sexta-feira, 15 de agosto de 2025

ERNESTINA, de John Fowles

 


"O me, what profits it to put

An idle case? If Death were seen

At first as Death, Love had not been,

Or been in narrowest working shut,



Mere fellowship of sluggish moods,

Or in bis coarsest Satyr-shape

Had bruised tbe herb and crush'd the grape,

And bask'd and batten'd in the woods. ’'


"Oh eu, que lucro há em colocar
Um caso ocioso? Se a Morte fosse vista
De início como Morte, o Amor não teria existido,
Ou teria estado em um trabalho estreito,

Apenas a companhia de humores lentos,
Ou na sua forma mais grosseira de Sátiro
Teria esmagado a erva e triturado a uva,
E se banhado e alimentado nas florestas."

Tennyson, In memoriam (1850)



"Todos, moças e rapazes, estavam loucos para visitar Lyme."

Jane Austen, Persuasão



Ernestina tinha o rosto ideal para sua época, isto é, oval, com um queixo gracioso e delicado como uma violeta. Esse rosto ainda pode ser visto hoje nos desenhos dos grandes ilustradores daquele tempo — nos trabalhos de Phiz, de John Leech. Seus olhos cinzentos e a palidez de sua pele acentuavam ainda mais a delicadeza do resto. Quando era apresentada às pessoas, costumava baixar os olhos encantadoramente, como se fosse desfalecer se algum cavalheiro ousasse dirigir-lhe a palavra. Mas havia uma imperceptível contração nos cantos de seus olhos, correspondendo a outra nos cantos de sua boca — sutil como a fragrância das violetas de fevereiro, para usar a mesma comparação —, que contradizia de maneira muito tênue mas irrefutável sua aparente submissão ao grande deus Homem. Uma pessoa mais enquadrada dentro dos moldes vitorianos teria talvez ficado de sobreaviso diante daquele imperceptível sinal de perigo; mas, para um homem como Charles, ela se mostrava irresistível. Era bastante semelhante àquelas bonequinhas bem-comportadas — as Georginas, Vitórias, Albertinas, Matildes e o resto — que compareciam a todos os bailes em grupos compactos e bem vigiados; e, no entanto, era diferente.

Quando Charles deixou a casa de tia Tranter, na Broad Street, e cobriu a pé a curta distância até seu hotel, para em seguida subir com ar solene — pois um homem que se mostra apaixonado não se alinha entre os tolos deste mundo? — até seu quarto, indo postar-se diante do espelho a interrogar o belo rosto, Ernestina pediu licença e retirou-se para seu quarto. Queria ter uma última visão do noivo através das cortinas de renda, e também ver-se no único aposento da casa de sua tia que ela conseguia realmente tolerar.

Depois de admirar devidamente seu modo de caminhar, e especialmente seu gesto de tirar a cartola para cumprimentar a criada de tia Tranter que por acaso saíra a serviço (ainda que o detestando por isso, pois a moça tinha os olhinhos buliçosos das camponesas de Dorset e um provocante tom rosado nas faces — além disso, Charles fora terminantemente proibido de levantar os olhos para qualquer mulher com menos de sessenta anos, restrição essa da qual tia Tranter escapara milagrosamente pela diferença de um ano), Ernestina afastou-se da janela. Seu quarto fora mobiliado para ela de acordo com seu gosto, que era definitivamente francês, tão pomposo, na época, quanto o inglês, embora um pouco mais extravagante e cheio de douraduras. O resto da casa de tia Tranter era inexoravelmente, maciçamente, irrefutavelmente decorado no estilo em voga um quarto de século antes, isto é, um museu de objetos concebidos ao eclodir a primeira e grande rebelião contra tudo o que fosse decadente, leve e gracioso, e a que a memória ou os costumes do odioso Jorge IV pudessem estar associados. Ninguém deixava de gostar de tia Tranter, e a simples ideia de que uma pessoa se deixasse irritar por aquele rosto candidamente sorridente e loquaz — principalmente loquaz — era absurda. Ela possuía o inesgotável otimismo das solteironas bem-sucedidas. A solidão, quando não azeda as pessoas, ensina-lhes a autossuficiência. Tia Tranter começara por fazer com que as coisas funcionassem da melhor maneira possível para si própria, e terminara fazendo com que funcionassem igualmente bem para o resto do mundo.

Não obstante, Ernestina esforçava-se para irritar-se com ela. Rebelava-se contra a impossibilidade de o jantar ser servido às cinco; contra os fúnebres móveis que entulhavam o resto da casa; contra o excesso de cuidados da tia em preservar seu bom nome (a tia não admitia que um casal de noivos desejasse ficar a sós ou passear desacompanhado); e, acima de tudo, contra o simples fato de se achar ela, Ernestina, em Lyme. A pobre moça teve que passar pela agonia que aflige toda filha única desde o começo dos tempos, sufocada sob o implacável dossel da proteção paterna. Desde seu nascimento, a mais ligeira tosse trazia os médicos à sua casa. Desde a puberdade, o mais leve capricho era sinal para a convocação de decoradores e costureiras. E, sempre, o mais leve indício de tristeza causava no papai e na mamãe longas e secretas horas de auto recriminação. Tudo isso tinha pouca importância, quando se tratava de novos vestidos ou novas cortinas, mas havia um assunto em que sua bouderie {1} e suas queixas não causavam a menor mossa. Era sua saúde. Seus pais estavam convencidos de que a moça tinha propensão para a tísica. Bastava que suspeitassem de alguma umidade no porão para que mudassem de casa, ou que chovesse dois dias seguidos onde estivessem passando as férias para que procurassem outro lugar.

Metade dos médicos da Harley Street já a tinha examinado, nada encontrando. Ela nunca sofrera uma doença grave em sua vida, jamais sentira a astenia, a fraqueza crônica comum às pessoas tísicas. Era capaz — ou teria sido, se lhe permitissem — de dançar a noite inteira e de jogar peteca a manhã toda no dia seguinte, sem sentir a menor indisposição. Mas tinha tão pouca probabilidade de arrancar essa ideia fixa da cabeça de seus dedicados pais quanto uma criança teria forças para mover uma montanha. Se eles pudessem ter uma visão do futuro! Pois Ernestina iria sobreviver a toda a sua geração. Nasceu em 1846, e morreu no dia em que Hitler invadiu a Polônia.

Uma parte indispensável de seu desnecessário regime consistia, pois, em uma visita anual à casa da irmã de sua mãe, em Lyme. Geralmente ia para lá a fim de se recuperar da temporada social, mas naquele ano o objetivo fora reunir forças para enfrentar o casamento. Não havia dúvida de que a brisa do canal lhe fazia um certo bem, mas a moça sempre descia da carruagem em Lyme com a melancolia de um prisioneiro chegando à Sibéria. A sociedade local estava tão em dia com a moda quanto os pesados móveis de mogno de tia Tranter, e as diversões, para uma jovem senhorita acostumada a tudo o que Londres tinha de melhor para oferecer, era como se não existissem. Seu comportamento em relação à tia Tranter era mais o de uma criança travessa, de uma Julieta inglesa para com sua governanta de pés chatos, do que o que se espera geralmente de uma sobrinha para com sua tia. De fato, se Romeu não tivesse aparecido misericordiosamente em cena no inverno anterior, prometendo compartilhar de sua forçada solidão, ela se teria rebelado. Pelo menos, estava convicta de que o teria feito. Ernestina tinha muito mais força de vontade do que imaginavam os que conviviam com ela — e muito mais do que o comum na sua época.

Felizmente, porém, tinha o devido respeito pelas convenções, e um certo senso de auto ironia, também presente em Charles — o que representou inicialmente uma parte ponderável na atração que sentiram um pelo outro. Sem essa dose de ironia e também um certo senso de humor, ela teria se tornado uma moça insuportavelmente mimada. E o fato de muitas vezes censurar a si própria exatamente por esse motivo redimia-a inteiramente.

Naquela tarde, em seu quarto, ela tirou o vestido e se postou diante do espelho, de combinação e anágua, mergulhando por alguns momentos numa autocontemplação altamente narcisista. O pescoço e os ombros faziam justiça a seu rosto. Ela era realmente bonita, uma das moças mais bonitas que conhecia. Como para provar isso, levantou os braços e soltou os cabelos, uma coisa que sentia ser vagamente pecaminosa, e no entanto necessária, como um banho quente ou uma cama bem aquecida numa noite de inverno. Por alguns instantes realmente pecaminosos, ela se imaginou uma mulher de má fama — uma dançarina, uma atriz. E então, se a estivesse observando, o leitor teria visto algo bastante curioso. Pois de repente ela parou de se pavonear diante do espelho e desviou bruscamente os olhos para o teto. Seus lábios se moveram, e, abrindo apressadamente um de seus guarda-roupas, ela tirou de lá um peignoir.

Pois o que lhe passara pela cabeça — ao ver de relance um canto de sua cama refletido no espelho quando fazia piruetas diante dele — fora um pensamento sexual: uma vaga visão de membros nus entrelaçados, como as monstruosas serpentes do Laocoonte {2}. Não era unicamente sua profunda ignorância a respeito da copulação o que a assustava, e sim a aura de dor e de brutalidade que parecia envolver o ato, a negação de todos aqueles gestos delicados, de todas aquelas discretas carícias que tanto a haviam atraído em Charles. Ela assistira por uma ou duas vezes à cópula de animais, e sua violência não lhe saía da mente.

Assim, estabelecera para si própria uma espécie de mandamento particular, cujos termos consistiam em duas simples palavras: "Não devo", sempre que as funções físicas de seu corpo de mulher — sexuais, menstruais e de parturição —tentavam penetrar em sua consciência. Mas os lobos, mesmo mantidos à distância, não deixam de uivar lá fora na escuridão. Ernestina desejava um marido, desejava que Charles fosse esse marido, desejava filhos. Mas suspeitava vagamente que o preço que teria de pagar seria excessivo.

Às vezes, ela se perguntava por que Deus havia permitido que uma forma tão brutal de dever estragasse um desejo tão inocente. A maioria das mulheres de seu tempo, e dos homens também, pensava da mesma forma. Não é de admirar, pois, que o dever se tenha tornado a principal chave para a compreensão da era vitoriana — e, para falar a verdade, da nossa também {3}.

Depois de acalmar os lobos, Ernestina encaminhou-se para sua penteadeira, abriu uma gaveta e tirou dela seu diário, encadernado em marroquina preto e com fecho de ouro. De outra gaveta tirou a chave escondida e abriu o livro. Procurou imediatamente a última página. Ali anotara todos os meses e dias que faltavam para seu casamento. Dois meses já haviam sido cortados por firmes riscos, mas ainda sobravam noventa dias. Ernestina apanhou então o lápis de marfim preso no diário e passou um traço no dia 26 de março. Ainda faltavam nove horas para que o dia terminasse, mas geralmente ela se permitia essa pequena fraude. Depois voltou ao começo do livro, ou quase ao começo, porque o havia recebido como presente de Natal. Depois de umas quinze páginas, cobertas com uma letra compacta, havia um espaço em branco, onde ela havia guardado um raminho de jasmim. Contemplou-o por um momento, depois curvou-se para cheirá-lo. Seus cabelos soltos caíram sobre a página, e ela fechou os olhos, tentando reviver o momento delicioso, o dia em que imaginara morrer de felicidade e chorara interminavelmente, o inefável dia.

Mas ouviu os passos de tia Tranter na escada e guardou apressadamente o livro, pondo-se em seguida a pentear seus finos cabelos castanhos.



Notas:

{1} Aborrecimento. Em francês no original.

{2} Alusão ao célebre grupo escultórico da época helenístka, hoje em exibição no Vaticano, representando o herói troiano Laocoonte e seus filhos, ameaçados por serpentes. (N. do E.)

{3} As estrofes do poema In memoriam que citei no início deste capítulo têm grande importância aqui. Não há dúvida de que nesse poema (XXXV) é apresentado o mais estranho de todos os argumentos a respeito da ansiedade sobre a vida eterna. A afirmação de que o amor só poderá ser erótico se não existir a imortalidade da alma implica claramente uma apavorada rejeição às teorias de Freud. O céu, para os vitorianos, só era céu porque o corpo era deixado aqui na terra, juntamente com o id. (N. do A.)



(A mulher do tenente francês; tradução: Regina Regis Junqueira)



(Ilustração: Henry Caro-Delvaille - desnudo ante el espejo)

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