quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

IGNORO PORQUÊ, de Augusto Abelaira






Ignoro porquê (o Concerto para a mão esquerda?), interrompo o esforço de ir escurecendo ( em verdade azulando) este caderno. Quando recomeço, volvidos alguns minutos, ponho um sinal na página cento e quinze - lembrar-me-ei assim, ao chegar lá, da minha inquietação, a curiosidade há-de obrigar os meus dedos a voltarem aqui, os meus olhos poderão ler as seguintes palavras (então por completo esquecidas, agora ainda por escrever):Pouco depois de nos levantarmos e enquanto me barbeava, a Maria dos Remédios disse, através da porta:

- Costumas pensar muitas vezes na Catarina?

Demorei a resposta. Porque diabo lhe teria passado hoje aquela ideia pela cabeça - hoje e não há seis anos? Logo pela manhã, em vez de uma dessas frases iguais a muitas outras ( de paredes sólidas e sem janelas), teria eu deixado escapar algumas palavras transparentes, reveladoras de que a Catarina estava, continua a estar, no mais íntimo dos fundos, no mais íntimo de mim?

Com a máquina de barbear em punho, com o meu rosto bem na minha frente, lancei-me à procura do momento preciso em que acordei, dos minutos simultaneamente longos e apressados que precedem a decisão final de sair da cama, a conversa sobre o Aníbal Soares, a obrigação inadiável de o ir ver ao hospital, o...

Para além da porta fechada, os passos da Maria dos Remédios afastavam-se - aparentemente desinteressara-se de ouvir a resposta, pelo menos desinteressara-se de uma resposta precipitada, preferia conceder-me alguns momentos de reflexão.

Não muitos; os passos regressavam:

- Acháva-la bonita?

Ao mesmo tempo fico espantado comigo próprio: vivo contigo; Maria dos Remédios, há tantos anos, e nunca suspeitei desse teu vício ( a aritmética dos sentimentos).

- Ela era muito bonita - digo. Acabada a barba, abrira a porta e, em vez do meu, tinha agora em frente o rosto da Maria dos Remédios. Acrescento, receoso de uma ruga que lhe descia da testa, um pouco acima do nariz: - Não posso dar outra resposta, percebes?

- Sim, poderias dizer: a Catarina era feia.

- Saberias que eu teria mentido.

-E também que tinhas adivinhado o meu desejo de ouvir - adoçou levemente a voz, imitando a voz que me faltara: Tu és mais bonita...

-Desejavas, de facto? - Não. Perguntaste «Costumas pensar muitas vezes na Catarina?» E também: «Acháva-la muito bonita?» Vou responder-te agora de outra maneira: «Receia, sim, a concorrência das mulheres que não conheço - as que conhecerei daqui a quatro ou cinco meses. Daqui a quatro ou cinco meses terás envelhecido quatro ou cinco meses, essas mulheres não terão envelhecido um único segundo. Daqui a quatro ou cinco meses terão rigorosamente a idade que tiverem, a idade com que as conhecerei daqui a quatro ou cinco meses, eu que não as terei conhecido quatro ou cinco meses antes».


(Bolor)



(Ilustração: Andrzej Malinowski – tresse cuivre et or)



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