sábado, 5 de junho de 2010

ESCADARIAS, 1, de Georges Perec








Certo, a história poderia começar assim, aqui, desta forma, de maneira um tanto lerda e lenta, neste reduto neutro que é de todos e não é de ninguém, onde as pessoas se cruzam quase sem se ver, onde a vida do prédio repercute, distante e regular. Do que se passa por trás das pesadas portas dos apartamentos só se percebem no mais das vezes os ecos perdidos, os fragmentos, os esboços, os contornos, os incidentes ou acidentes que se desenrolam nas chamadas “partes comuns”, esses leves ruídos de feltro que os gastos tapetes de lã vermelha abafam, esses embriões de vida comunitária que vão sempre se deter nos patamares. Os habitantes de um mesmo prédio vivem a apenas alguns centímetros uns dos outros, uma simples divisória os separa, partilham os mesmos espaços que se repetem ao longo dos andares; fazem os mesmos gestos ao mesmo tempo, abrir a torneira, dar a descarga, acender a luz, pôr a mesa, algumas dezenas de existências simultâneas que se repetem de andar em andar, de prédio em prédio e de rua em rua. Eles se entrincheiram em suas partes privativas — pois é assim que se chamam — e gostariam que nada dali saísse, e o pouco que consentem em que saia, o cão na coleira, o menino que vai comprar pão, o recebido ou o expedido, é pela escadaria que sai. Pois tudo o que se passa passa pela escadaria, tudo o que chega chega pela escadaria, as cartas, os comunicados, os móveis que os carregadores trazem ou levam, o médico chamado com urgência, o viajante que volta de longa viagem. É por esse motivo que a escadaria permanece um lugar anônimo, frio, quase hostil.


Nos edifícios antigos, havia ainda degraus de pedra, balaústres de ferro fundido, esculturas, tocheiros, às vezes um banquinho para permitir que as pessoas idosas descansassem entre um andar e outro. Nos prédios modernos, há elevadores com os forros cobertos de pichações pretensamente obscenas e escadas ditas “de emergência”, de cimento bruto, sujas e sonoras. Neste prédio aqui, em que há um elevador quase sempre parado, a escadaria é um lugar vetusto, de asseio duvidoso, que de andar em andar se degrada conforme as convenções da respeitabilidade burguesa: tapete duplo até o terceiro andar, simples em seguida, e depois nenhum para os dois andares do alto.



Certo, a história vai começar aqui: entre o terceiro e o quarto andares do número 11 da rua Simon-Crubellier. Uma senhora de seus quarenta anos está subindo a escada; veste uma capa impermeável de vinil e traz na cabeça uma espécie de gorro de feltro, em forma de pão de açúcar, um pouco no estilo do que imaginamos seja um chapéu de duende, dividido em quadrados vermelhos e cinzentos. Uma grande bolsa à tiracolo, dessas chamadas vulgarmente patuá, pende-lhe do ombro direito. Um lencinho de cambraia de linho está amarrado em torno de um dos anéis de metal cromado que prendem a alça. Três motivos impressos a decalque repetem-se regularmente em toda a superfície da bolsa: um enorme relógio de pêndulo, um pão de forma partido ao meio e uma espécie de recipiente de cobre sem asas.



A mulher observa uma planta que tem na mão esquerda. É uma simples folha de papel cujos vincos ainda visíveis atestam ter sido dobrada em quatro, fixada por meio de um clipe a espesso volume de páginas mimeografadas: o regulamento do condomínio respeitante ao apartamento que esta mulher vai visitar. Na folha, estão desenhadas não uma, mas três plantas: a primeira, no alto e à direita, permite localizar o prédio, mais ou menos a meio da rua Simon-Crubellier, a qual divide obliquamente o quadrilátero que formam entre si, no quarteirão da Plaine Monceau, no xvii arrondissement, as ruas Médéric, Jadin, De Chazelles e Léon Jost; o segundo, ao alto e à esquerda, é um corte transversal do prédio, indicando esquematicamente a disposição dos apartamentos, precisando os nomes de alguns de seus moradores: senhora Nochère, porteira, senhora Beaumont, segundo à direita; Bartlebooth, terceiro à esquerda; Rémi Rorschash, produtor de televisão, quarto à esquerda; doutor Dinteville, sexto à esquerda, bem como o apartamento vago, no sexto à direita, que Gaspard Winckler, artífice, ocupou até morrer; a terceira planta, na metade inferior da folha, é a do apartamento de Winckler: três peças que dão para a rua, uma cozinha e um toalete que dão para a área de serviço, um quarto de despejo sem janelas.



A mulher retém na mão direita um volumoso molho de chaves, sem dúvida as de todos os apartamentos que visitou durante o dia; várias pendem de chaveiros de fantasia: uma miniatura de garrafa do licor Marie Brizard, um tee de golfe e uma vespa, um dominó que representa um seis duplo, uma ficha de plástico, octogonal, na qual foi incrustada uma flor de tuberosa.



Faz quase dois anos que Gaspard Winckler morreu. Não tinha filhos. Não se sabe se deixou outros familiares. Bartlebooth encarregou um tabelião de procurar seus eventuais herdeiros. Sua única irmã, a senhora Anne Voltimand, havia morrido em 1942. Seu sobrinho, Grégoire Voltimand, fora morto no Garigliano em maio de 1944, quando da ruptura da Linha Gustav. Foram necessários vários meses para que o tabelião descobrisse um primo em terceiro grau de Winckler; chamava-se Antoine Rameau e trabalhava numa fábrica de sofás moduláveis. Os direitos de sucessão, acrescidos das despesas decorrentes do estabelecimento de sucessores, revelaram-se tão elevados que Antoine Rameau precisou vender tudo em leilão. Há já meses, os móveis dispersaram-se pelas hastas e, faz algumas semanas, o apartamento foi adquirido por uma agência imobiliária.



A mulher que sobe as escadas não é a diretora da agência, mas sua adjunta; não se ocupa de assuntos comerciais nem das relações com a clientela, mas apenas dos problemas técnicos. Do ponto de vista imobiliário, o negócio foi bom, o bairro é interessante, a fachada é de pedra de cantaria, a escadaria é passável, apesar de o elevador ser bastante antiquado, e a mulher vem agora inspecionar com maior cuidado as condições do apartamento, traçar uma planta mais precisa das divisões, usando, por exemplo, traços mais espessos para distinguir das paredes as divisórias e empregando semicírculos pontilhados para indicar o sentido em que se abrem as portas, e prever as obras necessárias, a fim de preparar um orçamento inicial dos custos de remodelação: a divisória que separa do toalete o quarto de despejo será posta abaixo para permitir a construção de um banheiro com banheira e wc; o piso da cozinha será substituído; um boiler aquecido a gás, com função mista (aquecimento central e água quente), será posto em lugar do antigo sistema a carvão; o piso de taquinhos em zigue-zague das três peças será retirado e trocado por uma placa de cimento recoberta por forro e atapetada.



Das três pequenas peças onde durante quase quarenta anos viveu e trabalhou Gaspard Winckler não resta grande coisa. Seus poucos móveis, a pequena banca, a serra de vaivém, as limas minúsculas, tudo se foi. Já não existe ali na parede do quarto, ao lado da janela, aquele quadro retangular de que tanto gostava, representando uma antecâmara na qual se viam três senhores. Dois estavam em pé, de sobrecasaca, pálidos e gordos, encimados por cartolas que pareciam aparafusadas em seus crânios. O terceiro, também vestido de negro, estava sentado perto da porta, numa atitude de cavalheiro que espera por alguém e se ocupa em calçar luvas novas cujos dedos se moldam pelos seus.



A mulher sobe as escadas. Em breve, o velho apartamento se tornará uma habitação confortável, liv. duplo + qt., tudo refor., c/ vista, rua calma. Gaspard Winckler morreu, mas a longa vingança que urdiu com tanta paciência e tanta minúcia, vai levar ainda muito tempo para se cumprir.




(A Vida Modo de Usar, tradução de Ivo Barroso)



(Ilustração: Delaunay – City of Paris)





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