segunda-feira, 25 de junho de 2012

UM EXORCISMO EM POÇOS DE CALDAS, de Jurandir Ferreira





- Então o senhor conversou com o diabo?

- Conversei muitas vezes. Não foi esta a primeira. Em matéria de conversa com o demônio eu já tenho uma folha de serviços bem comprida. Mas é uma espécie de conversa de que não gosto. Posso contar como foi, o que não quero é dar entrevista. Os jornais já abusaram desse caso.

Frei Bertoldo falava com sotaque italiano. Tinha muita gravidade e austeridade nas suas inflexões e nos seus gestos. [...]

- Eu estava deitado em minha cela quando o irmão porteiro me veio bater na porta, dizendo que estava lá um homem que queria me ver. "Quem é?" perguntei. "É um macchione, um caipira", respondeu. "Mas como posso falar com esse homem? Estou com febre. Diga a ele que não posso." O irmão saiu e logo tornou a voltar. "Ele insiste", falou o porteiro.  "Diz que é urgente, que veio de longe e tem de contar coisa importante." Pelo visto o homem andava em grandes apuros.

Que havia eu de fazer com semelhante importuno? "Traga-o aqui." Então se chegou a mim o tal caipira e me disse que o diabo estava na casa dele e que fazia desordens a ponto de não dar sossego a ninguém. Nem mesmo aos bichos do sítio. A mulher e a filha já estavam doentes. Até o doutor lá fora numa visita. E o médico saiu impressionado com o que lhe aconteceu, pois levou também suas pancadas e ficou sem a maleta. "É diabo batedor, seu frade, gosta de machucar", disse o caipira. "E que cara tem esse teu diabo?" perguntei-lhe. O caipira respondeu que não tinha cara de nada. Não se via. A coisa tinha começado de repente. O caipira ia voltando para o seu sítio e quando já estava perto da casa, debaixo duma figueira velha, tomou tamanho tranco que o atirou por terra. Pensou que fosse uma pedrada, mas não havia ninguém no pasto nem na figueira. Não podia ser pedrada nem paulada. Levantou-se meio ressabiado, ainda olhou de toda banda, olhou pra baixo, olhou pra cima. Nem vulto de gente. Experimentou as pernas. Estavam firmes. O tranco parece que tinha sido no cangote. Qual cangote! Vai ver que tinha dado era uma topada nalgum toco, pensou ele. Pegou o picuá caído no chão e não andou mais de dez passos que lá veio novo tranco, novo tombo. E era levantar e tomar outro. Até que a pancadaria choveu nele caído ou nele de pé. E apanhava sem ver quem estava lhe batendo, embora ainda fosse dia claro. O medo foi tanto que ele desabalou e em poucos minutos estava dentro de casa, onde chegou ofegando e tremendo. Deram-lhe logo água com açúcar e vários chás de casa para acalmá-lo. Porém, não se dava muito crédito ao que o homem dizia, pois a coisa se passara sem testemunhas. Pensaram que ele estava delirado da ideia. Uma semana se passou, e a história começava a ser esquecida, quando uma noite o caipira acordou com alguém que o chamava. "Ô Domingo! Ô Domingo!" lhe gritavam. "Vai ajuntar a vacaria!" Domingo, desconfiado de coisa tão sem propósito numa hora daquelas, perguntava "quem é? quem é?" Não respondiam. Depois a mesma voz continuava a chamá-lo. " Ô Domingo! Ô Domingo! Acode a criação, Domingo." A voz era ao mesmo tempo longe e perto. Parecia vir do oitão da casa e do assoalho, de dentro do quarto e do curral. E era uma voz grossa e possante. A galinhada no galinheiro se punha em rebuliço, os porcos balavam as tábuas do chiqueiro, e os cachorros ganiam miúdo. Todo mundo na casa acordou, acendeu as lamparinas. Eram nove e meia da noite. E nessa altura é que a voz continuou a aparecer nas noites seguintes, embora também aparecesse às vezes de dia, com sol de rachar. Chamava todo pelo nome, como se fosse íntimo. Mostrava-se muito divertido com o susto deles. Debochava as rezas e os terços que faziam para esconjurá-lo e dizia os palavrões mais porcos. Era o demônio, tinha dúvida que não era outro senão o demônio. Em lugar nenhum estavam livres dele. Nem fazer as suas necessidades as pobres mulheres já não podiam. Foi por causa disso que a mulher de Domingo ficou doente, pois o diabo dava a dor de barriga e ele mesmo impedia de aliviar. Mas com a filha a coisa foi pior. Uma noite ele apareceu dizendo: " Ô Domingo, vou ser teu genro. Resolvi casar com a Nhenha. Ô Nenha, vou casar c'ocê, Nhenha." Então a coitada da Nhenha teve um desmaio e acessos de nervos que duraram a noite toda, enquanto na casa e em roda da casa cheia de imagens, de velas acesas e de defumações o povo rezava as rezas de esconjuro. Dessa data em diante, embora ainda fosse violento e assustasse muito a criação, desse pancada nas pessoas e chegasse a atirar as panelas de comida no meio do terreiro, às vezes aparecia bonzinho, lá a modo dele. Um dia de sol claro, com cigarra cantando nos paus de cerca, e o pasto rescendendo de tão quente, as donas lavavam roupas de várias semanas. Um mundo de roupa molhada, enxaguada e torcida em várias bacias e gamelas, à beira do corgo, já na hora de estender pra secar. Nisso veio o diabo. "Ah, coitadinhas", ele disse, "quero ajudar vosmecê". As donas, que não viam quem lhe falava e reconhecendo aquela voz, ajuntaram saias e espavoridas fugiram. Mas quando chegaram em casa já encontraram toda a roupa em cima da mesa, não apenas seca, mas também dobrada e passada. Ao verem aquilo as mulheres se arrependeram de ter tido medo, pois era coisa mais de santo que alma danada. E já estavam a desejar que o diabo as ajudasse de igual modo em outros serviços, quando a roupa foi aparecer de novo junto ao corgo e mais suja do que antes. A infeliz da Nhenha, noiva à força, e a futura sogra do diabo, cada vez piores. A gente que chegava das vizinhanças para assistir à partes dos satanás ainda aumentava os embaraços e prejuízos para o Domingo. Na confusão que se estabelecia todas as noites, com o diabo de um lado e o ajustamento de curiosos do outro, o sítio do caipira ia ficando cada vez mais pobre. As poucas reses escapavam, os porcos e leitões eram roubados ou sangrados para dar de comer ao mundo de visitas, o mesmo acontecendo com as galinhas. Foi nesse ponto que o Domingo me apareceu no convento.

"Que é que eu posso fazer? Estou com febre", disse logo. Estou com trinta e nove há uma semana, isso não é brinquedo. Além do mais não posso expulsar nenhum diabo de minha própria vontade, sem que o senhor bispo me dê ordem. Não dependo só de mim. Sem a ordem do palácio não me movo. Então o caipira Domingo saiu, subiu no jipe que o tinha trazido e foi-se embora. Eu voltei para a cama e imediatamente dormi. Dormi o sono mais pesado de toda a minha vida. Só acordei no dia seguinte como o mesmo irmão porteiro que me chamava. O caipira estava lá de novo. Mas não vinha sozinho. Trouxe na sua companhia um mulatinho moço, de calça americana e paletó de couro, que foi quem veio com a ordem do senhor bispo. Era dono do jipe esse moço, vizinho do Domingo e se chamava Alaor. Queria me levar imediatamente. Estava mais apressado que o próprio Domingo. E me dizia: "vamos, seu frade, que o tal diabo está fazendo um estrago". O cuidado dele me pareceu que era principalmente com a Nhenha. Enquanto o diabo ao mexeu com a Nhenha, o mulatinho assuntou o que acontecia. Mas desde a hora em que o demônio entrou com parte de noivado, o Alaor quis se fazer de valente e não se livrou dos achincalhes e também de algumas tundas do capeta invisível.

Entretanto em me sentia completamente bom e e curado naquela manhã, sem um pingo de febre. O que não podia era sair na mesma hora, conforme o Alaor me pedia. Tinha de me preparar para aquela espécie de luta, o que não é nada fácil para um pobre homem como sou eu e que tem por si apenas a fé a cruz de Nosso Senhor. No dia seguinte me vieram buscar. Chamei meu sacristão para ir comigo e que não é um sacristãozinho qualquer, veja lá, mas um peso-pesado de mais de cem quilos, capaz da abater um exército com meia queixada de burro. Botamos na mala os paramento e tudo o mais quanto exige o nosso ritual romano. À noite subimos ao jipe e tocamos. Fiquei tranquilo por ver a estrada que as chuvas haviam transformado numa sucessão de charnecas e lagoas. "Assim não teremos tanta gente a nos atrapalhar o ofício", pensei eu. E efetivamente o povo que havia estava dentro de casa. Todo mundo surpreso com os modos de Nhenha. Era moça de tranças compridas e de cara lavada como pedra de cachoeira. Não tinha requebrados nem jeitos saídos porque o pai a havia feito crescer no estilo das mulheres da roça. No entanto lá estava ela agora de cabelos curtos, retamada de tintas, cigarro na boca e decotada como uma artista de cinema. Depois da noite de nervos veio aquela mudança de maneiras, que ninguém se animava a impedir ou contrariar. Vi então que era necessário romper logo aquele noivado com o diabo. Mandei uma das mulheres rezadeiras que puxasse o terço. E o terço foi rezado por todos que lá estavam, menos a Nhenha, que só sabia vaguear sozinha pela casa. Terminado o terço. começamos o nosso ritual dentro dum grande silêncio, esperando que a qualquer momento o maligno se manifestasse. Porém nada de ele chegar. Domingo tinha me dito que a hora era a das nove e meia. O relógio chegou nas nove e meia. Ninguém se mexia. Não se escutava o mínimo ruído nesse momento. Nós continuávamos com as nossas orações e aspergíamos a água benta. Já ia o relógio para perto das nove e três quartos e quase que estávamos para acreditar que tudo não passava de mistificação e de alucinações, quando olho para o rosto do sacristão e o vejo empalidecer como um defunto, os seus cabelos se eriçarem, e tremer o turíbulo que ele tinha nas mãos. Os cachorros começaram a ganir fininho, como me haviam contado, e a correr para os cantos, de rabo entre as pernas. Nesse mesmo instante senti um peso enorme sobre todo o meu corpo, como se uma corrente elétrica me entrasse pelos ossos e pelos músculos. Aí lembro-me que em voz mais alta eu retomava a oração no ponto onde dizia: Omnipotentes, sempiternes Deus, qui in omni loco dominationis tuae totus assistes. A eletricidade se desvaneceu em seguida, não durou nada. Então se ouviu um palavrão, e o diabo começou a falar. A voz parecia descer mesmo do oitão da casa e não era voz humana de modo algum. Chegou insultando-me e insultando a Igreja e os seus santos, com um calão que me é penoso só de lembrar. "É hoje", repetia ele a cada passo, "você vai fazer meu casamento. Hoje caso com a Nhenha. E depois de casar eu enforco você, seu fradequinho bandido". E isso era das coisas mais amáveis que ele me dizia.

Terminada aquela oração, para experimentar com que espécie de entidade eu estava lidando, eu lhe retrucava em italiano, em espanhol, em alemão, em francês, em grego ou em hebraico. E a tudo ele dava resposta imediata e precisa, insistindo em dizer que ia me matar. O ambiente na casa era de terror absoluto. Nas caras que a luz das velas iluminava podia apalpar-se cada contorno do medo. A mim àquela hora nada me entibiava. Em nome de Cristo eu o desafiei. Foram duas horas de discussão e de embate em várias línguas e com aspectos desencontrados. Ora ele invectivava no jargão imundo, com ideias primárias, ora em língua sábia, sobre doutrina que estava muito acima daquele ambiente e daquele auditório. Retornamos por fim, eu e o sacristão, ao exorcismo e continuamos a orar a Deus, sem dar mais ouvidos ao praguento. E o que vociferava, ameaçava e bramia foi cedendo pouco a pouco. Até que ao cabo daquele tempo, o vozeirão deixou  a sua arrogância, para afinal cair num pranto patético, pedindo perdão de tudo o que fizera. O diabo chorava e os presentes puxavam as contas dos seus rosários e faziam o sinal da cruz. Ouviam-se cada vez mais as nossas orações e cada vez menos o choro horrível do demônio. O tal choro foi diminuindo, diminuindo, como se ele se afastasse para muito longe, até que não se ouviu absolutamente mais nada. Também eu terminava o meu ministério e pela última vez aspergi a água benta. Estava tão exausto, como se houvesse andado quinhentas léguas a pé não podia sequer mover-me do lugar. Trouxeram-me uma cadeira para que eu não caísse.

Passei ali mais alguns dias, pois a fraqueza continuou extrema e tão dolorido era todo o meu corpo que não se podia tocar em minha carne. Mas aos poucos cheguei a um estado em que me foi possível viajar. Voltei. Hoje penso que ainda não era hora de voltar.

Quanto à Nhenha, esta não teve melhora alguma, para grande desespero do pobre Alaor. Devo confessar que ela continuou sendo a noiva de satã, apesar de tudo. Um dia levaram-na a um especialista. O especialista considerou-a um caso difícil. Aconselhou que a internassem em um manicômio. Em vez disso, trouxeram-na de volta para casa. Alaor já não podia esconder o seu desgosto. E acabaram fazendo troça daquele infeliz. Um dia ele saiu pela estrada, embrenhou no mato e ninguém mais teve notícia dele.

Desta maneira, veem os senhores que não e muito exato o que sobre o tal diabo foi dado na imprensa. Vieram os repórteres, bateram chapas, fizeram perguntas e lá se foram apressados e divertidos. Quem lê as tais reportagens acha que fui eu o herói da peça. Eu, no entanto, sei que não venci. É preciso entender que ele é o Mentiroso. Não sou bastante puro para estar bastante perto da Verdade com que me haveria sido possível expulsá-lo. Quando o diabo se afastou foi para enganar a todos. A sua obra estava completa. Não tive inspiração, nem forças nem virtudes para destruí-lo. Isto é que é certo, concluiu frei Bertoldo, com o tom de quem fala no púlpito.



(Um Ladrão de Guarda-chuvas)



(Ilustração: Franz von Stuck - Scherzo)



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