seus
próprios e famélicos instintos. Vamos, divida você, meu irmão! A parte do rato
para o rato; para O Leão, a parte do Leão.
A expressão ainda não
existia naquela época, mas o rato percebeu que ela passaria a ter uma validade
que os tempos não mais apagariam. E dividiu o queijo como o Leão queria: uma
parte do rato, outra parte do Leão. Isto é: deu o queijo todo ao Leão e ficou
apenas com os buracos. O Leão segurou com as patas o queijo todo e abocanhou um
pedaço enorme, não sem antes elogiar o rato pelo seu alto critério:
– Muito bem, meu amigo. Isso
é que se chama partilha. Isso é que se chama justiça. Quando eu voltar ao
poder, entregarei sempre a você a partilha dos meus bens que me couberem no
litígio com os súbditos.
Você é um verdadeiro e
egrégio meritíssimo! Não vai se arrepender!
E o ratinho, morto de fome,
riu o riso menos amarelo que podia, e ainda lambeu o ar para o Leão pensar que
lambia os buracos do queijo. E enquanto lambia o ar, gritava, no mais forte que
podiam seus fracos pulmões:
– Longa vida ao Rei Leão!
Longa vida ao Rei Leão!
MORAL : Os ratos são
iguaizinhos aos homens.
(Ilustração:Monica Cook)
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