quinta-feira, 30 de outubro de 2025

QUE PAÍS É ESTE?, de Affonso Romano de Sant’Anna








para Raymundo Faoro



Puedo decir que nos han traicionado? No. Que

todos fueran buenos? Tampoco. Pero alli está

una buena voluntad, sin duda y sobretodo, el ser así.



CÉSAR VALLEJO



1



Uma coisa é um país,

outra um ajuntamento.



Uma coisa é um país,

outra um regimento.



Uma coisa é um país,

outra o confinamento.



Mas já soube datas, guerras, estátuas

usei caderno "Avante"

– e desfilei de tênis para o ditador.

Vinha de um "berço esplêndido" para um "futuro radioso"

e éramos maiores em tudo

– discursando rios e pretensão.



Uma coisa é um país,

outra um fingimento.



Uma coisa é um país,

outra um monumento.



Uma coisa é um país,

outra o aviltamento.



Deveria derribar aflitos mapas sobre a praça

em busca da especiosa raiz? ou deveria

parar de ler jornais

e ler anais

como anal

animal

hiena patética

na merda nacional?

Ou deveria, enfim, jejuar na Torre do Tombo

comendo o que as traças descomem

procurando

o Quinto Império, o primeiro portulano, a viciosa visão do paraíso

que nos impeliu a errar aqui?



Subo, de joelhos, as escadas dos arquivos

nacionais, como qualquer santo barroco

a rebuscar

no mofo dos papiros, no bolor

das pias batismais, no bodum das vestes reais

a ver o que se salvou com o tempo

e ao mesmo tempo

– nos trai.



2



Há 500 anos caçamos índios e operários,

há 500 anos queimamos árvores e hereges,

há 500 anos estupramos livros e mulheres,

há 500 anos sugamos negras e aluguéis.



Há 500 anos dizemos:

que o futuro a Deus pertence,

que Deus nasceu na Bahia,

que São Jorge é que é guerreiro,

que do amanhã ninguém sabe,

que conosco ninguém pode,

que quem não pode sacode.



Há 500 anos somos pretos de alma branca,

não somos nada violentos,

quem espera sempre alcança

e quem não chora não mama

ou quem tem padrinho vivo

não morre nunca pagão.



Há 500 anos propalamos:

este é o país do futuro,

antes tarde do que nunca,

mais vale quem Deus ajuda

e a Europa ainda se curva.



Há 500 anos

somos raposas verdes

colhendo uvas com os olhos,



semeamos promessa e vento

com tempestades na boca,



sonhamos a paz da Suécia

com suíças militares,



vendemos siris na estrada

e papagaios em Haia,



senzalamos casas-grandes

e sobradamos mocambos,



bebemos cachaça e brahma

joaquim silvério e derrama,



a polícia nos dispersa

e o futebol nos conclama,



cantamos salve-rainhas

e salve-se quem puder,



pois Jesus Cristo nos mata

num carnaval de mulatas.



Este é um país de síndicos em geral,

este é um país de cínicos em geral,

este é um país de civis e generais.



Este é o país do descontínuo

onde nada congemina,



e somos índios perdidos

na eletrônica oficina.



Nada nada congemina:

a mão leve do político

com nossa dura rotina,



o salário que nos come

e nossa sede canina,



a esperança que emparedam

e a nossa fé em ruína,



nada nada congemina:

a placidez desses santos

e nossa dor peregrina,



e nesse mundo às avessas

– a cor da noite é obsclara

e a claridez vespertina.





3



Sei que há outras pátrias. Mas

mato o touro nesta Espanha,

planto o lodo neste Nilo,

caço o almoço nesta Zâmbia,

me batizo neste Ganges,

vivo eterno em meu Nepal.



Esta é a rua em que brinquei,

a bola de meia que chutei,

a cabra-cega que encontrei,

o passa-anel que repassei,

a carniça que pulei.



Este é o país que pude

que me deram

e ao que me dei,

e é possível que por ele, imerecido,

– ainda me morrerei.



4



Minha geração se fez de terços e rosários:



– um terço se exilou

– um terço se fuzilou

– um terço desesperou



nessa missa enganosa

– houve sangue e desamor. Por isto,

canto-o-chão mais áspero e cato-me

ao nível da emoção.



Caí de quatro

animal



sem compaixão.



Uma coisa é um país,

outra uma cicatriz.



Uma coisa é um país,

outra a abatida cerviz.



Uma coisa é um país,

outra esses duros perfis.



Deveria eu catar os que sobraram,

os que se arrependeram,

os que sobreviveram em suas tocas

e num seminário de erradios ratos

suplicar:

– expliquem-me a mim

e ao meu país?



Vivo no século vinte, sigo para o vinte e um

ainda preso ao dezenove

como um tonto guarani

e aldeado vacum. Sei que daqui a pouco

não haverá mais país.

País:

loucura de quantos generais a cavalo

escalpelando índios nos murais,

queimando caravelas e livros

– nas fogueiras e cais,

homens gordos melosos sorrisos comensais

politicando subúrbios e arando votos

e benesses nos palanques oficiais.



Leio, releio os exegetas.

Quanto mais leio, descreio. Insisto?

Deve ser um mal do século.

– se não for um mal de vista.



Já pensei: – é erro meu. Não nasci no tempo certo.

Em vez de um poeta crente

sou um profeta ateu.

Em vez da epopeia nobre,

os de meu tempo me legam

como tema

– a farsa

e o amargo riso plebeu.



5



Mas sigo o meu trilho. Falo o que sinto

e sinto muito o que falo

– pois morro sempre que calo.

Minha geração se fez de lições mal aprendidas

– e classes despreparadas.

Olhávamos ávidos o calendário. Éramos jovens.

Tínhamos a "história" ao nosso lado. Muitos

maduravam um rubro outubro

outros iam ardendo um torpe agosto.

Mas nem sempre ao verde abril

se segue a flor de maio.

Às vezes se segue o fosso

– e o roer do magro osso.

E o que era a revolução outrora

agora passa à convulsão inglória.

E enquanto ardíamos a derrota como escória

e os vencedores nos palácios espocavam seus champanhas

sobre a aurora

o reprovado aluno aprendia

com quantos paus se faz a derrisória estória.

Convertidos em alvo e presa da real caçada

abriu-se embandeirado

um festival de caça aos pombos

– enquanto raiava sanguínea e fresca a madrugada.



Os mais afoitos e desesperados

em vez de regressarem como eu

sobre os covardes passos,

e em vez de abrirem suas tendas para a fome dos desertos,

seguiram no horizonte uma miragem

e logo da luta

passaram

ao luto.



Vi-os lubrificando suas armas

e os vi tombados pelas ruas e grutas.

Vi-os arrebatando louros e mulheres

e serem sepultados às ocultas.

Vi-os pisando o palco da tropical tragédia

e por mais que os advertisse do inevitável final

não pude lhes poupar o sangue e o ritual.



Hoje

os que sobraram vivem em escuras

e europeias alamedas, em subterrâneos

de saudade, aspirando a um chão-de-estrelas,

plangendo um violão com seu violado desejo

a colher flores em suecos cemitérios.

Talvez

todo o país seja apenas um ajuntamento

e o consequente aviltamento

– e uma insolvente cicatriz.



Mas este é o que me deram,

e este é o que eu lamento,

e é neste que espero

– livrar-me do meu tormento.



Meu problema, parece, é mesmo de princípio:

– do prazer e da realidade

– que eu pensava

com o tempo resolver

– mas só agrava com a idade.



Há quem se ajuste

engolindo seu fel com mel.

Eu escrevo o desajuste

vomitando no papel.



6



Mas este é um povo bom

me pedem que repita

como um monge cenobita

enquanto me dão porrada

e me vigiam a escrita.



Sim. Este é um povo bom. Mas isto também diziam

os faraós

enquanto amassavam o barro da carne escrava.

Isso digo toda noite

enquanto me assaltam a casa,

isso digo

aos montes em desalento

enquanto recolho meu sermão ao vento.



Povo. Como cicatrizar nas faces sua imagem perversa e una?

Desconfio muito do povo. O povo, com razão,

– desconfia muito de mim.



Estivemos juntos na praça, na trapaça e na desgraça,

mas ele não me entende

– nem eu posso convertê-lo.

A menos que suba estádios, antenas, montanhas

e com três mentiras eternas

o seduza para além da ordem moral.



Quando cruzamos pelas ruas

não vejo nenhum carinho ou especial predileção nos seus olhos.

Há antes incômoda suspeita. Agarro documentos, embrulhos, família

a prevenir mal-entendidos sangrentos.



Daí, já vejo as manchetes:

– o poeta que matou o povo

– o povo que só/çobrou ao poeta

– (ou o poeta apesar do povo?)



– Eles não vão te perdoar

– me adverte o exegeta.

Mas como um país não é a soma de rios, leis, nomes de ruas, questionários

[e geladeiras,

e a cidade do interior não é apenas gás neon, quermesse e fonte luminosa,

uma mulher também não é só capa de revista, bundas e peitos fingindo que

[é coisa nossa.



Povo

também são os falsários

e não apenas os operários,

povo

também são os sifilíticos

não só atletas e políticos,

povo

são as bichas, putas e artistas

e não só escoteiros

e heróis de falsas lutas,

são as costureiras e dondocas

e os carcereiros

e os que estão nos eitos e docas.

Assim como uma religião não se faz só de missas na matriz,

mas de mártires e esmolas, muito sangue e cicatriz,

a escravidão

para resgatar os ferros de seus ombros

requer

poetas negros que refaçam seus palmares e quilombos.



Um país não pode ser só a soma

de censuras redondas e quilômetros

quadrados de aventura, e o povo



não é nada novo

– é um ovo

que ora gera e degenera

que pode ser coisa viva

– ou ave torta

depende de quem o põe

– ou quem o gala.



7



Percebo

que não sou um poeta brasileiro. Sequer

um poeta mineiro. Não há fazendas, morros,

casas velhas, barroquismos nos meus versos.



Embora meu pai viesse de Ouro Preto com bandas de música polícia militar casos

[de assombração e uma alma milenar,

embora minha mãe fosse imigrando hortaliças protestantes tecendo filhos nas

[fábricas e amassando a fé e o pão,

olho Minas com um amor distante,

como se eu, e não minha mulher

– fosse um poeta etíope.



Fácil não era apenas ao tempo das arcádias

entre cupidos e sanfoninhas,

fácil também era ao tempo dos partidos:

– o poeta sabia "história"

vivia em sua "célula",

o povo era seu hobby e profissão,

o povo era seu cristo e salvação.



O povo, no entanto, não é o cão

e o patrão

– o lobo. Ambos são povo.

E o povo sendo ambíguo

é o seu próprio cão e lobo.



Uma coisa é o povo, outra a fome.

Se chamais povo à malta de famintos,

se chamais povo à marcha regular das armas,

se chamais povo aos urros e silvos no esporte popular



então mais amo uma manada de búfalos em Marajó

e diferença já não há

entre as formigas que devastam minha horta

e as hordas de gafanhoto de 1948

– que em carnaval de fome

o próprio povo celebrou.



Povo

não pode ser sempre o coletivo de fome.

Povo

não pode ser um séquito sem nome.

Povo

não pode ser o diminutivo de homem.



O povo, aliás,

deve estar cansado desse nome,

embora seu instinto o leve à agressão

e embora

o aumentativo de fome

possa ser

revolução.





(Que país é este? e outros poemas, 1980).



(Ilustração: Bandeira Brasileira (como deveria ser) - produção de IA)


segunda-feira, 27 de outubro de 2025

DESPEDIDA, de Fernanda Torres

 


Uma da manhã do dia 4 de setembro. O telefone tocou no escritório, eu tinha ido para a cama às dez e meia, com meus dois filhos, mandando às favas os manuais de psicologia moderna. Eu sabia o que era. A médica já havia me aconselhado a falar tudo o que eu desejava dizer para o meu pai, pois não haveria outra chance. Podia ser a qualquer momento: amanhã, hoje, ontem, talvez mês que vem. Na última semana, o estado de saúde dele se agravara. Eu me afastei por sete dias, a vida atropelando, a covardia de filha também. Quando voltei a vê-lo, levei um choque. Como é possível piorar quando já não se vai bem? Ele estava dopado, semiconsciente, e sofria com a falta de ar e as dores. Estava recostado na poltrona de sempre, respirava oxigênio, com o peito arfando como um fole. Falávamos alto para que ele ouvisse, mas a dor era o que mantinha a sua atenção acesa. Minha mãe, a conselho da médica, esperava os quinze minutos que faltavam para dar mais um quarto do terrível santo remédio que o afastaria da dor e de nós também. Sentei com minha mãe no sofá e ela chorou olhando para ele na poltrona de sempre, disse que não queria que ele sofresse mais, mas também não queria vê-lo partir. Desde então, eu esperava pelo telefonema. Atendi. Meu irmão avisava que minha mãe estava chamando. Sem ter com quem deixar meu bebê, levei-o comigo. Cheguei junto com a médica. Meu irmão falava alto, no quarto, enquanto segurava a testa dele. Descrevia os presentes. Minha cunhada segurava a mão do meu pai com força. Toquei no seu braço segurando meu filho, disse que havia chegado com o neto dele. Meu pai ofegava numa respiração curta. Deixamos o quarto para que ele, mesmo inconsciente, não nos ouvisse conversar sobre uma suposta transferência para o hospital. Meu irmão voltou para perto dele com minha cunhada e eu fiquei no escritório para dar de mamar ao meu filho, na companhia de minha mãe. Um minuto, nem isso, o enfermeiro cruzou o corredor com os olhos assustados, procurava a doutora. Voltamos correndo para junto dele, mas meu pai não estava mais lá. Quando meu irmão mencionou a remoção para o hospital, ele abriu os olhos, disse um não e respirou pela última vez. Ficamos ali em volta dele, nossos últimos momentos com o corpo do meu pai, nossos últimos momentos juntos: eu, meu irmão, minha mãe e ele. A estranheza de, apesar de tão perto, não ter estado ao seu lado no último suspiro e o alívio de tudo ter acontecido em casa, sem corredores de hospitais, sem CTI, tubos e bisturis. Humano, demasiado humano. E, no meio de tudo, meu filho rindo, de colo em colo, apontando para a frente. E o rosto do meu pai relaxado, como fazia tempo eu não via. E minhas lembranças de infância embaralhadas na cabeça: Veneza, Itaipu, a lição de escola na casa do Jardim Botânico, meu pai em todas as idades, todas iguais e equivalentes. E o corpo morto, cada vez mais morto, se é que isso é possível. Essa noite virou minha companheira. Por isso, talvez, eu esteja aqui escrevendo, para nunca mais me esquecer dos detalhes dela. Porque, como diz meu irmão, estranhamente, eu sinto saudade daquela hora.

5 de setembro de 2008


(Sete anos)



(Ilustração: Edvard Munch - inheritance,1899)

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

LÍNGUA, de Caetano Veloso



a Violeta Gervaiseau (*)


Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões

Gosto de ser e de estar

E quero me dedicar a criar confusões de prosódia

E uma profusão de paródias

Que encurtem dores

E furtem cores como camaleões

Gosto do Pessoa na pessoa

Da rosa no Rosa

E sei que a poesia está para a prosa

Assim como o amor está para a amizade

E quem há de negar que esta lhe é superior?

E quem há de negar que esta lhe é superior?

E deixa os Portugais morrerem à míngua

"Minha pátria é minha língua"

Fala Mangueira! Fala!



Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó

O que quer

O que pode esta língua?



Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas

E o falso inglês relax dos surfistas

Sejamos imperialistas! Cadê? Sejamos imperialistas

Vamos na velô da dicção choo-choo de Carmen Miranda

E que o Chico Buarque de Holanda nos resgate

E - xeque-mate! - explique-nos Luanda

Ouçamos com atenção os deles e os delas da TV Globo

Sejamos o lobo do lobo do homem

Lobo do lobo do lobo do homem



Adoro nomes

Nomes em ã

De coisas como rã e ímã

Ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã

Nomes de nomes

Como Scarlet Moon de Chevalier, Glauco Mattoso e Arrigo Barnabé

e Maria da Fé



Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó

O que quer

O que pode esta língua?



Se você tem uma ideia incrível é melhor fazer uma canção

Está provado que só é possível filosofar em alemão

Blitz quer dizer corisco

Hollywood que dizer Azevedo

E o Recôncavo, e o Recôncavo, e o Recôncavo meu medo

A língua é minha pátria

E eu não tenho pátria, tenho mátria

E quero fátria

Poesia concreta, prosa caótica

Ótica futura

Samba-rap, chic-left com banana



(- Será que ele está no Pão de Açúcar?

- Tá craude brô

- Você e tu

- Lhe amo

- Qué queu te faço, nêgo?

- Bote ligeiro!

- Ma’ de brinquinho, Ricardo!? Teu tio vai ficar desesperado!

- Ó, Tavinho, põe esta camisola pra dentro, assim mais pareces um espantalho!

- I like to spend some time in Mozambique

- Arigatô, arigatô!)



Nós canto-falamos como quem inveja negros

Que sofrem horrores no Gueto do Harlem

Livros, discos, vídeos à mancheia

E deixe que digam, que pensem, que falem





(*) Maria Violeta Arraes de Alencar Gervaiseau (Araripe, Ceará, 5/5/1926 - Rio de Janeiro, 17/6/2008)



(Ilustração: Yasmin Schlupmann - A loucura da língua, 2023)



terça-feira, 21 de outubro de 2025

TEMPO QUE FOGE!, de Ricardo Gondim

  



Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui para frente do que já vivi até agora. Sinto-me como aquele menino que ganhou uma bacia de jabuticabas. As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam poucas, rói o caroço.

Já não tenho tempo para lidar com mediocridades. Não quero estar em reuniões em que desfilam egos inflados. Não tolero gabolices. Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram, cobiçando seus lugares, talentos e sorte.

Já não tenho tempo para projetos megalomaníacos. Não participarei de conferências que estabelecem prazos fixos para reverter a miséria do mundo. Não vou mais a workshops onde se ensina como converter milhões usando uma fórmula de poucos pontos. Não quero que me convidem para eventos de um fim de semana com a proposta de abalar o milênio.

Já não tenho tempo para reuniões intermináveis para discutir estatutos, normas, procedimentos parlamentares e regimentos internos. Não gosto de assembleias ordinárias em que as organizações procuram se proteger e perpetuar através de infindáveis detalhes organizacionais.

Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas, que apesar da idade cronológica, são imaturos. Não quero ver os ponteiros do relógio avançando em reuniões de “confrontação”, onde “tiramos fatos à limpo”. Detesto fazer acareação de desafetos que brigaram pelo majestoso cargo de secretário do coral.

Já não tenho tempo para debater vírgulas, detalhes gramaticais sutis, ou sobre as diferentes traduções da Bíblia. Não quero ficar explicando por que gosto da Nova Versão Internacional das Escrituras, só porque há um grupo que a considera herética. Minha resposta será curta e delicada: – Gosto, e ponto final! Lembrei-me agora de Mário de Andrade que afirmou: “As pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos”. Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos.

Já não tenho tempo para ficar dando explicação aos medianos se estou ou não perdendo a fé, porque admiro a poesia do Chico Buarque e do Vinicius de Moraes; a voz da Maria Bethânia; os livros de Machado de Assis, Thomas Mann, Ernest Hemingway e José Lins do Rego.

Sem muitas jabuticabas na bacia, quero viver ao lado de gente humana, muito humana; que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com triunfos, não se considera eleita para a “última hora”; não foge de sua mortalidade, defende a dignidade dos marginalizados, e deseja andar humildemente com Deus. Caminhar perto dessas pessoas nunca será perda de tempo.

Soli Deo Gloria.



(Eu creio, mas tenho dúvidas: a graça de Deus e nossas frágeis certezas. Viçosa, MG: 2007).



(Ilustração: Edvard Munch - quatro estágios da vida -1902)

sábado, 18 de outubro de 2025

LA CANCIÓN DEL PIRATA / A CANÇÃO DO PIRATA, de José de Espronceda

  


Con diez cañones por banda,

viento en popa, a toda vela,

no corta el mar, sino vuela

un velero bergantín.



Bajel pirata que llaman,

por su bravura, El Temido,

en todo mar conocido

del uno al otro confín.



La luna en el mar riela

en la lona gime el viento,

y alza en blando movimiento

olas de plata y azul;



y va el capitán pirata,

cantando alegre en la popa,

Asia a un lado, al otro Europa,

y allá a su frente Istambul:



"Navega, velero mío

sin temor,

que ni enemigo navío

ni tormenta, ni bonanza

tu rumbo a torcer alcanza,

ni a sujetar tu valor.



Veinte presas

hemos hecho

a despecho

del inglés

y han rendido

sus pendones

cien naciones

a mis pies.



Que es mi barco mi tesoro,

que es mi dios la libertad,

mi ley, la fuerza y el viento,

mi única patria, la mar.



Allá; muevan feroz guerra

ciegos reyes

por un palmo más de tierra;

que yo aquí; tengo por mío

cuanto abarca el mar bravío,

a quien nadie impuso leyes.

Y no hay playa,

sea cualquiera,

ni bandera

de esplendor,

que no sienta

mi derecho

y dé pecho

mi valor.



Que es mi barco mi tesoro,

que es mi dios la libertad,

mi ley, la fuerza y el viento,

mi única patria, la mar.



A la voz de "¡barco viene!"

es de ver

cómo vira y se previene

a todo trapo a escapar;

que yo soy el rey del mar,

y mi furia es de temer.



En las presas

yo divido

lo cogido

por igual;

sólo quiero

por riqueza

la belleza

sin rival.



Que es mi barco mi tesoro,

que es mi dios la libertad,

mi ley, la fuerza y el viento,

mi única patria, la mar.



¡Sentenciado estoy a muerte!

Yo me río

no me abandone la suerte,

y al mismo que me condena,

colgaré de alguna antena,

quizá; en su propio navío

Y si caigo,

¿qué es la vida?

Por perdida

ya la di,

cuando el yugo

del esclavo,

como un bravo,

sacudí.



Que es mi barco mi tesoro,

que es mi dios la libertad,

mi ley, la fuerza y el viento,

mi única patria, la mar.



Son mi música mejor, aquilones,

el estrépito y temblor

de los cables sacudidos,

del negro mar los bramidos

y el rugir de mis cañones.



Y del trueno

al son violento,

y del viento

al rebramar,

yo me duermo

sosegado,

arrullado

por el mar.



Que es mi barco mi tesoro,

que es mi dios la libertad,

mi ley, la fuerza y el viento,

mi única patria, la mar.



Tradução de José da Silva Mendes Leal:



Com doze canhões por banda,

Vento em popa, a todo pano

Voa, não corre, no oceano

Um veleiro bergantim;

Baixel pirata, que chamam

Por seus feitos "O Temido",

Em todo o mar conhecido

De Marselha a Bombaim.



Treme a lua sobre as águas;

Nos rinzes suspira o vendo,

E ergue em brndo movimento

Orlas de prata e de azul.

Ei-lo, o capitão pirata,

Que vai cantando na popa,

Ásia a um bordo, a outro a Europa.

E pela proa Estambul.



"Voga, meu barco, navega

"Sem temor;

"Nem forte nau na refrega,

"Nem procela, ou calmaria

"Do teu rumo te desvia,

Ou sujeita o teu valor.



"Vinte presas

"Tenho feito

"Em despeito

"Té do inglês:

"E abateram

"Pendões vários

"Cem contrários

"A meus pés.



"O meu barco é meu tesouro,

"A liberdade o meu Deus,

"É-me o pego única pátria,

"Lei a força, o vento e os céus!



"Além movem feroz guerra

"Cegos reis

"Por mais um palmo de terra;

"Que eu aqui tenho por meu

"Quanto avisto em mar e céu,

"A quem nada vem dar leis.

"Nem bandeira

"Sobranceira

"Nem bandeira

"De esplendor,

"Que não ceda

"De repente,

"E me alente

"Meu valor.



"O meu barco é meu tesouro,

"A liberdade o meu Deus,

"E-me o pego única pátria,

"Lei a força, o vento, e os céus!



"A voz: — "D´avante uma vela!

"É de ver

"Como tudo se acautela

"Panos cheios a escapar;

"Que eu sou déspota do mar,

"Minha fúria é de temer.

"Nos despojos

"O escolhido

"Eu divido

"Por igual,

"E só guardo

"Dessa presa

"A beleza

"Sem rival.



"O meu barco é meu tesouro,

"A liberdade o meu Deus,

"É-me o pego única pátria,

"Lei a força, o vento e os céus.



"Condenado estou à morte!

"Disso rio.

"Se não me abandona a sorte

"O mesmo que me condena

"Penderá de alguma antena

"Talvez no próprio navio.

"Sucumbindo

"Que é a vida?

"Já perdida

"Não a vi,

"Quando o jugo

"Vil de escravo

"Como um bravo

"Sacudi?



"O meu barco é meu tesouro,

"A liberdade o meu Deus,

"É-me o pego única pátria,

"Lei a força, o vento e os céus!



"São a minha orquestra melhor

"Aquilões

Mas o horríssono tremor

"Desses cabos sacudidos;

"E das vagas os bramidos,

"E o rugir dos meus canhões.

"Quando o raio

"Cruza aos centos



"Eu, dos ventos

"Ao troar,

"Adormeço

"Sossegado,

"Embalado,

"Pelo mar!



"O meu barco é meu tesouro,

"A liberdade o meu Deus,

"É-me o pego única pátria,

"Lei a força, o vento e os céus!





(Obras primas da poesia universal, 1955)



(Ilustração: Howard Pyle - Capitain Scarfield)

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

VEADO POR QUÊ?, de Josué Machado

 

O veado, símbolo de virilidade em países do hemisfério norte, tornou-se no Brasil mais ou menos o contrário disso: como sabemos todos, veado por aqui, na linguagem de rua e das relações malcomportadas, significa homossexual masculino passivo, que o dicionário Caldas Aulete chama rudemente de pederasta passivo, também conhecido como uranista.

Urano, na mitologia grega, é o nome do deus que se tornou impotente, mutilado pelo filho rebelde Crono, um dos Titãs.

De onde teria surgido a ligação entre veado e homossexual? Seria da delicadeza e da timidez características do veloz quadrúpede ruminante? O belíssimo desenho-animado "Bambi", de Walt Disney, que acentua a delicadeza saltitante do bichinho, poderia sugerir isso. De fato, o veado jovem é um bichinho – não bichinha – gracioso.

Mas há muitos bichinhos graciosos e nem por isso os homossexuais são chamados de coelhos ou esquilos. O professor Tenório D'Albuquerque explica a acepção pouco ortodoxa em seu livro "Atentados à Gramática". Diz ele que o Dr. Hirsch, um médico apologista da dupla sexualidade, em Frankfurt, na Alemanha pré-Hitler, teria demonstrado que o "cruzamento" entre judeus e alemães produzia casos frequentes de "homens-mulheres" e "mulheres-homens". Hirsch considerava seres superiores os andróginos, como chamava essas pessoas e a si mesmo. Ocorre que Hirsch em alemão quer dizer "veado". Daí a extensão de veado a homossexual.

Explicação estranha e tortuosa como a vida de alguns políticos brasileiros. (Escolha o seu.) Tortuosa e baseada em autores discutíveis como Chandant, o preconceituoso narrador crítico das teorias de Hirsch. Além disso não confere com a imagem do veado de quatro patas acima do Equador: lá, macho dos bons e sempre caçado por seus inimigos naturais, pobrezinho. E cá, o de duas pernas, nem sempre tímido, muitas vezes caçador insistente, mas raras vezes agressivo.

Quanto a "bicha", outra forma desrespeitosa de tratar homossexuais, talvez seja tradução livre do francês "biche", corça, fêmea do cervo, nome com que antigamente se brindavam no Brasil os quase sempre simpáticos e sensíveis homossexuais. Quase sempre.

Eles chamam a si mesmo de "entendidos" ou "gays" e alguns rudes lenhadores os classificam como "anormais". Falar em anormalidade no caso não fica bem. Quem sabe preferência, escolha, ocorrência genética, determinismo genético?

Liberdade para as borboletas! [...]



(Ilustração: Felix D'eon - los amantes)

domingo, 12 de outubro de 2025

LENORE / LENORE, de Gottfried August Bürger


Lenore fuhr um’s Morgenrot

Empor aus schweren Träumen:

»Bist untreu, Wilhelm, oder tot?

Wie lange willst du säumen?« -

Er war mit König Friedrichs Macht

Gezogen in die Prager Schlacht,

Und hatte nicht geschrieben:

Ob er gesund geblieben.



Der König und die Kaiserin,

Des langen Haders müde,

Erweichten ihren harten Sinn,

Und machten endlich Friede;

Und jedes Heer, mit Sing und Sang,

Mit Paukenschlag und Kling und Klang,

Geschmückt mit grünen Reisern,

Zog heim zu seinen Häusern.



Und überall all überall,

Auf Wegen und auf Stegen,

Zog Alt und Jung dem Jubelschall

Der Kommenden entgegen.

Gottlob! rief Kind und Gattin laut,

Willkommen! manche frohe Braut.

Ach! aber für Lenoren

War Gruß und Kuß verloren.



Sie frug den Zug wohl auf und ab,

Und frug nach allen Namen;

Doch keiner war, der Kundschaft gab,

Von allen, so da kamen.

Als nun das Heer vorüber war,

Zerraufte sie ihr Rabenhaar,

Und warf sich hin zur Erde,

Mit wütiger Geberde.



Die Mutter lief wohl hin zu ihr: -

»Ach, daß sich Gott erbarme!

Du trautes Kind, was ist mit dir?« -

Und schloß sie in die Arme. -

»O Mutter, Mutter! hin ist hin!

Nun fahre Welt und alles hin!

Bei Gott ist kein Erbarmen.

O weh, o weh mir Armen!« -



»Hilf Gott, hilf! Sieh uns gnädig an!

Kind, bet’ ein Vaterunser!

Was Gott thut, das ist wohlgethan.

Gott, Gott erbarmt sich Unser!« -

»O Mutter, Mutter! Eitler Wahn!

Gott hat an mir nicht wohlgethan!

Was half, was half mein Beten?

Nun ist’s nicht mehr vonnöten.« -



»Hilf Gott, hilf! wer den Vater kennt,

Der weiß, er hilft den Kindern.

Das hochgelobte Sakrament

Wird deinen Jammer lindern.« -

»O Mutter, Mutter! was mich brennt,

Das lindert mir kein Sakrament!

Kein Sakrament mag Leben

Den Toten wiedergeben.« -



»Hör, Kind! wie, wenn der falsche Mann,

Im fernen Ungerlande,

Sich seines Glaubens abgethan,

Zum neuen Ehebande?

Laß fahren Kind, sein Herz dahin!

Er hat es nimmermehr Gewinn!

Wann Seel’ und Leib sich trennen,

Wird ihn sein Meineid brennen.« -



»O Mutter, Mutter! Hin ist hin!

Verloren ist verloren!

Der Tod, der Tod ist mein Gewinn!

O wär’ ich nie geboren!

Lisch aus, mein Licht, auf ewig aus!

Stirb hin, stirb hin in Nacht und Graus!

Bei Gott ist kein Erbarmen.

O weh, o weh mir Armen!« -



»Hilf Gott, hilf! Geh nicht ins Gericht

Mit deinem armen Kinde!

Sie weiß nicht, was die Zunge spricht.

Behalt ihr nicht die Sünde!

Ach, Kind, vergiß dein irdisch Leid,

Und denk an Gott und Seligkeit!

So wird doch deiner Seelen

Der Bräutigam nicht fehlen.« -



»O Mutter! Was ist Seligkeit?

O Mutter! Was ist Hölle?

Bei ihm, bei ihm ist Seligkeit,

Und ohne Wilhelm Hölle! -

Lisch aus, mein Licht, auf ewig aus!

Stirb hin, stirb hin in Nacht und Graus!

Ohn’ ihn mag ich auf Erden,

Mag dort nicht selig werden.« - - -



So wütete Verzweifelung

Ihr in Gehirn und Adern.

Sie fuhr mit Gottes Vorsehung

Vermessen fort zu hadern;

Zerschlug den Busen, und zerrang

Die Hand, bis Sonnenuntergang,

Bis auf am Himmelsbogen

Die goldnen Sterne zogen.



Und außen, horch! ging’s trap trap trap,

Als wie von Rosseshufen;

Und klirrend stieg ein Reiter ab,

An des Geländers Stufen;

Und horch! und horch! den Pfortenring

Ganz lose, leise, klinglingling!

Dann kamen durch die Pforte

Vernehmlich diese Worte:



»Holla, Holla! Thu auf mein Kind!

Schläfst, Liebchen, oder wachst du?

Wie bist noch gegen mich gesinnt?

Und weinest oder lachst du?« -

»Ach, Wilhelm, du? - So spät bei Nacht? -

Geweinet hab’ ich und gewacht;

Ach, großes Leid erlitten!

Wo kommst du hergeritten?« -



»Wir satteln nur um Mitternacht.

Weit ritt ich her von Böhmen.

Ich habe spät mich aufgemacht,

Und will dich mit mir nehmen.« -

»Ach, Wilhelm, erst herein geschwind!

Den Hagedorn durchsaust der Wind,

Herein, in meinen Armen,

Herzliebster, zu erwarmen!« -



»Laß sausen durch den Hagedorn,

Laß sausen, Kind, laß sausen!

Der Rappe scharrt; es klirrt der Sporn.

Ich darf allhier nicht hausen.

Komm, schürze, spring’ und schwinge dich

Auf meinen Rappen hinter mich!

Muß heut noch hundert Meilen

Mit dir in’s Brautbett’ eilen.« -



»Ach! wolltest hundert Meilen noch

Mich heut in’s Brautbett’ tragen?

Und horch! es brummt die Glocke noch,

Die elf schon angeschlagen.« -

»Sieh hin, sieh her! der Mond scheint hell.

Wir und die Toten reiten schnell.

Ich bringe dich, zur Wette,

Noch heut ins Hochzeitbette.« -



»Sag an, wo ist dein Kämmerlein?

Wo? Wie dein Hochzeitbettchen?« -

»Weit, weit von hier! - - Still, kühl und klein! - -

Sechs Bretter und zwei Brettchen!« -

»Hat’s Raum für mich?« - »für dich und mich!

Komm, schürze, spring’ und schwinge dich!

Die Hochzeitgäste hoffen;

Die Kammer steht uns offen.« -



Schön Liebchen schürzte, sprang und schwang

Sich auf das Roß behende;

Wohl um den trauten Reiter schlang

Sie ihre Liljenhände;

Und hurre hurre, hop hop hop!

Ging’s fort in sausendem Galopp,

Daß Roß und Reiter schnoben,

Und Kies und Funken stoben.



Zur rechten und zur linken Hand,

Vorbei vor ihren Blicken,

Wie flogen Anger, Heid’ und Land!

Wie donnerten die Brücken! -

»Graut Liebchen auch? - - Der Mond scheint hell!

Hurra! die Toten reiten schnell!

Graut Liebchen auch vor Toten?« -

»Ach nein! - - Doch laß die Toten!« -



Was klang dort für Gesang und Klang?

Was flatterten die Raben? - -

Horch Glockenklang! horch Totensang:

»Laßt uns den Leib begraben!«

Und näher zog ein Leichenzug,

Der Sarg und Totenbahre trug.

Das Lied war zu vergleichen

Dem Unkenruf in Teichen.



»Nach Mitternacht begrabt den Leib,

Mit Klang und Sang und Klage!

Jetzt führ’ ich heim mein junges Weib.

Mit, mit zum Brautgelage!

Komm, Küster, hier! Komm mit dem Chor,

Und gurgle mir das Brautlied vor!

Komm, Pfaff’, und sprich den Segen,

Eh wir zu Bett’ uns legen!« -



Still Klang und Sang. - - Die Bahre schwand. - -

Gehorsam seinem Rufen,

Kam’s, hurre hurre! nachgerannt,

Hart hinter’s Rappen Hufen.

Und immer weiter, hop hop hop!

Ging’s fort in sausendem Galopp,

Daß Roß und Reiter schnoben,

Und Kies und Funken stoben.



Wie flogen rechts, wie flogen links,

Gebirge, Bäum’ und Hecken!

Wie flogen links, und rechts, und links

Die Dörfer, Städt’ und Flecken! -

»Graut Liebchen auch? - - Der Mond scheint hell!

Hurra! die Toten reiten schnell!



Graut Liebchen auch vor Toten?« -

»O weh! Laß ruhn die Toten!« - - -



»Rapp’! Rapp’! Mich dünkt der Hahn schon ruft. - -

Bald wird der Sand verrinnen - -

Rapp’! Rapp’! Ich wittre Morgenluft - -

Rapp’! Tummle dich von hinnen! -

Vollbracht, vollbracht ist unser Lauf!

Das Hochzeitbette thut sich auf!

Die Toten reiten schnelle!

Wir sind, wir sind zur Stelle.« - - -



Rasch auf ein eisern Gitterthor

Ging’s mit verhängtem Zügel.

Mit schwanker Gert’ ein Schlag davor

Zersprengte Schloß und Riegel.

Die Flügel flogen klirrend auf,

Und über Gräber ging der Lauf.

Es blinkten Leichensteine

Rund um im Mondenscheine.



Ha sieh! Ha sieh! im Augenblick,

Huhu! ein gräßlich Wunder!

Des Reiters Koller, Stück für Stück,

Fiel ab, wie mürber Zunder.

Zum Schädel, ohne Zopf und Schopf,

Zum nackten Schädel ward sein Kopf;

Sein Körper zum Gerippe,

Mit Stundenglas und Hippe.



Hoch bäumte sich, wild schnob der Rapp’,

Und sprühte Feuerfunken;

Und hui! war’s unter ihr hinab

Verschwunden und versunken.

Geheul! Geheul aus hoher Luft,

Gewinsel kam aus tiefer Gruft.

Lenorens Herz, mit Beben,

Rang zwischen Tod und Leben.



Nun tanzten wohl bei Mondenglanz,

Rund um herum im Kreise,

Die Geister einen Kettentanz,

Und heulten diese Weise:

»Geduld! Geduld! Wenn’s Herz auch bricht!

Mit Gott im Himmel hadre nicht!

Des Leibes bist du ledig;

Gott sei der Seele gnädig!«



Tradução de Maria Aparecida Barbosa:



Lenore desperta à alvorada

Por tristes sonhos agitada:

“És infiel, Guilherme, ou estás morto?

Tardas ainda a voltar?”

No exército do Grande Frederico

Partira à batalha de Praga

E nunca mais notícia enviou



Se são sobreviveu.

Da infindável contenda

Fartos, o rei e a imperatriz

Os ânimos ferozes abrandam

E a paz finalmente selam;

Heróis em alarido e alvoroço

Ao som de fanfarra, repique e rojão,

Regressam aos próprios lares,



Ornados com ramos verdes.

Por toda a parte, ruidosos,

Apinhavam-se moços e velhos

Ao encontro dos recém-chegados

Em praças, caminhos e trilhas.

“Graças a Deus!”, gritava filho e esposa,

“Bem-vindo!”, saudava a noiva rindo.

Mas coube à pobre Lenore

Em vez de beijo, só dor.



As fileiras percorria, ligeiro,

Indagava do noivo guerreiro,

Mas ninguém que vinha

Sequer notícia tinha.

E tão logo saía a tropa,

Ela à poeira se joga

E arranca tufos do negro cabelo,

Delirante e desconsolado apelo.



A mãe aflita acode:

“Oh, Deus, misericórdia!

Que tem minha pobre criança?”

E ternamente a abraça.

“Mamãe, mamãe! Eu o perdi, está morto!

De mim Deus não tem compaixão

Deus é vã promessa, não consolo!

Ai que dor, ai que dor, meu desvelo!”



“Senhor, valha-me Senhor!

Tende piedade de nós!

Filha, ore o padre nosso,

Deus sabe bem o que faz.”

“Mamãe, mamãe! Que delírio!

Solidão, sim, é o divino desígnio!

De que me serve, pois, reza

Se Deus não concede fortaleza?”



“Valha-me, Senhor, valha-me!

Quem crê, confia qu’auxilia.

O supremo sacramento

Há de lenir teu sofrimento!”

“Mamãe, mamãe! Mia ferida

Não há sacramento que atenue!

Pois nenhum sacramento restitui

Aos mortos novamente a vida.”



“E se o traidor, minha filha,

Na fria e remota Hungria

Ante os sagrados votos, omisso,

Assumiu novo compromisso?

Esqueça, criança, te acalma,

O noivo não te merece mais.

Tão logo se apartem corpo e alma

Sua consciência não terá paz.”



“Mamãe, mamãe! Morte é fim!

Perdida p’ra sempre, ai de mim!

Minha única esperança é a morte!

Quisera ter tido outra sorte!

Esmaeça, chama vital!

Que eu pereça em morte obscura!

Deus é vã promessa, não consolo!

Ai que dor, ai que dor, meu desvelo!”



“Valha-me, Senhor, valha-me! Por ora

Não julgue Sua pobre criatura!

Das palavras não tem consciência,

Não lhe guarde os pecados que inflige.

Ah! Esqueça a dor terrena, criança,

Pense em Deus, na dádiva infinita!

Talvez te seja dada na altura

A graça do noivo celeste.”



“Oh mãe! O que é ventura?

Oh mãe! O que é inferno?

A vida com ele é ventura!

Sem Guilherme, ao contrário, é inferno!

Esmaeça, chama vital!

Que eu pereça em noite obscura!

Na terra, no céu tampouco,

Sem ele eu não vivo em paz.”



Ela assim contra Deus investiu,

Por veia e artéria a ira pulsou,

Desafiando nisso a Providência

Com insana e furiosa insolência;

Martirizou-se, lanhou-se

O corpo, os braços até cair a noite,

Até surgirem estrelas douradas

Lá longe, no firmamento.



Um ruído ecoa, poc, poc, poc,

Cascos de cavalo em marcha.

Retine a armadura, quando alguém apeia

E sobe acima os degraus;

Ouça, ouça! Soca a aldraba,

Suave seca, à socapa!

Pela porta, nítidas

Adentram as seguintes palavras:



“Olá, olá, meu bem! adivinha quem vem...

Velas no leito ou estás a dormir?

Que sentes por mim agora?

Choras saudosa ou sorris prazerosa?”

“Ah, Guilherme, és tu? No meio da noite!

Eu chorava e ansiava

Sofri com tua ausência

Donde vens das trevas cavalgando?”



“Nós não selamos, senão à meia-noite.

Dos confins da Boêmia a galope,

Bem tarde pus-me a caminho

E quero levá-la comigo!”

“Ah Guilherme, entra um instante!

Sinto o vento na floresta silvando,

Me abrace apaixonado não conteste,

Amado, eu quero aquecer-te!”



“Que silve na floresta o vento!

Que silve, criança, o relento!

O cavalo impacienta, a espora afoita,

Não é dado que eu cá pernoite.

Venha, te avie, te alce e te lance

À garupa do meu cavalo

Cruzarei inda hoje cem milhas

Contigo ao leito de núpcias.”



“Ah, queres cem milhas cruzar

Inda hoje ao leito me levar?

Ouça! Da meia-noite perdura o som,

Sinos ao longe percutem.”

“Olhe lá, olhe só! A lua resplandece.

Nós os mortos cavalgamos velozes.

Que hoje te levarei com gosto

Até nosso leito nupcial.”



“Diga, onde é tua morada?

Onde? Como é a cama do casal?”

“Longe, longe daqui! Silente, rente, fininha!

Seis tábuas, duas tabuinhas!

“Tem lugar para mim?”, “Pra’ ti e pra’ mim!

Venha, te avie, te alce e te lance!

A porta está aberta,

Os convivas esperam.”



A jovem aviou-se, alçou-se e lançou-se

À garupa do encantado corcel

Com as cândidas mãozinhas cingiu

Se agarrou ao amado cavaleiro.

Eia, eia, eia, poc, poc, poc!

Desabalava zunindo em galope,

Que garanhão e ginete bufavam,

Cascalho e faísca espalhavam.



Como à esquerda, à direita

De passagem a seus olhares

Voavam poços, pastos, plantas,

Retumbavam pontes!

“Tens medo, querida? A lua resplandece!

Hurra! Mortos cavalgam veloz!

Tens medo, querida, dos mortos?”

“Ah não! Os mortos, deixemos em paz!”



Que canto ou réquiem plange além?

Que bandos de corvos revoam?

Ouça o som dos sinos! Ouça o canto fúnebre:

“É hora de enterrar o corpo!”

Um cortejo se arrasta moroso,

Mortalha e ataúde carrega.

O réquiem se assemelha

A presságios soturnos, sombrios.



“Passada a meia-noite, o defunto enterre

Com canto, cantata e coro.

À morada levo mia jovem esposa

Junto comigo à cama dos noivos!

Vem, sacristão! Por aqui com o coro!

Nos entoe um hino de celebração,

Antes de nos deitarmos, avance o coro,

Cante um réquiem de consagração.”



Queixas, cantos se calam. Some o caixão.

Acatando resignado ao convite

Vem, hurra, hurra! Em corrida veloz

Apertando-se às espáduas do cavalo,

E sempre avante, poc, poc, poc!

Desabalava zunindo em galope

Que garanhão e ginete bufavam,

Cascalho e faísca espalhavam.



Como voavam à esquerda, voavam à direita

Montanhas, árvores, matas!

Como voavam à esquerda,

À esquerda e à direita

Vilas, burgos, cidades.

“Tens medo, querida? A lua resplandece!

Tens medo, amor, dos mortos também?”

“Ah, deixemos os mortos em paz!”



Olhe lá! Olhe lá! No patíbulo

Dançam, rodeiam a engrenagem

Círculo de espíritos funestos,

Visível à luz do luar. “Sassa!

Fantasmas, venham cá!

Fantasmas, me sigam!

Dancem danças de rodas,

Que é noite de nossas bodas.”



E o bando agourento vupt, vupt, vupt!

Vem atrás estrepitante,

Qual redemoinho através de aveleiras

Pelas folhagens secas, crepitante.

Eia, eia, poc, poc, poc!

Desabalava zunindo em galope

Que garanhão e ginete bufavam,

Cascalho e faísca espalhavam.



Como voa o que a lua alumia!

Como voa tudo à distância!

Como voam as estrelas céleres

Sobre suas cabeças lá no céu!

“Tens medo, amor, também? A lua resplandece!

Hurra! Mortos cavalgam veloz!

Tens medo, amor, dos mortos também?

Que nada, deixe os mortos em paz!”



Eia, eia, cavalo! É hora de o galo cantar

Breve toda a areia terá transcorrido.

Eia, eia, cavalo! Sinto o orvalho matinal.

Eia! Siga adiante!

Cumprimos, cumprimos o percurso!

Vislumbro ao longe nosso pouso!

Mortos cavalgam velozes!

Cá estamos, cá estamos nós!”



Em carreira se batem ao portal

À brida, grades férreas arrombam.

Cortando os ares, oscila a vergasta,

Que o empecilho lesto afasta:

Ferrolhos rangentes, batentes se abrem

No afã da abalada sobre túmulos seguem

Que aos poucos se distinguem

Em torno ao matinal clarão.



Olhe só, olhe lá! Que visão,

Uu, uu! Assombroso prodígio:

A armadura do brioso

Qual isca podre se rompe.

A cabeça tornada em caveira,

Descarnada sem miolo, sem pelo,

E o corpo todo esqueleto

Munido de foice e ampulheta.



Empina bufando o negro corcel

Faíscas de fogo lança o tropel.

Ai! Retorce e contorce para baixo

Afunda na terra profunda.

Horror! Horror se espalha aos ares

Gemidos se elevam das tumbas.

E o coração de Lenore

Palpita entre a vida e a morte.



Espíritos em círculo voluteiam,

Ladainha e arenga lamentam

Em grêmio ao brilho do luar

Uma macabra dança a urdir:

“Paciência! Paciência! Contra Deus não blasfeme jamais!

Nem com o coração em agonia!

Pois aí tens escoltado o corpo à terra fria,

À alma que Deus conceda paz!”



Tradução de Alexandre Herculano [*]:



Ralada de ruins sonhos

Já desperta está Leonor,

E 'inda agora os céus d'oriente

Da manhan tingiu o alvor.



«Guilherme, és morto? ― ella exclama ―

Ou trahiste a pobre amante?

Se vives, porque retardas

De te eu ver feliz instante?»



Nas tropas de Friderico

Tempo havia que partira

Para a batalha de Praga,

E cartas delle quem vira?



Mas a imperatriz e o rei

De guerras, emfim, cansados,

Depondo os animos feros,

De paz faziam tractados.



Já aos seus lares tornavam

Ambas as hostes folgando.

Cingem frentes ramos verdes;

Vem atabales rufando.

E por montes e por valles

Velhos e moços chegavam,

Dando brados de alegria,

A encontrar os que voltavam.



―«Boa vinda! Adeus! ― diziam

As filhas, noivas, e esposas.

E Leonor? Nenhum dos vindos

Lhe faz caricias saudosas.



Por Guilherme ella pergunta;

Por qual estrada viria.

Vão trabalho; vans perguntas:

Novas delle quem sabia?



Não o vê. Passaram todos...

Em furioso devaneio,

Ei-la arranca as negras tranças;

Fere crú o lindo seio.



Sua mãe, correndo a ella:

― «Valha-me Deus! ― lhe bradou. ―

Minha filha, pois que é isso?!» ―

E entre os braços a apertou.



― «Minha mãe, perdeu-se tudo!

O mundo, tudo perdi:

De nada Deus se condoe...

Oh dor, oh pobre de mi!» ―



― «Ai! Jesus venha á minha alma!

Filha, um padre-nosso resa.

Deus é pae: sempre nos ouve:

Nunca a humana dor despreza.» ―



― «Minha mãe, inutil crença!

Que bens me tem feito Deus?

Padre-nossos!.. padre-nossos!..

Que importam resas aos ceus?» ―



― «Ai! Jesus venha á minha alma!

Pois não é quem resa ouvido?

Busca da igreja o consolo

Verás teu pesar vencido.» ―



― «Mãe, oh mãe, esta amargura

Nenhum sacramento adoça:

Não sei nenhum sacramento,

Que aos mortos dar vida possa.» ―



― «Filha, quem sabe se, ingrato,

Elle ás promessas faltou;

E lá na remota Hungria

Novo amor o captivou?



Se, mudavel, te abandona,

Do crime o premio terá:

Do ultimo trance na angustia

O remorso o punirá.» ―



― «Morreu-me, oh mãe, a esperança.

Perdido... tudo é perdido!

Morrer, tambem, só me resta.

Nunca eu houvera nascido!



Foge, oh sol resplandecente!

Manda a noite e os seus terrores...

Deus, oh Deus, que nunca escutas

O gemer de humanas dores.» ―



― «Meu Senhor! A desditosa

Não pensa o que a lingua exprime.

Não julgues a filha tua:

Nem te lembres do seu crime.



Vans paixões esquece, oh filha:

Cogita no goso eterno,

No sangue que te remiu,

E nos tormentos do inferno.» ―



― «O que é goso eterno, oh mãe,

E o inferno em que consiste?

Com Guilherme ha goso eterno,

Sem Guilherme o inferno existe.



Sem elle, que a luz fugindo,

Se troque em nocturno horror;

Sem elle, no céu, na terra

Só conheço acerba dor!» ―

Assim no sangue e na mente

Furia insana lhe fervia:

Cruel chamando ao Senhor,

Mil blasphemias repetia.



Desde o sol brilhar no oriente

Até que o céu se estrellava,

As mãos, louca, retorcia,

O brando seio pisava.



Porém ouçamos!... A terra

Pisa um cavallo lá fóra!...

E pelos degraus da escada

Tinem sons d'espada e espóra...

Ouçamos! Batem na argola

Pancadas que mal feriram...

E através das portas, claro,

Estas palavras se ouviram:



― «Oh lá, querida, abre a porta.

Dormes? Estás acordada?

Folgas em riso? Pranteias?

De mim és 'inda lembrada?» ―



― «Guilherme, tu?! Na alta noite?

Tenho velado e gemido.

Quanto padeci!... Mas, d'onde

Até 'qui tens tu corrido?!» ―



― «Nós montamos á meia-noite

Só. Vim tarde, mas ligeiro,

Desde a Bohemia, e comigo

Levar-te-hei, por derradeiro.» ―



― «Oh meu querido Guilherme,

Vem depressa: aqui te abriga

Entre meus braços; que o vento

Do bosque as crinas fustiga.» ―



― «Rugir o deixa nos matos.

Sibilla? Sibille embora!

Não paro... que o meu ginete

Escarva o chão... tine a espóra...



Nosso leito nupcial

Dista cem milhas d'aqui.

Sobraça as roupas... vem... salta

No murzelo, atrás de mi.» ―



«Além cem milhas, me queres

Hoje ao thalamo guiar?

Ouve... o relogio ainda soa:

Doze vezes fere o ar.» ―



― «Olha em roda! A lua é clara:

Nós e os mortos bem corremos.

Aposto eu que n'um instante

Ao leito nupcial iremos?» ―



― «Mas dize-me, onde é que habitas?

Como é o leito do noivado?» ―

«Longe, quedo, fresco, breve:

De oito taboas é formado.» ―



― «Para dous? ― «Para nós ambos.

Sobraça as roupas: vem cá.

Os convidados esperam:

O quarto patente está.» ―



Sobraçada a roupa, a bella

Para o ginete saltou,

E ao seu leal cavalleiro

Co' as alvas mãos se enlaçou.



Ei-los vão! Soa a corrida.

Ei-los vão, á fula-fula!

Ginete e guerreiro arquejam:

A faisca, a pedra pula.



Ui, como, á direita, á esquerda,

Ante seus olhos se escoam

Prado e selva, e do galope

Sob a ponte os sons ecchoam!



― «Tremes, cara? A lua é pura.

Depressa o morto andar usa.

Tens medo de mortos?» « ― «Não».

Mas delles falar se escusa.» ―

― «Que sons e cantos são estes?

O corvo alli remoinha!

Sons de sino? Hymnos de morte?

É morto que se avizinha!» ―



Era de feito um saimento,

Que andas e esquife levava:

Aos silvos de cobra em pégo

Seu canto se assemelhava.



―«Um enterro á meia-noite,

Com psalmos e com lamento,

E eu a minha noiva levo

Ao sarau do casamento?



Vinde, sacristão e o coro,

O ephitalamio entoai-nos;

Vinde, abbade, e antes que entremos

No leito, a bençam lançae-nos.» ―



Cala o som e o canto: a tumba

Some-se: finda o clamor

A seu mando; e o tropel voa

Na pista do corredor.



Sempre mais alto a corrida

Soa. Vão á fula-fula.

Ginete e guerreiro arquejam:

A faisca, a pedra pula.



Como á dextra e esquerda fogem

Montes, bosques, matagaes!

Como á dextra e esquerda fogem

Cidades, villas, casaes!



― «Tremes, cara? A lua é pura.

Depressa o morto usa andar.

Temes os mortos, querida?» ―

― «Ai, deixa-os lá repousar!» ―



― «Olha! Ao redor de uma forca

Dançar em tropel não vês

Aereos corpos, que alvejam

Da luz da lua através?



Oh lé, birbantes, aqui!

Birbantes, acompanhai-me!

Vinde. A dança do noivado

Juncto do leito dançae-me.» ―



E os vultos vem após logo,

Ruído immenso fazendo,

Como o furacão nas folhas

Seccas do vergel rangendo.



E resoando a corrida

Ei-los vão, á fula-fula.

Ginete e guerreiro arquejam:

A faisca, a pedra pula.



Para trás fugir parece

Quanto o luar allumia;

Para trás suas estrellas

Sumir o céu parecia.



―«Tremes, cara? A lua é pura.

Depressa o morto andar usa.

Temes os mortos, querida? ―

― «Ai, delles falar se escusa!» ―



― «Murzelo, o gallo ouvír creio!

Breve a areia ha-de correr...

Murzelo, avia-te, voa;

Que sinto o ar do amanhecer!



Nossa jornada está finda:

Ao leito nupcial chegámos:

Ligeiro os mortos caminham:

A méta final tocámos.» ―



D'uma porta ás grades ferreas

Á rédea solta chegaram,

E de fragil vara ao toque

Ferrolho e chave saltaram.



Fugiram piando as aves:

A corrida, emfim, parára

Sobre campas. Os moimentos

Alvejam; que a noite é clara.



Peça após peça, ao guerreiro

Cáe a armadura lustrosa

Em negro pó impalpavel,

Qual de isca fuliginosa.



Sua cabeça era um craneo

Branco-pallido, escarnado:

Nas mãos tem fouce e ampulheta,

Triste adorno de finado.



Alça-se e arqueja o ginete:

Igneas faiscas lançou,

E debaixo de seus pés

Abriu-se a terra, e o tragou.



Dos covaes surgem phantasmas:

Feio urrar os ares corta:

Bate incerto o coração

Da donzella semimorta.



Ao redor danças de espectros

Em remoinho passavam:

Canto de medonhas vozes

Era o canto que cantavam:



― «Aflliges-te? Oh, tem paciencia!

Não fosses com Deus audaz.

Teu corpo pertence á terra:

Á tua alma o céu dê paz.» ―



[*] Manteve-se a grafia original.



(Ilustração: Diana Beauclerk - Lenore riding with Death - illustration for the poem Lenore by Gottfried Augustus)