quinta-feira, 21 de agosto de 2025
NO VELÓRIO DA MULHER DO DOMINGÃO, de Dalcídio Jurandir
Por que sente na morte da mulher do Domingão que alguma coisa de si também vai com ela? Talvez a cena que Irene representa. Um bocado do ridículo que havia nele. Experimenta confusamente uma espécie de alívio naquela morte. A mulher do Domingão talvez não possa mais servir de motivo para Irene ridicularizá-lo. Sim, era uma esperança. Mas Irene tem imaginação para inventar outros motivos. A mulher do Domingão era uma imagem odiosa e grotesca que em certas noites parecia enorme não de gordura mas dos risos de Irene, das maldades de Irene. Ia para o velório com um alívio e esse alívio porém lhe abria mais uma ferida, lhe dava ainda mais a impressão de que não valia mais nada como homem, era um fantoche... Se o mundo soubesse ver, recuaria espantado diante do que tinha de podre e de frustrado na sua vida. Domingão perdia a companheira gorda e esfomeada como ele. Tinham prazer em ficar juntos na varanda e conversar sobre a fortuna perdida. Choravam juntos. Soluçavam abraçados. Mas porque discordassem de certos detalhes no modo como reconstruíam o seu passado, brigavam, afastavam-se como dois inimigos. Viviam dentro do seu chalé escuro e fechado como dois prisioneiros.
Uma vez, Eutanázio foi encontrá-los — era o único ser que podia entrar no chalé sem bater palmas —, encontrá-los com a mesa arrumada, alguns pratos antigos e caros, uma terrina branca e alta, dois copos cheios d’água. A terrina vazia, os pratos vazios e pelo corredor se podia ver o fogão apagado. Eutanázio não sabia compreender. Também não sabia perguntar. Eles dois que esperavam o imaginário almoço deitaram sobre Eutanázio um olhar tranquilo e feliz que perturbou o visitante. Estariam loucos? Perguntou ele a si mesmo. Ou eu? Eles nada disseram, ficaram naquela atitude tranquila e beata esperando o almoço. A mesa estava posta. Tinham retirado do velho e roído guarda-louça os últimos pratos, o resto de louça da passada fortuna. E esperavam. Domingão não soltou aquela patética exclamação sobre a fome nem a sua maldição sobre os advogados. Domingão, depois de um longo silêncio, fez sinal para Eutanázio puxar uma cadeira. Mas Eutanázio se viu também contagiado daquela súbita loucura, daquele silêncio, daquela fome. Os dois gordos deviam pesar sobre as velhas cadeiras aflitas não só com o peso da sua gordura mas do seu passado morto, da espécie de certeza de que faziam aquilo porque foram tomados de fraqueza, não sabiam mesmo se era cabeça variada, Eutanázio que decifrasse ou acabasse com aquela cena.
Agora ia ao quarto da mulher do Domingão. Uma vitória do povo da rua das Palhas que não sabia ao certo o que se passava naquele chalé. Agora o pessoal entra sem cerimônia, invade a sala, o quarto, a varanda, com uma vingativa satisfação. Aquela piedade é, para Domingão, mais do que uma ofensa, uma vingança. Eutanázio, quando viu o velho sentado num mocho, perto da cozinha, com aquela sua camisa esfrangalhada e os óculos descidos no nariz, compreendeu o seu ar definitivo de derrota, a sua impotente vontade de expulsar toda aquela gente de sua casa e ficar com a morta, conversando sobre a passada fortuna.
— Seu Eutanázio, invadiram tudo, — disse abafadamente — vão furtar os meus últimos cacarecos. Cadê dinheiro para o caixão?
Agora, se fosse conversar com aquele vasto cadáver na sala, sobre o passado, não se afastariam mais como inimigos por via de detalhes. Ela confirmaria tudo que ele dissesse. Eutanázio, ou por timidez, ou por indiferença, não descobriu o imenso rosto da mulher coberto por um pano. Viu foi o pessoal conversando, rindo, iniciando brincadeiras, fumando. Havia pouca luz. Como se a morte da D. Emiliana fosse apenas um pretexto para aquela gente pobre se divertir, se esquecer. O cadáver parecia ausente. A morte não era grande coisa para eles. Na cozinha, D. Mercedes fazia café. Outras que, sem serem chamadas, entraram pelo quarto e tudo arrumaram para vestir o corpo, cochichavam na varanda, umas de cócoras, outras em pé, cuspindo, conversando tranquilamente. A desgraça do Domingão fazia aquela gente feliz. Uns felizes porque puderam servir ao próximo, vestir um defunto. Duas latas d’água estavam junto ao fogão. Alguém chegou com o embrulho do café. Houve risadas na sala. No sereno, rapazes brincavam de lutar, tomar cigarros, dizer apelido um ao outro.
Domingão, meio derreado à parede, parecia cadáver também. Até que veio o café. Houve um movimento na sala. As velas se derretiam na cabeceira do cadáver. Não havia crucifixo. Domingão não tinha. Quiseram correr para buscar emprestado o crucifixo grande e bonito de Felícia. Mas no tempo que trouxeram o café, Aurélia chegou com um crucifixozinho e pôs na cabeceira de D. Emiliana.
Depois de provar o café, Eutanázio mirou bem o fundo da xícara, olhou, e com o dedo minguinho mexeu o café. Bebeu mais um gole e qualquer coisa lhe ficou no beiço. E olhou para as pessoas que já tinham tomado ou ainda bebiam o café que D. Mercedes sabia fazer.
— D. Mercedes, o pessoal da sala já tomou?
— Já, foi até o primeiro que tomou.
— Pois, D. Mercedes, houve um pequeno engano na água desse café. — E Eutanázio, indicando as duas latas d’água perto do fogão, perguntou, sorrindo, pacificamente:
— De que é a água daquelas latas?
— Uma foi Valdemar que encheu para o café e a outra foi ainda a água em que se lavou o corpo; mas por quê, seu Eutanázio?
Eutanázio, devagar, levantou-se e foi acompanhado por D. Mercedes verificar as duas latas.
— A senhora está vendo? A do café cheia e a do corpo...
— Meu Deus, será possível?...
— Está aqui na minha xícara esta coisa de cadáver, isso, olhe...
E Eutanázio sorria. D. Mercedes, na tentativa dum gesto quis ocultar, pedir para seu Eutanázio... Mas. alguém escutara e logo se espalhou violentamente em todo o chalé, no sereno, acordou os vizinhos, encheu Cachoeira, que o pessoal do quarto tinha tomado café feito com a água que lavara a defunta!
Eutanázio saiu sorrindo. Todo aquele povo parecia fazer sobre ele uma obscura acusação. D. Mercedes mesmo não devia perdoá-lo nunca.
Eutanázio estava com gosto de cadáver na boca, no seu tédio, na sua náusea. De qualquer forma a mulher do Domingão ia ficar na sua vida, ia ser motivo para Irene inventar novas comédias na varanda. Ficava nele, naquela água com que as velhas lavaram a defunta.
(Chove nos campos de Cachoeira)
(Ilustração: Francisco Oller y Cestero - The Wake, 1893)
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