sábado, 30 de agosto de 2025

INCIDENT / INCIDENTE, de Countee Cullen

 

 

for Eric Walrond

 

Once riding in old Baltimore,

       Heart-filled, head-filled with glee,

I saw a Baltimorean

       Keep looking straight at me.

 

Now I was eight and very small,

       And he was no whit bigger,

And so I smiled, but he poked out

       His tongue, and called me, “Nigger.”

 

I saw the whole of Baltimore

      From May until December;

Of all the things that happened there

     That’s all that I remember.

 

 

 Tradução de Luiz Filho de Oliveira:

 

 

Certa vez andando em Baltimore,

Tão alegre, em regozijo,

Vi um baltimoreano

Mantendo o olhar em mim, fixo.

 

Tinha oito, eu era pequeno,

E o seu tamanho era o mesmo;

Então eu sorri, mas ele

Deu-me a língua e disse: “Negro”.

 

Eu vi Baltimore toda,

Desde maio até dezembro:

De tudo o que ocorreu lá,

Isso é só o que eu lembro.

 

Tradução de Ribeiro Couto:

 

Uma vez andando em Baltimore

Com o coração cheio, o coração cheio de alegria,

Eu vi, um menino baltimoreano

Olhando fixo para mim.

 

Eu era pequeno, tinha oito anos

E ele era pequeno como eu;

Por isso eu sorri, mas ele pôs a língua

E disse apenas: – Negro.

 

Eu vi toda a cidade de Baltimore,

Desde maio até dezembro;

Mas de todas as coisas que ali aconteceram

É só do que eu me lembro.

 

Tradução de André Caramuru Aubert:

 

Certa vez, vagando pela velha Baltimore,

      O coração repleto, a cabeça repleta, de alegria,

Eu vi um baltimoreano

      Olhando diretamente para mim.

 

Eu tinha oito anos e era bem pequeno,

       E ele não era nem um pouco maior

E então eu sorri, mas ele tirou a língua para

       Fora, e me chamou de “Crioulo.”

 

Eu conheci Baltimore inteira

      De maio até dezembro.

De tudo o que aconteceu lá

      Isso é tudo de que eu me lembro.

 


(Ilustração: Ayogu Kingsley)


quarta-feira, 27 de agosto de 2025

SÓ A DOR É POSITIVA..., de Arthur Schopenhauer

  

Se a nossa existência não tem por fim imediato a dor, pode-se dizer que não tem razão alguma de ser no mundo. Porque é absurdo admitir que a dor sem fim que nasce da miséria inerente à vida e enche o mundo seja apenas um puro acidente, e não o próprio fim. Cada desgraça particular parece, é certo, uma exceção, mas a desgraça geral é a regra.

Assim como um regato corre sem ímpetos enquanto não encontra obstáculos, do mesmo modo, na natureza animal, a vida corre inconsciente e descuidosa quando coisa alguma se lhe opõe à vontade. Se a atenção desperta, é porque a vontade não era livre e se produziu algum choque. Tudo o que se ergue em frente da nossa vontade, tudo o que a contraria ou lhe resiste, isto é, tudo o que há de desagradável e de doloroso, sentimo-lo ato contínuo e muito nitidamente. Não nos atentamos à saúde geral do nosso corpo, mas notamos o ponto ligeiro onde o sapato nos molesta; não apreciamos o conjunto próspero dos nossos negócios, e só pensamos numa ninharia insignificante que nos desgosta. – O bem-estar e a felicidade são, portanto, negativos, só a dor é positiva.

Não conheço nada mais absurdo que a maior parte dos sistemas metafísicos, que explicam o mal como uma coisa negativa; só ele, pelo contrário, é positivo, visto que se faz sentir… O bem, a felicidade, a satisfação são negativos, porque não fazem senão suprimir um desejo e terminar um desgosto.

Acrescente-se a isso que, em geral, achamos as alegrias abaixo da nossa expectativa, ao passo que as dores a excedem sobremaneira.

Se quereis num momento esclarecer-vos a esse respeito, e saber se o prazer é superior ao desgosto, ou se apenas se compensam, comparai a impressão do animal que devora outro com a impressão do que é devorado.

A mais eficaz consolação em toda desgraça, em todo sofrimento, é voltar os olhos para aqueles que são ainda mais desgraçados do que nós: esse remédio encontra-se ao alcance de todos. Mas que resulta daí para o conjunto?

Semelhantes aos carneiros que saltam no prado, enquanto, com o olhar, o carniceiro faz a sua escolha no meio do rebanho, não sabemos, nos nossos dias felizes, que desastre o destino nos prepara precisamente a esta hora – doença, perseguição, ruína, mutilação, cegueira, loucura etc.

Tudo o que procuramos colher resiste-nos; tudo tem uma vontade hostil que é preciso vencer. Na vida dos povos, a história só nos aponta guerras e sedições: os anos de paz não passam de curtos intervalos de entreatos, uma vez por acaso. E, da mesma maneira, a vida do homem é um combate perpétuo, não só contra males abstratos, a miséria ou o aborrecimento, mas também contra os outros homens. Em toda parte, encontra-se um adversário: a vida é uma guerra sem tréguas, e morre-se com as armas na mão.

Ao tormento da existência vem ainda juntar-se a rapidez do tempo, que nos inquieta, que não nos deixa respirar, e se conserva atrás de cada um de nós como um vigia forçando-nos de chicote em punho. – Poupa apenas aqueles que entregou ao aborrecimento.

Portanto, assim como o nosso corpo rebentaria se estivesse sujeito à pressão da atmosfera, do mesmo modo, se o peso da miséria, do desgosto, dos revezes e dos vãos esforços fosse banido da vida do homem, o excesso da sua arrogância seria tão desmedido que o faria em bocados, ou pelo menos o conduziria à insânia mais desordenada e à loucura furiosa. – Em todo tempo, cada um precisa ter um certo número de cuidados, de dores ou de miséria, do mesmo modo que o navio carece de lastro para manter-se em equilíbrio e andar direito.

Trabalho, tormento, desgosto e miséria, tal é sem dúvida durante a vida inteira o quinhão de quase todos os homens. Mas se todos os desejos, apenas formados, fossem imediatamente realizados, com que se preencheria a vida humana, em que se empregaria o tempo? Coloque-se essa raça num país de fadas, onde tudo cresceria espontaneamente, onde as calhandras voariam já assadas ao alcance de todas as bocas, onde todos encontrariam sem dificuldade a sua amada e a obteriam o mais facilmente possível – ver-se-ia então os homens morrerem de tédio ou enforcarem-se, outros disputarem, matarem-se e causarem-se mutuamente mais sofrimentos do que a natureza agora lhes impõe. Assim, para semelhante raça, nenhum outro teatro, nenhuma outra existência conviriam.

Na primeira mocidade, somos colocados em face do destino que se vai abrir diante de nós, como as crianças em frente do pano de um teatro, na expectativa alegre e impaciente das coisas que vão se passar em cena; é uma felicidade não podermos saber nada de antemão. Aos olhos daquele que sabe o que realmente vai se passar, as crianças são inocentes culpados, condenados não à morte, mas à vida, e que, todavia, não conhecem ainda o conteúdo da sua sentença. – Nem por isso todos deixam de ter o desejo de chegar a uma idade avançada, isto é, a um estado que se poderia exprimir deste modo: “Hoje é mau, e cada dia o será mais – até que chegue o pior de todos”.

Quando se representa, tanto quanto é possível fazê-lo de uma maneira aproximada, a soma de miséria, de dor e de sofrimentos de todas as espécies que o Sol ilumina no seu curso, deve-se concordar que valeria muito mais que esse astro tivesse o mesmo poder na Terra para fazer surgir o fenômeno da vida que tem na Lua, e seria preferível que a superfície da Terra, como a da Lua, se mantivesse ainda no estado de cristal.

Pode ainda se considerar a nossa vida como um episódio que perturba inutilmente a beatitude e o repouso do nada. Seja como for, aquele para quem a existência é quase suportável, à medida que avança em idade, tem uma consciência cada vez mais clara de que ela é, em todas as coisas, um disappointment, nay, a cheat [uma decepção, ou melhor, uma fraude], em outros termos, que ela possui o caráter de uma grande mistificação, para não dizer de um logro…

Alguém que tenha sobrevivido a duas ou três gerações encontra-se na mesma disposição de espírito que um espectador que, sentado numa barraca de saltimbancos na feira, vê as mesmas farsas repetidas duas ou três vezes sem interrupção: é que as coisas estavam calculadas para uma única representação, e já não fazem nenhum efeito, uma vez dissipadas a ilusão e a novidade.

Perder-se-ia a cabeça, se se observasse a prodigalidade das disposições tomadas, essas estrelas fixas que brilham inumeráveis no espaço infinito, e não têm outro fim senão iluminar mundos, teatros da miséria e dos gemidos, mundos que, no mais feliz dos casos, só produzem o tédio: – pelo menos a apreciarmos a amostra que nos é conhecida.

Ninguém é verdadeiramente digno de inveja, e quantos são para lastimar!

A vida é uma tarefa que devemos desempenhar laboriosamente; e, nesse sentido, a palavra defunctus é uma bela expressão.

Imagine-se por um instante que o ato da geração não era nem uma necessidade nem uma voluptuosidade, mas um caso de pura reflexão e de razão: a espécie humana subsistiria ainda? Não sentiriam todos bastante piedade pela geração futura para lhe poupar o peso da existência, ou, pelo menos, não hesitariam em impor esse a ela a sangue frio?

O mundo é o inferno, e os homens dividem-se em almas atormentadas e em diabos atormentadores.

Certamente ainda terei de ouvir dizer que a minha filosofia carece de consolação – e isso simplesmente porque digo a verdade, enquanto todos gostam de ouvir dizer: o Senhor Deus fez bem tudo o que fez. Ide à igreja e deixai os filósofos em paz. Pelo menos não exijam que eles ajustem as suas doutrinas ao vosso catecismo: é o que fazem os indigentes e os filosofastros a esses, podem-se encontrar doutrinas ao gosto de cada um.

Perturbar o otimismo obrigado dos professores de filosofia é tão fácil como agradável.

Brama produz o mundo por uma espécie de pecado ou desvario, e permanece ele próprio no mundo para expiar esse pecado até estar redimido. – Muito bem! – No budismo, o mundo nasce em seguida a uma perturbação inexplicável, que se produz após um longo repouso nessa claridade do céu, nessa beatitude serena, chamada Nirvana, que será reconquistada pela penitência; é como que uma espécie de fatalidade que se deve compreender no fundo de um sentido moral, ainda que essa explicação tenha uma analogia e uma imagem exatamente correspondente na natureza pela formação inexplicável do mundo primitivo, vasta nebulosa donde surgirá um sol. Mas os erros morais tornam mesmo o mundo físico gradualmente pior e sempre pior, até ter tomado a sua triste forma atual.

Para os gregos, o mundo e os deuses eram a obra de uma necessidade insondável. Essa explicação é suportável, porque nos satisfaz provisoriamente. Ormuzd vive em guerra com Ahriman: – isso ainda se pode admitir. – Mas um Deus como esse Jeová, que animi causa, por seu bel-prazer e muito voluntariamente, produz este mundo de miséria e de lamentações, e que ainda se felicita e se aplaude, é que é demasiado forte! Consideremos, portanto, nesse ponto de vista, a religião dos judeus como a última palavra entre as doutrinas religiosas dos povos civilizados; o que concorda perfeitamente com o fato de ser ela também a única que não tem absolutamente nenhum vestígio de imortalidade.

Ainda mesmo que a demonstração de Leibniz fosse verdadeira, embora se admitisse que entre os mundos possíveis este é sempre o melhor, essa demonstração não daria ainda nenhuma teodiceia. Porque o criador não só criou o mundo, mas também a própria possibilidade; portanto, devia ter tornado possível um mundo melhor.

A miséria, que alastra por este mundo, protesta demasiado alto contra a hipótese de uma obra perfeita devida a um ser absolutamente sábio, absolutamente bom, e também todo poderoso; e, de outra parte, a imperfeição evidente e mesmo a burlesca caricatura do mais acabado dos fenômenos da criação, o homem, são de uma evidência demasiado sensível. Há aí uma dissonância que não se pode resolver. As dores e as misérias são, pelo contrário, outras tantas provas em apoio, quando consideramos o mundo como a obra da nossa própria culpa, e, portanto, como uma coisa que não podia ser melhor. Ao passo que, na primeira hipótese, a miséria do mundo torna-se uma acusação amarga contra o criador e dá margem aos sarcasmos, no segundo caso, aparece como uma acusação contra o nosso ser e a nossa vontade, bem própria para nos humilhar.

Conduz-nos a este profundo pensamento de que viemos ao mundo já viciados, como os filhos de pais gastos pelos desregramentos, e que, se a nossa existência é de tal modo miserável, e tem por desenlace a morte, é porque temos continuamente essa culpa a expiar. De um modo geral, não há nada mais certo: é a pesada culpa do mundo que causa os grandes e inúmeros sofrimentos a que somos votados; e entendemos essa relação no sentido metafísico, e não no físico e empírico. Assim, a história do pecado original reconcilia-me com o antigo testamento; é mesmo a meus olhos a única verdade metafísica do livro, embora aí se apresente sob o véu da alegoria. Porque a nossa existência assemelha-se perfeitamente à consequência de uma falta e de um desejo culpado…

Quereis ter sempre ao alcance da mão uma bússola segura a fim de vos orientar na vida e de encará-la incessantemente sob o seu verdadeiro prisma. Habituai-vos a considerar este mundo como um lugar de penitência, como uma colônia penitenciária, como lhe chamaram já os mais antigos filósofos (Clem. Alex. Strom. L. III, c. 3, p. 399.) e alguns padres da Igreja (Augustin. De civit. Dei, L. XI, 23.).

A sabedoria de todos os tempos, o bramanismo, o budismo, Empédocles e Pitágoras confirmam esse modo de ver; Cícero (Fragmenta de philosophia, v. 12, p. 316, ed. Bip.) conta que os sábios antigos, na iniciação dos mistérios, ensinavam: nos ob aliqua scelera suscepta in vita superiore, poenarum luendarum causa natos esse [1]. Vanini, que acharam mais cômodo queimar que refutar, exprime essa ideia da maneira mais enérgica quando diz: Tot tantisque homo repletus miseriis, ut si christianae religioni non repugnaret: dicere auderem, si doemones dantur, ipsi, in hominum corpora transmigrantes, sceleris poenas luunt[2] (De admirandis naturae arcanis, dial L. p.353.). Mas, mesmo no puro cristianismo bem compreendido, a nossa existência é considerada como a consequência de uma falta, de uma queda. Se nos familiarizarmos com essa ideia, não esperaremos da vida senão o que ela pode nos dar, e longe de considerarmos as suas contradições, seus sofrimentos, seus tormentos, suas misérias grandes ou pequenas, como coisas inesperadas, contrárias às regras, achá-los-emos perfeitamente naturais, sabendo bem que na Terra cada um sofre a pena da sua existência, e cada um a seu modo. Entre os males de um estabelecimento penitenciário, o menor não é a sociedade que nele se encontra. O que a sociedade dos homens vale, sabem-no aqueles que mereceriam outra melhor, sem que seja necessário que eu o diga. Uma bela alma, um gênio, podem por vezes experimentar aí os sentimentos de um nobre prisioneiro do Estado, que se encontra nas galés rodeado de celerados vulgares; e, como ele, procuram isolar-se. Em geral, porém, essa ideia sobre o mundo torna-nos aptos a ver sem surpresa, e ainda mais, sem indignação, o que se chamam as imperfeições, isto é, a miserável constituição intelectual e moral da maior parte dos homens, que sua própria fisionomia nos revela…

A convicção de que o mundo e, por conseguinte, o homem são tais que não deveriam existir é apresentada de modo que nos deve encher de indulgência uns pelos outros; que se pode esperar, de fato, de uma tal espécie de seres? – Penso, às vezes, que a maneira mais conveniente de os homens se cumprimentarem, em vez de ser Senhor, Sir etc. poderia ser: “companheiro de sofrimentos, soci malorum, companheiro de miséria, my fellow-sufferer”. Por muito original que isso pareça, a expressão é, contudo, fundada, lança sobre o próximo a luz mais verdadeira, e lembra a necessidade da tolerância, da paciência, da indulgência, do amor ao próximo, sem o que ninguém pode passar, e de que, portanto, todos são devedores.



Notas:

[1] Nascemos para cumprir as penas de alguns crimes cometidos em uma vida anterior. (Nota do tradutor Daniel M. Moreira)

[2] O homem está tão repleto de tantas misérias, que, se a religião cristã não se opusesse, eu me atreveria a dizer: se existem demônios, eles mesmos, ao passarem aos corpos dos homens, cumprem as penas. (Nota do tradutor Daniel M. Moreira)



(As dores do mundo; tradução de José Souza de Oliveira)



(Ilustração: Cândido Portinari - retirantes, 1955)

domingo, 24 de agosto de 2025

A ÁRVORE, de Geir Campos


Ó árvore, quantos séculos levaste

a aprender a lição que hoje me dizes:

o equilíbrio, das flores às raízes,

sugerindo harmonia onde há contraste?



Como consegues evitar que uma haste

e outra se batam, pondo cicatrizes

inúteis sobre os membros infelizes?

Quando as folhas e os frutos comungaste?



Quantos séculos, árvore, de estudos

e experiências — que o vigor consomem

entre vigílias e cismares mudos —



demoraste aprendendo o teu exemplo,

no sossego da selva armada em templo?

Dize: e não há esperança para o Homem?




(Rosa dos Rumos)


(Ilustração: Giovanni Giacometti)



quinta-feira, 21 de agosto de 2025

NO VELÓRIO DA MULHER DO DOMINGÃO, de Dalcídio Jurandir


Por que sente na morte da mulher do Domingão que alguma coisa de si também vai com ela? Talvez a cena que Irene representa. Um bocado do ridículo que havia nele. Experimenta confusamente uma espécie de alívio naquela morte. A mulher do Domingão talvez não possa mais servir de motivo para Irene ridicularizá-lo. Sim, era uma esperança. Mas Irene tem imaginação para inventar outros motivos. A mulher do Domingão era uma imagem odiosa e grotesca que em certas noites parecia enorme não de gordura mas dos risos de Irene, das maldades de Irene. Ia para o velório com um alívio e esse alívio porém lhe abria mais uma ferida, lhe dava ainda mais a impressão de que não valia mais nada como homem, era um fantoche... Se o mundo soubesse ver, recuaria espantado diante do que tinha de podre e de frustrado na sua vida. Domingão perdia a companheira gorda e esfomeada como ele. Tinham prazer em ficar juntos na varanda e conversar sobre a fortuna perdida. Choravam juntos. Soluçavam abraçados. Mas porque discordassem de certos detalhes no modo como reconstruíam o seu passado, brigavam, afastavam-se como dois inimigos. Viviam dentro do seu chalé escuro e fechado como dois prisioneiros.

Uma vez, Eutanázio foi encontrá-los — era o único ser que podia entrar no chalé sem bater palmas —, encontrá-los com a mesa arrumada, alguns pratos antigos e caros, uma terrina branca e alta, dois copos cheios d’água. A terrina vazia, os pratos vazios e pelo corredor se podia ver o fogão apagado. Eutanázio não sabia compreender. Também não sabia perguntar. Eles dois que esperavam o imaginário almoço deitaram sobre Eutanázio um olhar tranquilo e feliz que perturbou o visitante. Estariam loucos? Perguntou ele a si mesmo. Ou eu? Eles nada disseram, ficaram naquela atitude tranquila e beata esperando o almoço. A mesa estava posta. Tinham retirado do velho e roído guarda-louça os últimos pratos, o resto de louça da passada fortuna. E esperavam. Domingão não soltou aquela patética exclamação sobre a fome nem a sua maldição sobre os advogados. Domingão, depois de um longo silêncio, fez sinal para Eutanázio puxar uma cadeira. Mas Eutanázio se viu também contagiado daquela súbita loucura, daquele silêncio, daquela fome. Os dois gordos deviam pesar sobre as velhas cadeiras aflitas não só com o peso da sua gordura mas do seu passado morto, da espécie de certeza de que faziam aquilo porque foram tomados de fraqueza, não sabiam mesmo se era cabeça variada, Eutanázio que decifrasse ou acabasse com aquela cena.

Agora ia ao quarto da mulher do Domingão. Uma vitória do povo da rua das Palhas que não sabia ao certo o que se passava naquele chalé. Agora o pessoal entra sem cerimônia, invade a sala, o quarto, a varanda, com uma vingativa satisfação. Aquela piedade é, para Domingão, mais do que uma ofensa, uma vingança. Eutanázio, quando viu o velho sentado num mocho, perto da cozinha, com aquela sua camisa esfrangalhada e os óculos descidos no nariz, compreendeu o seu ar definitivo de derrota, a sua impotente vontade de expulsar toda aquela gente de sua casa e ficar com a morta, conversando sobre a passada fortuna.

— Seu Eutanázio, invadiram tudo, — disse abafadamente — vão furtar os meus últimos cacarecos. Cadê dinheiro para o caixão?

Agora, se fosse conversar com aquele vasto cadáver na sala, sobre o passado, não se afastariam mais como inimigos por via de detalhes. Ela confirmaria tudo que ele dissesse. Eutanázio, ou por timidez, ou por indiferença, não descobriu o imenso rosto da mulher coberto por um pano. Viu foi o pessoal conversando, rindo, iniciando brincadeiras, fumando. Havia pouca luz. Como se a morte da D. Emiliana fosse apenas um pretexto para aquela gente pobre se divertir, se esquecer. O cadáver parecia ausente. A morte não era grande coisa para eles. Na cozinha, D. Mercedes fazia café. Outras que, sem serem chamadas, entraram pelo quarto e tudo arrumaram para vestir o corpo, cochichavam na varanda, umas de cócoras, outras em pé, cuspindo, conversando tranquilamente. A desgraça do Domingão fazia aquela gente feliz. Uns felizes porque puderam servir ao próximo, vestir um defunto. Duas latas d’água estavam junto ao fogão. Alguém chegou com o embrulho do café. Houve risadas na sala. No sereno, rapazes brincavam de lutar, tomar cigarros, dizer apelido um ao outro.

Domingão, meio derreado à parede, parecia cadáver também. Até que veio o café. Houve um movimento na sala. As velas se derretiam na cabeceira do cadáver. Não havia crucifixo. Domingão não tinha. Quiseram correr para buscar emprestado o crucifixo grande e bonito de Felícia. Mas no tempo que trouxeram o café, Aurélia chegou com um crucifixozinho e pôs na cabeceira de D. Emiliana.

Depois de provar o café, Eutanázio mirou bem o fundo da xícara, olhou, e com o dedo minguinho mexeu o café. Bebeu mais um gole e qualquer coisa lhe ficou no beiço. E olhou para as pessoas que já tinham tomado ou ainda bebiam o café que D. Mercedes sabia fazer.

— D. Mercedes, o pessoal da sala já tomou?

— Já, foi até o primeiro que tomou.

— Pois, D. Mercedes, houve um pequeno engano na água desse café. — E Eutanázio, indicando as duas latas d’água perto do fogão, perguntou, sorrindo, pacificamente:

— De que é a água daquelas latas?

— Uma foi Valdemar que encheu para o café e a outra foi ainda a água em que se lavou o corpo; mas por quê, seu Eutanázio?

Eutanázio, devagar, levantou-se e foi acompanhado por D. Mercedes verificar as duas latas.

— A senhora está vendo? A do café cheia e a do corpo...

— Meu Deus, será possível?...

— Está aqui na minha xícara esta coisa de cadáver, isso, olhe...

E Eutanázio sorria. D. Mercedes, na tentativa dum gesto quis ocultar, pedir para seu Eutanázio... Mas. alguém escutara e logo se espalhou violentamente em todo o chalé, no sereno, acordou os vizinhos, encheu Cachoeira, que o pessoal do quarto tinha tomado café feito com a água que lavara a defunta!

Eutanázio saiu sorrindo. Todo aquele povo parecia fazer sobre ele uma obscura acusação. D. Mercedes mesmo não devia perdoá-lo nunca.

Eutanázio estava com gosto de cadáver na boca, no seu tédio, na sua náusea. De qualquer forma a mulher do Domingão ia ficar na sua vida, ia ser motivo para Irene inventar novas comédias na varanda. Ficava nele, naquela água com que as velhas lavaram a defunta.



(Chove nos campos de Cachoeira)



(Ilustração: Francisco Oller y Cestero - The Wake, 1893)

segunda-feira, 18 de agosto de 2025

O ESTUDANTE ALSACIANO, de Acácio Antunes


Antigamente, a escola era risonha e franca.

Do velho professor, as cãs e a barba branca

infundiam respeito e impunham simpatia,

modelando as feições do velho que sorria.

Era como criança em meio às crianças,

como ao pombal voando,

em bando, as pombas mansas

corriam todos

para a escola e nem sequer assomo

de aversão ou desgosto

sentiam ao ir para ali

como quem vai a uma festa

ao começo, ao estudo,

sem pezar abandonavam tudo

de bancos em fileiras

iam sentar-se em frente às carteiras



gravemente atentos, uns pequeninos sábios.

E o velho professor, tendo sempre nos lábios

ia ensinando a este, emendando àquele,

de manso, com carinho e paternal amor.

Por fim, tudo mudou: agora o professor

é um velho austero e conciso

nunca os lábios se lhe abriam

à sombra de um sorriso.

E aos pequenos transformou

num calabouço a escola:

pobres asas sem dó

metidas na gaiola.



Lá dentro o francês é língua morta e muda

unicamente o alemão se fala e estuda;

são alemães os livros, o mestre, a lição.

A Alsácia é alemã, o povo é alemão.

Como na própria Pátria, é triste ser proscrito!



Frequentava também a escola, um rapazito

de severo perfil, enérgico e expressivo,

de olhar inteligente e vivo

mas na íntima tristeza daquele olhar velado,

no modesto trajar, de luto carregado,

doze anos só teria. E o mestre uma vez

chamou-o à Geografia.

-– Diz-me aí, rapaz, que é isto,

estás de luto, quem te morreu?

– Meu pai, no último reduto em defesa da Pátria.

– Ah, sim... bem. Adiante,

tu tens um ar de ser bom estudante.

– Quais são as principais nações da Europa? Vá.

– As principais são... a França...

– Hei, que é lá, com que então a França é a

primeira? Bom começo...

– De todas as nações, pateta, que conheço

aquela que mais vale e que domina o mundo

em esplendor nas letras e nas artes,

que irradia ciência a iluminar a terra,

a mais nobre na paz, a mais forte na guerra,

a mais, que das demais desdenha,

fica-o tu sabendo, rapaz, é a Alemanha.

Com ar desprezador e altivo

a cabeça agitando num gesto negativo

com voz firme tornou: – A França é a primeira!

O mestre, furioso, ergue-se da cadeira, bate o pé

e uma praga enérgica se lhe escapa.

– Tu sabes onde está a França? Aponta-ma no mapa.



Com o rosto afogueado, os olhos fulgurantes,

enquanto os demais estudantes

olham cheios de assombro

aquele destemido rapaz,

nervos, tímido, comovido,

o cobarde feito herói, pigmeu tornado atleta,

desabotoando febril a blusa preta

batendo no peito, impávida criança exclama:

– É aqui, é aqui dentro que está a França.



(Ilustração : Henri Jules Jean Geoffroyf, en classe le travail des petits - 1889)

sexta-feira, 15 de agosto de 2025

ERNESTINA, de John Fowles

 


"O me, what profits it to put

An idle case? If Death were seen

At first as Death, Love had not been,

Or been in narrowest working shut,



Mere fellowship of sluggish moods,

Or in bis coarsest Satyr-shape

Had bruised tbe herb and crush'd the grape,

And bask'd and batten'd in the woods. ’'


"Oh eu, que lucro há em colocar
Um caso ocioso? Se a Morte fosse vista
De início como Morte, o Amor não teria existido,
Ou teria estado em um trabalho estreito,

Apenas a companhia de humores lentos,
Ou na sua forma mais grosseira de Sátiro
Teria esmagado a erva e triturado a uva,
E se banhado e alimentado nas florestas."

Tennyson, In memoriam (1850)



"Todos, moças e rapazes, estavam loucos para visitar Lyme."

Jane Austen, Persuasão



Ernestina tinha o rosto ideal para sua época, isto é, oval, com um queixo gracioso e delicado como uma violeta. Esse rosto ainda pode ser visto hoje nos desenhos dos grandes ilustradores daquele tempo — nos trabalhos de Phiz, de John Leech. Seus olhos cinzentos e a palidez de sua pele acentuavam ainda mais a delicadeza do resto. Quando era apresentada às pessoas, costumava baixar os olhos encantadoramente, como se fosse desfalecer se algum cavalheiro ousasse dirigir-lhe a palavra. Mas havia uma imperceptível contração nos cantos de seus olhos, correspondendo a outra nos cantos de sua boca — sutil como a fragrância das violetas de fevereiro, para usar a mesma comparação —, que contradizia de maneira muito tênue mas irrefutável sua aparente submissão ao grande deus Homem. Uma pessoa mais enquadrada dentro dos moldes vitorianos teria talvez ficado de sobreaviso diante daquele imperceptível sinal de perigo; mas, para um homem como Charles, ela se mostrava irresistível. Era bastante semelhante àquelas bonequinhas bem-comportadas — as Georginas, Vitórias, Albertinas, Matildes e o resto — que compareciam a todos os bailes em grupos compactos e bem vigiados; e, no entanto, era diferente.

Quando Charles deixou a casa de tia Tranter, na Broad Street, e cobriu a pé a curta distância até seu hotel, para em seguida subir com ar solene — pois um homem que se mostra apaixonado não se alinha entre os tolos deste mundo? — até seu quarto, indo postar-se diante do espelho a interrogar o belo rosto, Ernestina pediu licença e retirou-se para seu quarto. Queria ter uma última visão do noivo através das cortinas de renda, e também ver-se no único aposento da casa de sua tia que ela conseguia realmente tolerar.

Depois de admirar devidamente seu modo de caminhar, e especialmente seu gesto de tirar a cartola para cumprimentar a criada de tia Tranter que por acaso saíra a serviço (ainda que o detestando por isso, pois a moça tinha os olhinhos buliçosos das camponesas de Dorset e um provocante tom rosado nas faces — além disso, Charles fora terminantemente proibido de levantar os olhos para qualquer mulher com menos de sessenta anos, restrição essa da qual tia Tranter escapara milagrosamente pela diferença de um ano), Ernestina afastou-se da janela. Seu quarto fora mobiliado para ela de acordo com seu gosto, que era definitivamente francês, tão pomposo, na época, quanto o inglês, embora um pouco mais extravagante e cheio de douraduras. O resto da casa de tia Tranter era inexoravelmente, maciçamente, irrefutavelmente decorado no estilo em voga um quarto de século antes, isto é, um museu de objetos concebidos ao eclodir a primeira e grande rebelião contra tudo o que fosse decadente, leve e gracioso, e a que a memória ou os costumes do odioso Jorge IV pudessem estar associados. Ninguém deixava de gostar de tia Tranter, e a simples ideia de que uma pessoa se deixasse irritar por aquele rosto candidamente sorridente e loquaz — principalmente loquaz — era absurda. Ela possuía o inesgotável otimismo das solteironas bem-sucedidas. A solidão, quando não azeda as pessoas, ensina-lhes a autossuficiência. Tia Tranter começara por fazer com que as coisas funcionassem da melhor maneira possível para si própria, e terminara fazendo com que funcionassem igualmente bem para o resto do mundo.

Não obstante, Ernestina esforçava-se para irritar-se com ela. Rebelava-se contra a impossibilidade de o jantar ser servido às cinco; contra os fúnebres móveis que entulhavam o resto da casa; contra o excesso de cuidados da tia em preservar seu bom nome (a tia não admitia que um casal de noivos desejasse ficar a sós ou passear desacompanhado); e, acima de tudo, contra o simples fato de se achar ela, Ernestina, em Lyme. A pobre moça teve que passar pela agonia que aflige toda filha única desde o começo dos tempos, sufocada sob o implacável dossel da proteção paterna. Desde seu nascimento, a mais ligeira tosse trazia os médicos à sua casa. Desde a puberdade, o mais leve capricho era sinal para a convocação de decoradores e costureiras. E, sempre, o mais leve indício de tristeza causava no papai e na mamãe longas e secretas horas de auto recriminação. Tudo isso tinha pouca importância, quando se tratava de novos vestidos ou novas cortinas, mas havia um assunto em que sua bouderie {1} e suas queixas não causavam a menor mossa. Era sua saúde. Seus pais estavam convencidos de que a moça tinha propensão para a tísica. Bastava que suspeitassem de alguma umidade no porão para que mudassem de casa, ou que chovesse dois dias seguidos onde estivessem passando as férias para que procurassem outro lugar.

Metade dos médicos da Harley Street já a tinha examinado, nada encontrando. Ela nunca sofrera uma doença grave em sua vida, jamais sentira a astenia, a fraqueza crônica comum às pessoas tísicas. Era capaz — ou teria sido, se lhe permitissem — de dançar a noite inteira e de jogar peteca a manhã toda no dia seguinte, sem sentir a menor indisposição. Mas tinha tão pouca probabilidade de arrancar essa ideia fixa da cabeça de seus dedicados pais quanto uma criança teria forças para mover uma montanha. Se eles pudessem ter uma visão do futuro! Pois Ernestina iria sobreviver a toda a sua geração. Nasceu em 1846, e morreu no dia em que Hitler invadiu a Polônia.

Uma parte indispensável de seu desnecessário regime consistia, pois, em uma visita anual à casa da irmã de sua mãe, em Lyme. Geralmente ia para lá a fim de se recuperar da temporada social, mas naquele ano o objetivo fora reunir forças para enfrentar o casamento. Não havia dúvida de que a brisa do canal lhe fazia um certo bem, mas a moça sempre descia da carruagem em Lyme com a melancolia de um prisioneiro chegando à Sibéria. A sociedade local estava tão em dia com a moda quanto os pesados móveis de mogno de tia Tranter, e as diversões, para uma jovem senhorita acostumada a tudo o que Londres tinha de melhor para oferecer, era como se não existissem. Seu comportamento em relação à tia Tranter era mais o de uma criança travessa, de uma Julieta inglesa para com sua governanta de pés chatos, do que o que se espera geralmente de uma sobrinha para com sua tia. De fato, se Romeu não tivesse aparecido misericordiosamente em cena no inverno anterior, prometendo compartilhar de sua forçada solidão, ela se teria rebelado. Pelo menos, estava convicta de que o teria feito. Ernestina tinha muito mais força de vontade do que imaginavam os que conviviam com ela — e muito mais do que o comum na sua época.

Felizmente, porém, tinha o devido respeito pelas convenções, e um certo senso de auto ironia, também presente em Charles — o que representou inicialmente uma parte ponderável na atração que sentiram um pelo outro. Sem essa dose de ironia e também um certo senso de humor, ela teria se tornado uma moça insuportavelmente mimada. E o fato de muitas vezes censurar a si própria exatamente por esse motivo redimia-a inteiramente.

Naquela tarde, em seu quarto, ela tirou o vestido e se postou diante do espelho, de combinação e anágua, mergulhando por alguns momentos numa autocontemplação altamente narcisista. O pescoço e os ombros faziam justiça a seu rosto. Ela era realmente bonita, uma das moças mais bonitas que conhecia. Como para provar isso, levantou os braços e soltou os cabelos, uma coisa que sentia ser vagamente pecaminosa, e no entanto necessária, como um banho quente ou uma cama bem aquecida numa noite de inverno. Por alguns instantes realmente pecaminosos, ela se imaginou uma mulher de má fama — uma dançarina, uma atriz. E então, se a estivesse observando, o leitor teria visto algo bastante curioso. Pois de repente ela parou de se pavonear diante do espelho e desviou bruscamente os olhos para o teto. Seus lábios se moveram, e, abrindo apressadamente um de seus guarda-roupas, ela tirou de lá um peignoir.

Pois o que lhe passara pela cabeça — ao ver de relance um canto de sua cama refletido no espelho quando fazia piruetas diante dele — fora um pensamento sexual: uma vaga visão de membros nus entrelaçados, como as monstruosas serpentes do Laocoonte {2}. Não era unicamente sua profunda ignorância a respeito da copulação o que a assustava, e sim a aura de dor e de brutalidade que parecia envolver o ato, a negação de todos aqueles gestos delicados, de todas aquelas discretas carícias que tanto a haviam atraído em Charles. Ela assistira por uma ou duas vezes à cópula de animais, e sua violência não lhe saía da mente.

Assim, estabelecera para si própria uma espécie de mandamento particular, cujos termos consistiam em duas simples palavras: "Não devo", sempre que as funções físicas de seu corpo de mulher — sexuais, menstruais e de parturição —tentavam penetrar em sua consciência. Mas os lobos, mesmo mantidos à distância, não deixam de uivar lá fora na escuridão. Ernestina desejava um marido, desejava que Charles fosse esse marido, desejava filhos. Mas suspeitava vagamente que o preço que teria de pagar seria excessivo.

Às vezes, ela se perguntava por que Deus havia permitido que uma forma tão brutal de dever estragasse um desejo tão inocente. A maioria das mulheres de seu tempo, e dos homens também, pensava da mesma forma. Não é de admirar, pois, que o dever se tenha tornado a principal chave para a compreensão da era vitoriana — e, para falar a verdade, da nossa também {3}.

Depois de acalmar os lobos, Ernestina encaminhou-se para sua penteadeira, abriu uma gaveta e tirou dela seu diário, encadernado em marroquina preto e com fecho de ouro. De outra gaveta tirou a chave escondida e abriu o livro. Procurou imediatamente a última página. Ali anotara todos os meses e dias que faltavam para seu casamento. Dois meses já haviam sido cortados por firmes riscos, mas ainda sobravam noventa dias. Ernestina apanhou então o lápis de marfim preso no diário e passou um traço no dia 26 de março. Ainda faltavam nove horas para que o dia terminasse, mas geralmente ela se permitia essa pequena fraude. Depois voltou ao começo do livro, ou quase ao começo, porque o havia recebido como presente de Natal. Depois de umas quinze páginas, cobertas com uma letra compacta, havia um espaço em branco, onde ela havia guardado um raminho de jasmim. Contemplou-o por um momento, depois curvou-se para cheirá-lo. Seus cabelos soltos caíram sobre a página, e ela fechou os olhos, tentando reviver o momento delicioso, o dia em que imaginara morrer de felicidade e chorara interminavelmente, o inefável dia.

Mas ouviu os passos de tia Tranter na escada e guardou apressadamente o livro, pondo-se em seguida a pentear seus finos cabelos castanhos.



Notas:

{1} Aborrecimento. Em francês no original.

{2} Alusão ao célebre grupo escultórico da época helenístka, hoje em exibição no Vaticano, representando o herói troiano Laocoonte e seus filhos, ameaçados por serpentes. (N. do E.)

{3} As estrofes do poema In memoriam que citei no início deste capítulo têm grande importância aqui. Não há dúvida de que nesse poema (XXXV) é apresentado o mais estranho de todos os argumentos a respeito da ansiedade sobre a vida eterna. A afirmação de que o amor só poderá ser erótico se não existir a imortalidade da alma implica claramente uma apavorada rejeição às teorias de Freud. O céu, para os vitorianos, só era céu porque o corpo era deixado aqui na terra, juntamente com o id. (N. do A.)



(A mulher do tenente francês; tradução: Regina Regis Junqueira)



(Ilustração: Henry Caro-Delvaille - desnudo ante el espejo)

terça-feira, 12 de agosto de 2025

O BEIJA-FLOR, de Tobias Barreto

 


Era uma moça franzina,

Bela visão matutina

Daquelas que é raro ver,

Corpo esbelto, colo erguido,

Molhando o branco vestido

No orvalho do amanhecer.



Vede-a lá: tímida, esquiva...

Que boca! é a flor mais viva,

Que agora está no jardim;

Mordendo a polpa dos lábios

Como quem suga o ressábio

Dos beijos de um querubim!



Nem viu que as auras gemeram,

E os ramos estremeceram

Quando um pouco ali se ergueu...

Nos alvos dentes, viçosa,

Parte o talo de uma rosa,

Que docemente colheu.



E a fresca rosa orvalhada,

Que contrasta descorada,

Do seu rosto a nívea tez,

Beijando as mãozinhas suas,

Parece que diz: nós duas!...

E a brisa emenda: nós três! ...



Vai nesse andar descuidoso,

Quando um beija-flor teimoso

Brincar entre os galhos vem,

Sente o aroma da donzela,

Peneira na face dela,

E quer-lhe os lábios também



Treme a virgem de surpresa,

Leva do braço em defesa,

Vai com o braço a flor da mão;

Nas asas d’ave mimosa

Quebra-se a flor melindrosa,

Que rola esparsa no chão.



Não sei o que a virgem fala,

Que abre o peito e mais trescala

Do trescalar de uma flor:

Voa em cima o passarinho...

Vai já tocando o biquinho

Nos beiços de rubra cor.



A moça, que se envergonha

De correr, meio risonha

Procura se desviar;

Neste empenho os seios ambos

Deixa ver; inconhos jambos

De algum celeste pomar! ...



Forte luta, luta incrível

Por um beijo! É impossível

Dizer tudo o que se deu.

Tanta coisa, que se esquece

Na vida! Mas me parece

Que o passarinho venceu! ...



Conheço a moça franzina

Que a fronte cândida inclina

Ao sopro de casto amor:

Seu rosto fica mais lindo,

Quando ela conta sorrindo

A história do beija-flor.




(Ilustração : Alfredo Protti, 1882-1949)

sábado, 9 de agosto de 2025

A VINGANÇA DE BARBOSA: A LUTA DO GOLEIRO NEGRO POR RESPEITO, de Djamila Ribeiro

 


Em 1950, na final da Copa da Mundo entre Brasil e Uruguai no Maracanã, além da derrota, o Brasil criou um estereótipo: o de que negro não podia ser goleiro. Moacyr Barbosa, mais conhecido como Barbosa, era o goleiro da então seleção brasileira e foi eleito o grande culpado pelo vice-campeonato. Apesar de ser considerado um bom goleiro, Barbosa, que era negro, carregou até o fim da vida, em 7 de abril de 2000, aos 79 anos, o fardo dessa derrota. A partir desse fato criou-se o mito racista do goleiro negro. Era muito comum ouvir comentaristas de futebol, artistas falando de forma taxativa: “goleiro negro não, não lembram do Barbosa?”

Somente em 2006 a seleção brasileira teve outro goleiro negro como titular, o Dida, 56 anos depois de Barbosa. Antes disso, Dida havia sido terceiro goleiro na Copa de 1998 e feito parte do elenco pentacampeão em 2002 como goleiro reserva. Atualmente Jefferson, goleiro do Botafogo, também atua em alguns jogos da seleção, em times, temos o Aranha, goleiro do Palmeiras, ex Santos, que recentemente foi vítima de racismo.

De acordo com Paulo Guilherme, autor do livro Goleiros – Heróis e Anti-heróis da Camisa 1, do primeiro jogo da seleção brasileira em 1914, até 2006, 92 goleiros foram convocados e apenas 12 eram negros. O livro também revela que a presença de goleiros negros e pardos na elite do futebol nacional aumenta a cada ano. Em 2004, eles eram 12,5%, em 2005, 18% e 2006, 20,5%. Em 2010, os goleiros negros eram 25% e em 2012, 31%. Mas mesmo assim, o número de goleiros negros ainda é pouco perto das outras posições. Fico pensando quantos meninos negros não tiveram seus sonhos destruídos por conta dessa atitude racista.

Donald Verônico, educador físico e gestor de projetos esportivos, que em 2004 fez uma pesquisa intitulada “O jogador negro no futebol brasileiro: uma história de discriminação”, diz: “o racismo no futebol é reflexo do racismo presente na sociedade brasileira. O ato racista que aconteceu com Barbosa guiou o pensamento de muitos técnicos de futebol, principalmente de categorias de base e de iniciação esportiva, que devem ter matado o sonho de muitos meninos negros os desencorajando a serem goleiros. Em suma, o que ocorreu com Barbosa não se limitou a ele, se estendeu a várias gerações de meninos negros”.

Quando uma pessoa de um grupo historicamente discriminado erra, todo o grupo leva a culpa. Por exemplo, se uma mulher bandeirinha erra num lance, muitos vão dizer: “mulher não serve para trabalhar com futebol”,” deveria estar lavando louça”. Ou no caso de Barbosa, criou-se o mito de negros não serem bons goleiros. Em contrapartida, se um árbitro homem erra, ninguém diz que homem não serve para trabalhar com futebol, culpa-se o indivíduo e não o grupo.

E por que isso acontece? Porque grupos historicamente discriminados como mulheres, mulheres negras, negros, carregam os estigmas e estereótipos criados pelo machismo/racismo. Como diz Joan Scott em O enigma da igualdade, “como objeto de discriminação, alguém é transformado em estereótipo”.

Estereótipos são generalizações impostas a grupos sociais específicos, geralmente aqueles oprimidos. Numa sociedade machista impõem-se a criação de papéis de gêneros negando humanidade às mulheres e como forma de manutenção de poder. Por exemplo: “mulheres são naturalmente maternais”, “mulheres devem cuidar de afazeres domésticos”. Esses estereótipos servem para naturalizar opressões que são construídas socialmente e que passam a mensagem de que o espaço público não é para mulheres. Da mesma forma com pessoas negras: “toda negra sabe sambar”, “todo negro é bom de bola (desde que não goleiro)”, estereótipos esses que tem a finalidade de nos manterem no lugar que a sociedade racista determina.

Júlio César, goleiro da seleção na última Copa, que também aconteceu no Brasil, obviamente não foi culpado pela derrota da seleção brasileira para a alemã por 7 a 1, a culpa não foi dele, é todo um time que joga, mas não se ouviu ninguém dizer que homens brancos são “frangueiros”, por exemplo. Nenhum mito criou-se em cima do goleiro branco. Pessoas brancas pertencem ao grupo que está no poder, logo suas falhas serão atribuídas aos seus indivíduos, de forma pessoal, mantendo sua hegemonia e poder.





Após a derrota vexatória, Tereza Borba, filha de Barbosa e única familiar viva dele, disse em entrevista que acompanhou o drama e a dor de seu pai por o terem tornado um vilão nacional e finalizou: “ele deve estar feliz”. Não que houve torcida para que isso acontecesse, nem nos nossos piores pesadelos imaginaríamos uma derrota tão contundente, mas agora a memória de Barbosa pode descansar em paz. Que ele possa ser lembrado com respeito pelos seus títulos como a Copa América, Copa Roca e o hexacampeonato carioca pelo Vasco. Enfim, que se faça justiça, não somente a ele, mas a todos e todas que tiveram seus sonhos tirados pelo racismo.



PS: Ao realizar a pesquisa para escrever esse texto me deparei com entrevistas de escritores e sociólogos sobre o tema. Alguns deles diziam não haver preconceito em relação aos goleiros negros; que isso se tratava de uma coincidência, o que é uma leitura extremamente superficial não somente dessa sociedade racista, mas como do caso em questão. Triste coincidência racista essa…



(Carta Capital)


(Ilustração: Barbosa em 1945 - acervo do C.R.Vasco da Gama, autor não informado)