quarta-feira, 8 de junho de 2016
A MORALISTA, de Dinah Silveira de Queiroz
Se me falam em virtude, em
moralidade ou imoralidade, em condutas, enfim, em tudo que se relacione com o
bem e o mal, eu vejo Mamãe em minha ideia. Mamãe — não. O pescoço de Mamãe, a
sua garganta branca e tremente, quando gozava a sua risadinha como quem bebe
café no pires. Essas risadas ela dava principalmente à noite, quando — só nós
três em casa — vinha jantar como se fosse a um baile, com seus vestidos
alegres, frouxos, decotados, tão perfumada que os objetos a seu redor criavam uma
pequena atmosfera própria, eram mais leves e delicados. Ela não se pintava
nunca, mas não sei como fazia para ficar com aquela lisura de louça lavada.
Nela, até a transpiração era como vidraça molhada: escorregadia, mas não suja.
Diante daquela pulcritude minha face era uma miserável e movimentada
topografia, onde eu explorava furiosamente, e em gozo físico, pequenos
subterrâneos nos poros escuros e profundos, ou vulcõezinhos que estalavam entre
as unhas, para meu prazer. A risada de Mamãe era um “muito obrigada” a meu Pai,
que a adulava como se dela dependesse. Porém, ele mascarava essa adulação
brincando e a tratando eternamente de menina. Havia muito tempo uma espírita
dissera a Mamãe algo que decerto provocou sua primeira e especial risadinha:
— Procure impressionar o
próximo. A senhora tem um poder extraordinário sobre os outros, mas não sabe.
Deve aconselhar… Porque… se impõe, logo à primeira vista. Aconselhe. Seus
conselhos não falharão nunca. Eles vêm da sua própria mediunidade…
Mamãe repetiu aquilo umas
quatro ou cinco vezes, entre amigas, e a coisa pegou, em Laterra.
Se alguém ia fazer um
negócio, lá aparecia em casa para tomar conselhos. Nessas ocasiões Mamãe, que
era loura e pequenina, parecia que ficava maior, toda dura, de cabecinha
levantada e dedo gordinho, em riste. Consultavam Mamãe a respeito de política,
dos casamentos. Como tudo que dizia era sensato, dava certo, começaram a
mandar-lhe também pessoas transviadas. Uma vez, certa senhora rica lhe trouxe o
filho, que era um beberrão incorrigível. Lembro-me de que Mamãe disse coisas
belíssimas, a respeito da realidade do Demônio, do lado da Besta, e do lado do
Anjo. E não apenas ela explicou a miséria em que o moço afundava, mas o castigo
também com palavras tremendas. Seu dedinho gordo se levantava, ameaçador, e
toda ela tremia de justa cólera, porém sua voz não subia do tom natural. O moço
e a senhora choravam juntos.
Papai ficou encantado com o
prestígio de que, como marido, desfrutava. Brigas entre patrão e empregado,
entre marido e mulher, entre pais e filhos vinham dar em nossa casa. Mamãe
ouvia as partes, aconselhava, moralizava. E Papai, no pequeno negócio, sentia
afluir a confiança que se espraiava até seus domínios.
Foi nessa ocasião que
Laterra ficou sem padre, porque o vigário morrera e o bispo não mandara
substituto. Os habitantes iam casar e batizar os filhos em Santo Antônio. Mas,
para suas novenas e seus terços, contavam sempre com minha Mãe. De repente,
todos ficaram mais religiosos. Ela ia para a reza da noite de véu de renda, tão
cheirosa e lisinha de pele, tão pura de rosto, que todos diziam que parecia e
era, mesmo, uma verdadeira santa. Mentira: uma santa não daria aquelas
risadinhas, uma santa não se divertia, assim. O divertimento é uma espécie de
injúria aos infelizes, e é por isso que Mamãe só ria e se divertia quando
estávamos sós.
Nessa época, até um caipira
perguntou na feira de Laterra:
— Diz que aqui tem uma
padra. Onde é que ela mora? Contaram a Mamãe. Ela não riu:
— Eu não gosto disso. — E
ajuntou: Nunca fui uma fanática, uma louca. Sou, justamente, a pessoa
equilibrada, que quer ajudar ao próximo. Se continuarem com essas histórias, eu
nunca mais puxo o terço.
Mas, nessa noite, eu vi sua
garganta tremer, deliciada:
— Já estão me chamando de
“padra”… Imagine!
Ela havia achado sua
vocação. E continuou a aconselhar, a falar bonito, a consolar os que perdiam
pessoas queridas. Uma vez, no aniversário de um compadre, Mamãe disse palavras
tão belas a respeito da velhice, do tempo que vai fugindo, do bem que se deve
fazer antes que caia a noite, que o compadre pediu:
— Por que a senhora não faz,
aos domingos, uma prosa desse jeito? Estamos sem vigário, e essa mocidade
precisa de bons conselhos…
Todos acharam ótima a ideia.
Fundou-se uma sociedade: “Círculo dos Pais de Laterra”, que tinha suas reuniões
na sala da Prefeitura. Vinha gente de longe, para ouvir Mamãe falar. Diziam
todos que ela fazia um bem enorme às almas, que a doçura das suas palavras
confortava quem estivesse sofrendo. Várias pessoas foram por ela convertidas. Penso
que meu Pai acreditava, mais do que ninguém, nela. Mas eu não podia pensar que
minha Mãe fosse um ser predestinado, vindo ao mundo só para fazer o bem. Via
tão claramente o seu modo de representar, que até sentia vergonha. E ao mesmo
tempo me perguntava:
— Que significam estes
escrúpulos? Ela não une casais que se separam, ela não consola as viúvas, ela
não corrige até os aparentemente incorrigíveis? Um dia, Mamãe disse ao meu Pai,
na hora do almoço:
— Hoje me trouxeram um caso
difícil… Um rapaz viciado. Você vai empregá-lo. Seja tudo pelo amor de Deus.
Ele me veio pedir auxílio… e eu tenho que ajudar. O pobre chorou tanto,
implorou… contando a sua miséria. É um desgraçado!
Um sonho de glória a
embalou:
— Sabe que os médicos de
Santo Antônio não deram nenhum jeito? Quero que você me ajude. Acho que ele
deve trabalhar… aqui. Não é sacrifício para você, porque ele diz que quer
trabalhar para nós, já que dinheiro eu não aceito mesmo, porque só faço
caridade!
O novo empregado parecia uma
moça bonita. Era corado, tinha uns olhos pretos, pestanudos, andava sem fazer
barulho. Sabia versos de cor, e às vezes os recitava baixinho, limpando o
balcão. Quando o souberam empregado de meu Pai — foram avisá-lo:
— Isso não é gente para
trabalhar em casa de respeito!
— Ela quis — respondeu meu
Pai. — Ela sempre sabe o que faz!
O novo empregado começou o
serviço com convicção, mas tinha crises de angústia. Em certas noites não vinha
jantar conosco, como ficara combinado. E aparecia mais tarde, os olhos
vermelhos.
Muitas vezes, Mamãe se
trancava com ele na sala, e a sua voz de tom igual, feria, era de repreensão.
Ela o censurava, também, na frente de meu Pai, e de mim mesma, porém sorrindo
de bondade:
— Tire a mão da cintura.
Você já parece uma moça, e assim, então…
Mas sabia dizer a palavra
que ele desejaria, decerto, ouvir:
— Não há ninguém melhor do
que você, nesta terra! Por que é que tem medo dos outros? Erga a cabeça… Vamos!
Animado, meu Pai garantia:
— Em minha casa ninguém tem
coragem de desfeitear você. Quero ver só isso!
Não tinha mesmo. Até os
moleques que, da calçada, apontavam e riam, falavam alto, ficavam sérios e
fugiam, mal meu Pai surgisse à porta.
E o moço passou muito tempo
sem falhar nos jantares. Nas horas vagas fazia coisas bonitas para Mamãe.
Pintou-lhe um leque e fez um vaso em forma de cisne, com papéis velhos
molhados, e uma mistura de cola e nem sei mais o quê. Ficou meu amigo. Sabia de
modas, como ninguém. Dava opinião sobre os meus vestidos. À hora da reza, ele,
que era tão humilhado, de olhar batido, já vinha perto de Mamãe, de terço na
mão. Se chegavam visitas, quando estava conosco, ele não se retirava depressa
como fazia antes. E ficava num canto, olhando tranquilo, com simpatia. Pouco a
pouco eu assistia, também, à sua modificação. Menos tímido, ele ficara menos
afeminado. Seus gestos já eram confiantes, suas atitudes menos ridículas.
Mamãe, que policiava muito
seu modo de conversar, já se esquecia de que ele era um estranho. E ria muito à
vontade, suas gostosas e trêmulas risadinhas. Parece que não o doutrinava, não
era preciso mais. E ele deu de segui-la fielmente, nas horas em que não estava
no balcão. Ajudava-a em casa, acompanhava-a nas compras. Em Laterra, soube
depois, certas moças que por namoradeiras tinham raiva da Mamãe, já diziam, escondidas
atrás da janela, vendo-a passar:
— Você não acha que ela
consertou… demais?
Laterra tinha orgulho de
Mamãe, a pessoa mais importante da cidade. Muitos sentiam quase sofrimento, por
aquela afeição que pendia para o lado cômico. Viam-na passar depressa, o andar
firme, um tanto duro, e ele, o moço, atrás, carregando seus embrulhos, ou ao
lado levando sua sombrinha, aberta com unção, como se fora um pálio. Um franco
mal estar dominava a cidade. Até que num domingo, quando Mamãe falou sobre a
felicidade conjugal, sobre os deveres do casamento, algumas cabeças se voltaram
quase imperceptivelmente para o rapaz, mas ainda assim eu notei a malícia. E
qualquer absurdo sentimento arrasou meu coração em expectativa.
Mamãe foi a última a notar a
paixão que despertara:
— Vejam, eu só procurei
levantar seu moral… A própria mãe o considerava um perdido — chegou a querer
que morresse! Eu falo — porque todos sabem — mas ele hoje é um moço de bem!
Papai foi ficando triste. Um
dia, desabafou:
— Acho melhor que ele vá embora.
Parece que o que você queria, que ele mostrasse que poderia ser decente e
trabalhador, como qualquer um, afinal conseguiu! Vamos agradecer a Deus e
mandá-lo para casa. Você é extraordinária!
— Mas — disse Mamãe
admirada. — Você não vê que é preciso mais tempo… para que se esqueçam dele?
Mandar esse rapaz de volta, agora, até é um pecado! Um pecado que eu não quero
em minha consciência.
Houve uma noite em que o
moço contou ao jantar a história de um caipira, e Mamãe ria como nunca,
levantando a cabeça pequenina, mostrando a sua nudez mais perturbadora —seu
pescoço — naquele gorjeio trêmulo. Vi-o, ao empregado, ficar vermelho e de
olhos brilhantes, para aquele esplendor branco. Papai não riu. Eu me sentia
feliz e assustada. Três dias depois o moço adoeceu de gripe. Numa visita que
Mamãe lhe fez, ele disse qualquer coisa que eu jamais saberei. Ouvimos pela
primeira vez a voz de Mamãe vibrar alto, furiosa, desencantada. Uma semana
depois ele estava restabelecido, voltava ao trabalho. Ela disse a meu Pai:
— Você tem razão. É melhor
que ele volte para casa.
À hora do jantar, Mamãe
ordenou à criada:
— Só nós três jantamos em
casa! Ponha três pratos…
No dia seguinte, à hora da
reza, o moço chegou assustado, mas foi abrindo caminho, tomou seu costumeiro
lugar junto de Mamãe:
— Saia!… — disse ela baixo,
antes de começar a reza. Ele ouviu — e saiu, sem nem ao menos suplicar com os
olhos.
Todas as cabeças o seguiram
lentamente. Eu o vi de costas, já perto da porta, no seu andar discreto de
mocinha de colégio, desembocar pela noite.
— Padre Nosso, que estais no
céu, santificado seja o Vosso Nome…
Desta vez as vozes que a
acompanhavam eram mais firmes do que nos últimos dias.
Ele não voltou para a sua
cidade, onde era a caçoada geral. Naquela mesma noite, quando saía de Laterra,
um fazendeiro viu como que um longo vulto balançando de uma árvore. Homem de
coragem, pensou que fosse algum assaltante. Descobriu o moço. Fomos chamados.
Eu também o vi. Mamãe não. À luz da lanterna, achei-o mais ridículo do que
trágico, frágil e pendente como um judas de cara de pano roxo. Logo uma
multidão enorme cercou a velha mangueira, depois se dispersou. Eu me convenci
de que Laterra toda respirava aliviada. Era a prova! Sua senhora não
transigira, sua moralista não falhara. Uma onda de desafogo espraiou-se pela
cidade.
Em casa não falamos no
assunto, por muito tempo. Porém Mamãe, perfeita e perfumada como sempre,
durante meses deixou de dar suas risadinhas, embora continuasse agora, sem
grande convicção — eu o sabia — a dar os seus conselhos. Todavia punha, mesmo
no jantar, vestidos escuros, cerrados no pescoço.
(Histórias do Amor
Maldito)
(Ilustração: Odilon Redon)
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