quinta-feira, 2 de junho de 2016
A ESTRUTURA DA BOLHA DE SABÃO, de Lygia Fagundes Telles
Era o que ele estudava. “A
estrutura, quer dizer a estrutura” – ele repetia e abria a mão branquíssima ao
esboçar o gesto redondo. Eu ficava olhando seu gesto impreciso, porque uma
bolha de sabão é mesmo imprecisa, nem sólida nem líquida, nem realidade nem
sonho. Película e oco. “A estrutura da bolha de sabão, compreende?” Não
compreendia. Não tinha importância. Importante era o quintal de minha meninice
com seus verdes canudos de mamoeiro, quando cortava os mais tenros que sopravam
as bolas maiores, mais perfeitas. Uma de cada vez. Amor calculado, porque, se
me afobava, o sopro desencadeava o processo e um delírio de cachos escorriam
pelo canudo e vinham rebentar na minha boca, a espuma descendo pelo queixo.
Molhando o peito. Então eu jogava longe o canudo e caneca. Para recomeçar no
dia seguinte, sim, as bolhas de sabão. Mas e a estrutura? “A estrutura” – ele
insistia. E seu gesto delgado de envolvimento e fuga parecia tocar mas guardava
distância, cuidado, cuidadinho, ô a paciência. A paixão.
No escuro eu sentia essa
paixão contornando sutilíssima meu corpo. Estou me espiritualizando, eu disse e
ele riu fazendo fremir os dedos-asas, a mão distendida imitando libélula na
superfície da água, mas sem se comprometer com o fundo, divagações à flor da
pele, ô, amor de ritual sem sangue. Sem grito. Amor de transparência e
membranas, condenado à ruptura.
Ainda fechei a janela para retê-la,
mas com sua superfície que refletia tudo ela avançou cega contra o vidro.
Milhares de olhos e não enxergava. Deixou um círculo de espuma. Foi
simplesmente isso, pensei quando ele tomou a mulher pelo braço e perguntou:
“Vocês já se conheciam?” Sabia muito bem que nunca tínhamos nos visto mas
gostava dessas frases acolchoando situações, pessoas. Estávamos num bar e seus
olhos de egípcia se retraíam, apertados. A fumaça, pensei. Aumentavam e
diminuíam até que se reduziram a dois riscos de lápis-lazúli e assim ficaram. A
boca polpuda também se apertou, mesquinha. Tem boca à-toa, pensei.
Artificiosamente sensual, à-toa. Mas como é que um homem como ele, um físico
que estudava a estrutura das bolhas, podia amar uma mulher assim. Mistérios, eu
disse e ele sorriu, nos divertíamos em dizer fragmentos de ideias, peças soltas
dum jogo que jogávamos meio ao acaso, sem encaixe.
Convidaram-me e sentei, os
joelhos de ambos encostados nos meus, a mesa pequena enfeixando copos e
hálitos. Me refugiei nos cubos de gelo amontoados no fundo do copo, ele podia
estudar a estrutura do gelo, não era mais fácil? Mas ele queria fazer
perguntas. Uma antiga amizade? Uma antiga amizade. Ah. Fomos colegas? Não, nos
conhecemos numa praia, onde? Enfim, uma praia. Ah. Aos poucos o ciúme foi
tomando forma e transbordando espesso como um licor azul-verde, do tom da
pintura dos seus olhos. Escorreu pelas nossas roupas, empapou a toalha da mesa,
pingou gota a gota. Usava um perfume adocicado. Veio a dor de cabeça: “Estou
com tanta dor de cabeça”, repetiu não sei quantas vezes. Uma dor fulgurante que
começava na nuca e se irradiava até a testa, na altura das sobrancelhas.
Empurrou o copo de uísque. “Fulgurante”. Empurrou para trás a cadeira e antes
que empurrasse a mesa ele pediu a conta. Noutra ocasião a gente poderia se ver,
de acordo? Sim, noutra ocasião, é lógico. Na rua, ele pensou em me beijar de
leve, como sempre, mas ficou desamparado e eu o tranquilizei, está bem,
querido, está tudo bem, entendi. Tomo um taxi, não tem problema, vá depressa,
vá. Quando me voltei, já dobravam a esquina. Que palavras estariam dizendo
enquanto dobravam a esquina? Fingi me interessar pela valise de plástico de
xadrez vermelho, estava diante de uma vitrine de valises. Me vi perplexa no
vidro. Mas como era possível. Choro em casa, resolvi. Em casa telefonei a um
amigo, fomos jantar e ele concluiu que o meu cientista estava felicíssimo.
Felicíssimo, repeti quando
no dia seguinte cedo ele telefonou para explicar. Cortei a explicação com o
felicíssimo e lá do outro lado da linha senti-o sorrir como uma bolha de sabão
sorriria. Realmente, a única coisa inquietante era aquele ciúme. Mudei logo de
assunto com o licoroso pressentimento de que ela ouvia na extensão, oh, o
teatro. A poesia. Então ela desligou.
O segundo encontro foi numa
exposição de pintura. No começo, aquela cordialidade. A boca pródiga. Ele me
puxou para ver um quadro de que tinha gostado muito. Não ficamos distante dela
nem cinco minutos. Quando voltamos, os olhos já estavam reduzidos aos dois riscos.
Passou a mão na nuca. Furtivamente acariciou a testa. Despedi-me correndo antes
da dor fulgurante. Vai virar sinusite, pensei. A sinusite do ciúme, bom nome
para um quadro ou ensaio.
“Ele está doente, sabia?
Aquele cara que estuda bolhas, não é seu amigo?” Em redor, a massa latejante de
gente, música. Calor. Quem é que está doente? Eu perguntei. Sabia perfeitamente
que se tratava dele, mas precisei perguntar de novo. É preciso perguntar uma,
duas vezes para ouvir a mesma resposta, que aquele cara, aquele que estuda essa
frescura da bolha, não era meu amigo? Pois estava muito doente, quem contou foi
a própria mulher, bonita, sem dúvida, mas um pouco sobre a grossa, fora casada
com o primo dum amigo, um industrial meio nazista que veio para cá com passaporte
falso, até a Interpol já estava avisada, durante a guerra se associou com um
tipo que se dizia conde italiano mas não passava dum contrabandista muito
grande. Estendi a mão e agarrei seu braço porque a ramificação da conversa se
alastrava pelas veredas, eu mal podia vislumbrar o desdobramento da raiz
varando por entre pernas, sapatos, croquetes pisados, palitos, fugia pela
escada na descida vertiginosa até a porta da rua, espera! eu disse. Espera. Mas
que é que ele tem? Esse meu amigo. A bandeja de uísque oscilou perigosamente
acima do nível das nossas cabeças. Os copos tilintaram na inclinação para a
direita, para a esquerda, deslizando num só bloco na dança dum convés na
tempestade. O que ele tinha? O homem bebeu metade do copo antes de responder: não
sabia os detalhes e nem se interessava em saber, afinal, a única coisa gozada
era um cara estudar a estrutura da bolha, ora que idéia! Tirei-lhe o copo e
bebi devagar o resto do uísque com o cubo de gelo colado ao meu lábio,
queimando. Não ele, meu Deus. Não ele, eu repeti. Embora grave, curiosamente
minha voz varou todas as camadas de barulho como a ponta agudíssima varara
todas as camadas do meu peito até tocar no fundo, lá no fundo onde as pontas
todas acabam por dar, que nome tinha? Esse fundo, perguntei e fiquei sorrindo
para o homem e seu espanto. Expliquei-me que era o jogo que eu costumava jogar
com ele, com esse meu amigo, o físico. O infortunante riu. “Juro que nunca
pensei que fosse encontrar no mundo um cara que estudasse um troço desses”, resmungou
ele voltando-se rápido para apanhar mais dois copos na bandeja, ô, tão longe ia
a bandeja e tudo o mais, fazia quanto tempo? “Me diga uma coisa, vocês não
viveram juntos?” – lembrou-se o homem de perguntar. Peguei no ar o copo
borrifando na tormenta. Estava nua na praia. Mais ou menos, respondi.
Mais ou menos, eu disse ao
motorista que perguntou se eu sabia onde ficava essa rua. Tinha pensado em
pedir notícias por telefone, mas a extensão me travou. E agora ela abria a
porta e o sorriso. Contente de me ver? A mim?! Elogiou minha bolsa. Meu
penteado despenteado. Nenhum sinal da sinusite. Mas daqui a pouco vai começar.
Fulgurante.
“Foi mesmo um grande susto,”
ela disse. “Mas passou, ele está ótimo ou quase”, acrescentou levantando a voz.
Do quarto ele poderia nos ouvir se quisesse. Não perguntei nada.
A casa. Aparentemente, não
mudara, mas, reparando melhor, tinha menos livros. Mais cheiros: flores de
perfume ativo no vaso, óleos perfumados nos móveis. E seu próprio perfume.
Objetos frívolos – os múltiplos – substituindo em profusão os únicos, aqueles
que ficavam obscuros nas antigas prateleiras da estante. Examinei-a enquanto me
mostrava um tapete que tecera nos dias em que ele ficou no hospital. E a
fulgurante? Os olhos continuavam bem abertos, a boca descontraída. Ainda não.
“Você poderia ter se
levantado, hem, amor? Mas é um preguiçoso”, disse ela quando entramos no
quarto. E começou a contar muito animada a história dum ladrão que entrara pelo
porão da casa ao lado, “a casa da mãezinha”, acrescentou afagando ligeiramente
os pés dele debaixo da manta de lã. Acordaram no meio da noite com o ladrão aos
berros, pedindo socorro com a mão na ratoeira, tinha ratos no porão e na
véspera a mãezinha armara uma enorme ratoeira para pegar o rei de todos, lembra,
amor?
O amor estava de chambre
verde, recostado na cama cheia de almofadas. As mãos branquíssimas descansando
entrelaçadas na altura do peito. Ao lado, um livro aberto e cujo título deixei
para ler depois e não fiquei sabendo. Ele mostrou interesse pelo caso do
ladrão, de mim e dela. De quando em quando me olhava interrogativo, sugerindo
lembranças, mas eu sabia que era por delicadeza, sempre foi delicadíssimo.
Atento e desligado. Onde? Onde estaria com seu chambre largo demais. Era devido
àquelas dobras todas que fiquei com a impressão de que emagrecera? Duas vezes
enxugou o queixo úmido, transpirava. Enfim, fazia calor.
Comecei a sentir falta de
alguma coisa, era do cigarro? Acendi um e ainda a sensação aflitiva de que
alguma coisa faltava, mas o que estava errado ali? Na hora da pílula lilás ela
foi buscar o copo d’água e então ele me olhou lá do seu mundo de estruturas.
Bolhas. Por um instante relaxei completamente: “Não sei onde está mas sei que
não está”, eu disse, e ele perguntou: “Jogar?” Rimos um para o outro.
“Engole, amor, engole” –
pediu ela segurando-lhe a cabeça. E voltou-se para mim: – “Preciso ir aqui na
casa da mãezinha e minha empregada está fora, você se importa em ficar mais um
pouco? Não demoro muito, a casa é ao lado”, acrescentou. Ofereceu-me uísque,
não queria mesmo? Se quisesse estava tudo na copa, uísque, gelo, ficasse à
vontade. Telefone tocando será que eu podia?…
Saiu e fechou a porta.
Fechou-nos. Então descobri o que estava faltando, ô Deus. Agora eu sabia que
ele ia morrer.
(Ilustração: Picasso)
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