quinta-feira, 7 de junho de 2012
DOMINUS TECUM, de Ana Miranda
P.
Caldas 15.2.96
Nestes poucos dias fui sem conta vezes muitas à agência do correio vigiar a caixa postal, ansioso à espera da sua anunciada carta que não vinha, que não vinha, que não vinha, meu Deus, como se aquela sua carta fosse o ar que me faltasse, eu de alma sufocado, até parece que estava apaixonadíssimo por você e não estava, só posso me apaixonar agora por mim mesmo, pelo que ainda resta e que eu tenho de cuidar, estou é encantado perdidamente, como se você fosse a Minerva olímpica e eu o holipta geronto que nem mais aguenta o simples peso das suas armas... Mas afinal a carta chegou ontem e respirei salvo felizmente daquele sinistro vacuo ut supra, foi uma ronda de aleluias. Veio a carta de asas brancas sobre plumagem azul-celeste e com o seu muito oxigênio o que na minha euforia me pareceu acordes ao piano de um surdinado impromptu por George Sand à alma de Frederico Chopin. Me trouxe a sombra e também a água fresca e o oásis com suas tamareiras. As cartas sempre foram muito importantes também para mim. Agora mesmo estava lendo em A Condição de Homem, de Luiz Mumford, que o cristianismo dependeu muito delas. Dependeu doutrinariamente. Eu dependo como um adicto depende do traficante. Porém que isso, como dizia Shakespeare, não lhe esquente a cuca, você tem mais o que fazer e eu sou um clochard.
Com sua carta no bolso, que verifiquei interminavelmente se estava furado ou se não estava furado, amassando-a com meus dedos velhos e manchados pelas manipulações farmacêuticas, fui andar pela cidade, sous la lune, no parque entre as árvores meditando nos nossos assuntos, misticamente ligado à solidão de cada uma das pessoas do mundo, e àquelas de quem eu via a sombra detrás da persiana de uma janela, refletindo sobre nossa longa e triste vida em comum, querida, quando te conheci era mais fácil para mim me interessar por um inseto de Fabre do que por uma mulher, a minha vida era uma sucessão de cadeiras de balanço, chinelas, traças, plantar rosas e cortar rosas, uma assustadora vida de tédio e difusa inquietação, dias após dias devotados à inutilidade de folhear livros, a preencher fichas de cartolina recortadas por Cecília, minha pobre Cecília, eu a tirar o pó dos cinco tomos de Schopenhauer, de La Bretonne, que amor cundusse noi ad una morte, De consolatione philosophiae de Boecio, de dicionários, enciclopédias, essas relíquias sem sentido, quase morto nesta que é uma cidade que começa na água e termina na água, onde velhos e tuberculosos vagueiam nas ruas de manhã e de noite, velhos, tuberculosos e viciados em jogos, que saem dos hotéis, rijos por mulheres de longos vestidos de veludo, a cidade da ordem e da beleza e eu sempre fui um velho perambulando nela, o que me resta da vida é ter sido teu, é ter um dia sido arrebatado pelo caos indomável da paixão, minha deusa prostituta, o espectador de tua irresistível vida, como alguém adormecido que assiste não a seu próprio, mas a um sonho alheio a si. Eu queria ir à farmácia, mas quando vi estava na porta do cassino.
Sabes que o cassino não existe mais, quero dizer, há apenas o edifício, um teatro de recordações, com seu caráter de precariedade, de surpresa, de incerteza, de fluidez e de vertigem, acho que já te disse isso, estou ficando velho e os velhos esquecem o que disseram e se repetem e esquecem as suas lembranças recentes todas para se lembrar apenas do seu passado mais distante, isso se chama ecmnésia, acho que já te disse isso... fluidez e vertigem que o alimenta e que ele transmite ao único amor de sua vida, o dinheiro, a ambição paradoxal, a avareza dissipadora, mas também o encanto das peles de pêssego das mulheres e seus vestidos de canutilhos, as águas transparentes das piscinas de veneno, os caudais de ouro sempre ao alcance de nossas mãos. Tu gostavas tanto de jogar, me arrastavas ao cassino e eu tinha de vestir meu black-tie e improvisar uma gravata borboleta e ia desajeitado, um verdadeiro boticário da roça, cheirando a mofo embora ainda não fosse velho nem roído de traças, desajeitado, tímido... Sabes que sempre detestei cassinos. Tu aparecias linda naquele teu vestido de lã azul que te fazia demasiadamente humana e mulher, perfumada como uma flor de jarro, teus lábios pintados de vermelho que eu detestava tanto quanto detestava os cassinos, mas tu estavas me ensinando a amar o que eu sempre detestara, e o excesso de pintura no rosto que eu detestava e amava, e me perguntavas, Estou horrível, não estou, benzinho? Que roupa mais fora de moda, benzinho, Minha roupa está amassada, benzinho, Meu sapato não combina... não que fossem ideais de burgueses endinheirados, mas apenas uma vaidade feminina, se fossem ideais de burgueses endinheirados não terias amado um boticário matuto, me amavas? amavas? com tua beleza tão visível poderias ter escolhido qualquer burguês endinheirado mas me escolheste, a mim, e me arrastavas ao cassino no rastro do teu perfume e amarrado pelas pérolas falsas do teu colar e teu pandantife e rastejando por tua azulínea forma nas virações serranas, seguindo teu rastro com meu espírito tapera, e tinha ciúmes de teus olhares aos burgueses endinheirados, sei que era apenas um impulso feminino, não estavas interessada neles, estavas apenas interessada em medir teu poder de sedução, a atração que sentiam os homens por ti, mas eras minha, não eras?
Mas eu sentia ciúmes assim mesmo, senti meu peito arder quando as mãos enluvadas daquele danseur mondain tombeur de femmes seguraram tua cintura, lembras? e te levaram a bailar no salão do Palace Cassino, entre aqueles belos incansáveis dançarinos que queriam te namorar, e ele te arrastou para a sala da roleta. Fui destroçado caminhar pela cidade adormecida, enevoada, olhar as estrelas e tropeçar nos meus desencantos, quando ouvi teus gritos chamando por mim, corri e te encontrei chorando pelas ruas e disseste, Por que me deixaste sozinha benzinho? Por que não posso me divertir um pouco benzinho? Por que me fazes chorar benzinho? Achas que fiz alguma coisa errada? Na verdade não estavas ali ao meu lado, era apenas o meu desejo, estavas nos braços do dançarino no Cassino, e fomos caminhando, a ilusão de tua presença e eu, eu e minha alma tímida, eu que saí de Poços de Caldas pela primeira vez aos vinte e seis anos, para ir até a Estação de Cascata quinze quilômetros serra abaixo, teu fantasma e eu caminhamos de madrugada até a Fonte do Desejo onde tirei tua roupa e com teu magnífico corpo nu como se fosses fundida num arcabouço de caldasita aos rasgos do luar te beijei toda e em ti entrei como se fosses uma jazida e te fiz chorar ainda mais, de prazer, depois me fizeste confidências, caminhando nas ruas da cidade adormecida, sabias caminhar com grandeza e decoro, tinhas o ar grave de um ser injustiçado, mostravas teu caráter de quid ignotum, teu perfume, teu rastro, por que fico lembrando as coisas mais antigas? lembrando os anos que passei na prisão, não, por favor, não pense que estou falando nisso para te culpar, não era tão ruim na prisão, eu editava um jornal, quero que saibas que nunca, nem em meu mais íntimo pensamento, acreditei em uma só palavra do que disseram contra ti, meu amor, nada foi culpa tua, simplesmente eu fracassei, fracassei sozinho, fracassei porque nasci para perder, mas há uma dignidade no fracasso, há uma certa dignidade em ser esmagado sob o peso da existência e sucumbir elegante como aquele dançarino do Cabaré Gibimba, se não houvesse perdedores, se não existisse o fracasso, não haveria livros de romances nem cartas de amor, não haveria amor e nem morte.
(OESP/3.12.2012)
(Ilustração: Alia El-Bermani - nude seated)
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