quarta-feira, 3 de dezembro de 2014
O DIA 16 DE NOVEMBRO, de Elvira Vigna
No dia 16 de novembro, Paulo abriu os olhos e voltou-se para a nesga de luz que passava pelas duas cortinas — a mais pesada, de um plástico cinza, e a mais leve, de um tecido branco transparente que ficava por cima da outra. Permaneceu assim por alguns momentos, antes de iniciar o preparo para que o resto todo de seu corpo pudesse acompanhar os olhos e sair do quarto escuro, pequeno e já cheio de ruídos: alguém que ligava a televisão no quarto ao lado; o carrinho da arrumadeira, ameaçador, no hall; o tlim do elevador. Primeiro, fez uma inspeção mental básica no estômago e na boca. Não, nenhum vestígio do mal-estar da noite anterior, em que, depois de comer um x-tudo no bar da esquina, vomitou e cagou a alma. E, ao falar para si mesmo essa frase, poderia ter achado engraçado: a alma. Seria oportuno, rá, rá, se livrar da alma na véspera. Mas Paulo não era uma pessoa de muitas reflexões. Isso normalmente. Naquela hora, então, é que não havia de fato lugar para elas. Depois do estômago foi a vez do joelho, e, nesse, a inspeção não poderia ser apenas mental. Então Paulo esticou a perna, dobrou e tornou a esticar. Nada de muito ruim. A dor nas costas, com a hérnia de disco, estava como sempre quando ele acordava: existente. Mas, no decorrer do dia, com os movimentos, tendia a se estabilizar. E, depois disso, como se já se sentisse cansado — e o motivo do cansaço seria, então, o simples fato de ter joelhos, estômago e costas —, ele ainda ficou, os olhos agora mirando a escuridão, a ouvir o tique-taque do relógio grande, feio, da mesinha de cabeceira. Ficou ouvindo o tique e o taque e o tique e o taque, em sua previsibilidade, enquanto dava um tempo para que a arritmia se manifestasse. Esse era o único sintoma de sua cardiopatia, para a qual tomava quilos de remédios cotidianamente.
O dia começava.
Depois, já andando na praia em direção ao Posto Seis, seu corpo e seus mais de sessenta anos ficaram esquecidos. Andar sozinho por cidades desconhecidas era sempre um imenso prazer. Andar de ônibus ou de carro por estradas que o levassem a lugares desconhecidos, mais ainda. O Rio de Janeiro não era desconhecido até bem pouco tempo. Tinha ficado. Paulo saíra de lá, com toda a família, não fazia um mês. Mas, se a cidade continuava a mesma, ele já era outro. E, entre seus pés e as calçadas, agora surgia uma distância alegre de quem não tem mais nada a ver com aquilo.
Ia, devagar porque tinha tempo, para a casa de um ex-colega de um de seus inúmeros trabalhos. Melhor dizendo, profissões. Não que tivesse buscado isso. Não que em algum momento de sua infância tivesse se dito Vou ser o que pintar, fazer o que me der na telha. Simplesmente aconteceu assim. A vida volta e meia o tirando de uma trilha e o pondo em outra. Nesse caso, a trilha, ou, melhor dizendo, a avenida Atlântica, o levava para a casa de um cara chamado Pedro Correa, mais conhecido por Pecê, seu fornecedor de maconha. Entre o Pedro e o Correa, e mesmo depois do Correa, havia mais nomes. Mas Pecê era uma palavra engraçada de ser dita nas salas de mobiliário com design ergonômico e tapetes grossos da empresa de marketing onde ambos trabalhavam. E Pecê ficou. Era um sujeito baixo e gordinho, que morava num grande apartamento de frente para o mar, com a mulher e, de vez em quando, com um de seus filhos já adultos e independentes mas que, por um motivo ou outro, pernoitavam com frequência na casa do pai. Era ele o correspondente atual e possível das figuras da juventude de Paulo, todas muito mais fascinantes e românticas, com uma maconha também muito mais divertida e grupal. E, se Paulo fosse dado a pensamentos, aqui também haveria um. Pois o pc, Partido Comunista, no qual Paulo militara em sua juventude, se via assim transformado num aposentado rico, que curtia maconha menos do que dizia curtir, e que o fazia porque sentar-se na sala com um ou outro filho e oferecer um cigarrinho era sua maior possibilidade de se sentir próximo.
Não havia muito papo entre Paulo e esse seu ex-colega. Tinham trabalhado juntos — não há muito que falar sobre isso, além de um Você tem visto o fulano? Você soube que o sicrano. Quem? O sicrano, aquele do departamento tal. Ah. Pois ele, não sei se você soube. O que tem duração pequena por mais que se esprema. Até que Pecê se levante do sofá, diga o aguardado Vou pegar, e volte logo depois com um pacotinho e um cigarro já preparado na mão, para que fumem um pouco, os dois, conformados ambos com o fato de que a proximidade geográfica e aleatória é tudo o que há. Ficarão por um tempo encostados no peitoril da janela enorme, vendo o horizonte, ali, imutável, do jeito mesmo que era quando ambos, ainda jovens, levavam, lá embaixo, na calçada, vidas muito diferentes uma da outra. E, diante desse horizonte imutável, ambos fumarão essa maconha esforçando-se para que ela também fosse imutável. Mais do que o horizonte, a maconha ajudava-os a pensar que o tempo não havia passado e ainda havia muita vida pela frente.
Mas Paulo pousava o peso do corpo ora em uma perna ora em outra. Para obter a maconha de Pecê, ele precisava compartilhar o clima de Pecê — a janela, os móveis pesados, o apartamento antigo e caro —, e Paulo não era essa pessoa.
(Muito do que aqui se está a falar é sobre que pessoa é Paulo.)
Mas Paulo, indo de uma perna à outra sem sair do lugar, falou afinal o que ele tinha para falar, a frase-troféu, a apoteose, o segundo motivo de sua visita.
“Tem uma mulher aí me enchendo o saco, querendo dar para mim.”
Pecê foi mais bem-sucedido que Paulo no emprego que compartilharam por alguns anos na multinacional. Nela, qualquer que fosse o cargo, o importante era ostentar perfil adequado à venda. Marketing. Com seu anelão, conversa mole e profundamente mainstream, Pecê e, aliás, todos os seus colegas eram melhores no papo com os clientes, nas risadas e nos tapinhas nas costas do que Paulo jamais seria.
Rá, rá, riu Pecê. E deu um tapinha nas costas de Paulo.
E depois, sério:
“Ah, quando elas se tornam muito insistentes, é muito chato mesmo.”
Acabaram de fumar a maconha, agora Paulo se sentindo melhor, os cotovelos encontrando um nicho na madeira do peitoril, um pouco carcomida pela maresia. Paulo sempre tinha querido dizer o que acabara de dizer — e ele virava e revirava a frase na sua cabeça, gostosamente. Nos almoços das quintas-feiras que o grupo organizava no restaurante ali embaixo, havia sempre um ou outro colega que falava de seus casos com mulheres. Rara a semana em que não havia casos novos a serem aludidos, e que eram comentados apenas com frases curtas, jamais perguntas, e sem detalhes concretos, substituídos por risadas, muxoxos e o alcear de sobrancelhas. Paulo nunca tinha tido amantes. Algumas garotas de programa sim, quando viajara, havia muito tempo, com esse mesmo grupo para outras cidades, Brasília, Recife e principalmente São Paulo. São Paulo, para onde agora tinha se mudado. Estar morando em São Paulo excluía até mesmo de sua imaginação — já que na prática garotas de programa não eram mais uma presença real em sua vida — o rico plantel de boates e putas da rua Augusta, a uma quadra de sua nova casa. Pois era importante para Paulo que seus escapes, como denominava trepadas ocasionais, se dessem em cidades diferentes daquela em que morava. Sentia-se mais seguro assim. Era mais fácil de compartimentar, de escondê-las até de si mesmo.
Amante, ia ser a primeira.
O mal-estar da noite anterior, inclusive (ele aventaria depois), bem poderia ter sido um ataque de pânico sem participação de um afinal inocente x-tudo. Pois na noite anterior, ao meter a chave na porta do quarto do hotel e se jogar na cama, enfim sozinho, ele já sabia que no dia seguinte iria trepar com N.
“Vamos almoçar juntos amanhã?” E os peitos, quase totalmente fora do decote, roçavam seu antebraço no quiosque deserto da praia. Os peitos sem ter nenhuma dúvida quanto à resposta.
“Vambora.”
“Onde você quer?” E os ouvidos de Paulo escutavam essa pergunta em outro contexto, onde ele ia querer? Ah, ele ia querer em tudo.
“No Mario’s?”
A mulher endureceu. Apagou o cigarro no cinzeiro da mesa, num gesto decidido. O Mario’s, ela explicou, era onde ela levava clientes da firma de importações-exportações que mantinha com o marido, para almoços de negócios.
“O nosso almoço vai ser de negócios?” E riu os dentinhos de rato.
Combinaram então o restaurante do Posto Seis, embaixo da casa do Pecê, que era o primeiro e urgente destino a ser alcançado, first thing in the morning. First thing in the morning porque Paulo pensava com palavras que eram as suas, uma mistura bem particular de inglês e português. Era a mistura que ele começara a incorporar desde a época em que cantava com voz nasalada e olhos fechados, dobrado em cima de seu violão, músicas de Bob Marley. E que continuaram, essas palavras misturadas, em suas várias vidas, sedimentando-se numa tonalidade diferente, tipo business, na sua estada na multinacional. No tempo presente, elas vinham com um tom irônico, pois Paulo, no momento, era tradutor.
Aguardando a futura amante no restaurante quase vazio, Paulo escolheu a mesa que costumava usar nas dezenas de vezes em que lá estivera com seus ex-colegas. Ouviu com prazer o barulho da cadeira de metal arrastando em cima das pedras portuguesas do chão. Pareceu‑lhe um olá de conhecidos. Sentou, disse ao garçom que esperava alguém, pôs a mochila com seu pacotinho de maconha na cadeira ao lado.
Depois mudou a mochila. Era melhor deixá‑la na cadeira na sua frente, para que a cadeira ao lado ficasse vaga.
N. saltou do táxi com suas coxas roliças e caminhou até ele. Essa caminhada, passo por passo, não era uma caminhada. Era a implementação de uma imagem. Era uma ação estudada, matemática, calculada. A imagem que N. estabelecia com essas suas saídas de dentro de táxis era a de uma mulher segura, que sabe o que está fazendo. Nesse caso, N. o sabia duplamente. Ela era uma mulher que sabia estar indo ao encontro daquele que ela havia escolhido para amante e ela era uma mulher que sabia que andar com a aparência de segurança era excitante. Paulo hesitou e se levantou para beijá-la.
Pediram frango à passarinho e cerveja.
Ficaram em amassos entre um alho e outro.
Mais amassos.
Num amasso, Paulo, desajeitado, derrubou cerveja. Riram. Enxugaram-se com guardanapinhos de papel que grudavam não só na cerveja como no suor que estava por baixo da cerveja. Pois suavam. Paulo riu mais, mais do que gostaria.
Não é fácil o caminho até o sexo.
Principalmente quando se imagina um sexo desavergonhado, bruto, sem prolegômenos, e o que se tem em frente é a cara bem conhecida de uma velha amiga e colega de profissão. Pois Paulo e N. se conheciam havia cinco anos.
Não é fácil. A que horas daria para dizer Agora vira e abre bem as pernas. A que horas daria para dizer Então vamos.
“Então vamos.”
E a realidade nunca está à altura.
Depois do Então vamos — que deveria encerrar uma cena e, corte, ação, grudar em outra, eles já nus, gritos, pernas abertas —, ainda houve todo o intermediário, o mingau que a tudo arrefece. Pois não foi possível levantar e sair aos pulos de canguru até o horizonte, logo ali.
Não.
Foi preciso esperar garçom, conta, maquininha de cartão de crédito e recibo de cartão de crédito.
Mas foram.
No táxi, a ordem saiu automaticamente, afinal era o único motel que Paulo conhecia.
“Vamos para o Sândalo, na São Clemente.”
Desses momentos — há um motorista de táxi esperando para saber aonde ir — de definição impostergável sobre quem é o macho, quem é a fêmea. Era Paulo quem tinha de dizer para qual motel iriam. Uma pergunta do tipo Você conhece aí um motel legal, benhê?, e nem seria o caso de continuar o caminho. Esse era um motel velho conhecido de Paulo, o único conhecido.
Foram.
Treparam.
N. com mais desenvoltura que Paulo. Luz acesa, cortina semiaberta, uma nudez sem problemas, peitos, bunda, boceta, ali, às claras. Prometia. Mas Paulo iniciava com beijinhos, carinhos, palavras de afeto. Odiando-se por isso, sem saber como sair disso. N. também maneirava nesse primeiro dia, sem querer parecer puta, sempre um risco em situações como a sua.
Fizeram um papai e mamãe e depois ficaram por ali, nus, fumando o mesmo cigarro, retomando as conversas que tinham havia tanto tempo, nos almoços e cafés marcados, sempre a sós, quando falavam sobre programas de tradução, tradutores amigos, novos clientes etc.
Ficaram trepando, sempre numa tentativa de sair de um limite que, justamente por existir, era o que criara o encontro.
E depois foram embora, pedindo dois táxis. N. foi para a casa dela, Paulo para o hotel.
No hotel, o telefonema habitual, feito sempre, em todas as viagens, desde que o mundo é mundo:
“Oi, querida, tudo bem por aí?”
E que ele ainda ia sair para comer alguma coisa e depois ia dormir cedo porque estava cansado.
Foi esse o dia 16 de novembro.
O dia 16 de novembro, na verdade, havia começado no dia 15. Que foi quando Paulo chegou à rodoviária do Rio e encontrou N. lá para buscá‑lo. N. o beijou e disse que só ele mesmo para fazê-la ir a um lugar tão brega quanto uma rodoviária. Paulo não explicou como era bom estar numa janela que lhe mostrava, por cinco horas, coisas que ficavam para trás. Entraram no carro caro dela, e de lá foram ao hotel de Paulo, largar a mala. Naquele fim de dia andaram pelo calçadão, num preparo desajeitado, de esbarrões, olhares significativos, apertos de braço, chupões em quiosques vazios, mãos chegando perto de peitos e pau, num cerca-lourenço para o que só iria acontecer no dia seguinte.
Então, quando Paulo disse no telefone que ia dormir cedo porque estava cansado, ele se referia ao cansaço da passagem, entre sua vida anterior e a nova, e que era uma passagem que tinha durado dois dias.
E o Vou dormir cedo tinha outra utilidade, além de denotar essa passagem. Queria dizer Não me ligue de volta.
Bobagem. Mesmo sem isso não haveria ligações de volta. Nunca havia.
(Nada a dizer)
(Ilustração: Lynn Randolph)
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