quinta-feira, 30 de novembro de 2023

A ERA DA AGONIA, de Lindsay Fitzharris

 



“Quando um cientista eminente mas idoso afirma que uma coisa é possível, é quase certo que tenha razão. Quando afirma que algo é impossível, é quase certo que esteja enganado.”[1]

 

— ARTHUR C. CLARKE

 

NA TARDE DE 21 de dezembro de 1846, centenas de homens lotaram o anfiteatro cirúrgico do University College Hospital de Londres (UCL), onde o cirurgião mais famoso da cidade se preparava para fasciná-los com uma amputação na altura do meio da coxa. À medida que entravam, as pessoas não tinham a menor ideia de que estavam prestes a assistir a um dos momentos mais cruciais da história da medicina.

O anfiteatro estava abarrotado de estudantes de medicina e espectadores curiosos, muitos dos quais haviam arrastado consigo para o recinto a sujeira e a fuligem do dia a dia da Londres vitoriana. O cirurgião John Flint South comentou que a correria e os empurrões para conseguir um lugar num anfiteatro cirúrgico não diferiam dos observados na disputa por assentos na plateia ou na galeria dos teatros.[2 ] As pessoas se amontoavam como sardinha em lata, e as que ocupavam as últimas fileiras se acotovelavam constantemente para conseguir um ângulo melhor, gritando “Abaixem a cabeça!” toda vez que sua visão era bloqueada.[3] Em algumas ocasiões, a plateia desses anfiteatros ficava tão cheia que o cirurgião era impossibilitado de operar, e o espaço precisava ser parcialmente esvaziado. Embora fosse inverno, a atmosfera no anfiteatro era abafada, beirando o insuportável. Com as pessoas amontoadas, o lugar ficava num calor infernal.

A plateia era formada por um grupo eclético de homens, alguns dos quais não eram profissionais nem estudantes de medicina.[4] Tradicionalmente, as duas primeiras fileiras de um anfiteatro cirúrgico eram ocupadas por “assistentes hospitalares”, termo que se referia àqueles que acompanhavam os cirurgiões em suas rotinas, carregando caixas com os suprimentos necessários para fazer curativos. Atrás dos assistentes ficavam os alunos, empurrando-se e cochichando uns com os outros, inquietos, além de convidados de honra e outros membros do público.

O voyeurismo médico nada tinha de novo. Surgira nos anfiteatros de anatomia mal iluminados do Renascimento, onde, diante de espectadores fascinados, os corpos de criminosos executados eram submetidos à dissecação, como um castigo adicional por seus crimes. Os presentes, munidos de ingressos, observavam os anatomistas cortarem o ventre distendido de cadáveres em decomposição, de cujos órgãos jorravam não apenas sangue, mas também o pus fétido.[5] Às vezes, as notas cadenciadas mas incongruentes de uma flauta acompanhavam a macabra demonstração. As dissecações públicas eram apresentações teatrais, uma forma de entretenimento tão popular quanto as rinhas de galo ou o açulamento de cães contra ursos aprisionados. Nem todos, porém, tinham estômago para elas. O filósofo francês Jean-Jacques Rousseau, por exemplo, disse o seguinte sobre essa experiência: “Que visão terrível é um anfiteatro de anatomia! Cadáveres fétidos, a carne lívida e purulenta, sangue, intestinos repulsivos, esqueletos medonhos, vapores pestilentos! Acreditem, não é um lugar em que eu vá para procurar diversão.”[6]

 

O anfiteatro cirúrgico do University College Hospital era mais ou menos igual aos outros da cidade. Consistia num palco parcialmente cercado por uma arquibancada semicircular, cujos degraus subiam em direção a uma grande claraboia que iluminava a área abaixo. Nos dias em que nuvens carregadas bloqueavam a luz solar, o palco era iluminado por velas grossas. No centro do aposento ficava uma mesa de madeira, manchada por sinais reveladores de carnificinas anteriores. Embaixo dela, o piso era coberto de serragem, para absorver o sangue que logo brotaria do membro amputado. Na maioria dos dias, os gritos dos que se debatiam sob a faca se misturavam numa sinfonia dissonante com os sons corriqueiros que vinham da rua: crianças rindo, gente conversando, charretes ribombando ao passar.

Na década de 1840, a cirurgia era um trabalho imundo, repleto de perigos ocultos, que deveria ser evitada a todo custo. Em função dos riscos, muitos cirurgiões se recusavam categoricamente a operar, optando, em vez disso, por restringir sua alçada ao tratamento de problemas externos, como doenças de pele e ferimentos superficiais. Os procedimentos invasivos eram muito raros, uma das razões por que tantos espectadores compareciam aos anfiteatros cirúrgicos em dias de procedimento. Em 1840, por exemplo, apenas 120 operações foram realizadas na Royal Infirmary de Glasgow.[7] A cirurgia era sempre o último recurso, realizada apenas em casos de vida ou morte.

O médico Thomas Percival recomendava aos cirurgiões que trocassem de avental e limpassem a mesa e os instrumentos entre as cirurgias, não por medida de higiene, mas para evitar “tudo que possa incitar pavor”.[8] Poucos, no entanto, seguiam o conselho. O cirurgião, usando um avental imundo de sangue, raras vezes lavava as mãos ou os instrumentos, e empestava o anfiteatro com o cheiro inconfundível de carne em putrefação, que os profissionais da área chamavam animadamente de “a boa e velha fedentina hospitalar”.

Numa época em que os cirurgiões achavam que o pus era parte natural do processo curativo, e não um sinal sinistro de sépsis, a maioria das mortes decorria de infecções pós-operatórias. Ou seja, os anfiteatros cirúrgicos eram portais para a morte. Era mais seguro fazer uma operação em casa do que num hospital, onde os índices de mortalidade eram de três a cinco vezes mais altos do que no ambiente doméstico. Ainda em 1863, Florence Nightingale declarou: “A mortalidade real nos hospitais, sobretudo naqueles em cidades grandes e populosas, é muito maior do que nos levaria a imaginar qualquer cálculo baseado na mortalidade dos mesmos tipos de doenças entre pacientes tratados fora do hospital.”[9] Ser tratado em casa, entretanto, era dispendioso.

As infecções e a imundície não eram os únicos problemas; a cirurgia era muito dolorosa. Durante séculos, as pessoas buscaram maneiras de diminuir o sofrimento nesses procedimentos. Embora o óxido nitroso tivesse sido reconhecido como um analgésico eficiente desde que o químico Joseph Priestley o havia sintetizado pela primeira vez, em 1772, o “gás hilariante” não era normalmente usado nas cirurgias, porque seus resultados não eram confiáveis. O mesmerismo — baseado no médico alemão Franz Anton Mesmer, que inventou essa técnica hipnótica na década de 1770 — também não fora aceito na prática da corrente dominante da medicina no século XVIII. Mesmer e seus seguidores achavam que, ao moverem as mãos diante dos pacientes, gerava-se um tipo de influência física sobre eles. Essa influência provocava mudanças fisiológicas positivas, que ajudavam os pacientes a sarar, e também podia imbuir as pessoas de poderes psíquicos. A maioria dos médicos não se convencia de sua eficácia.

O mesmerismo gozou de um breve ressurgimento na Grã-Bretanha dos anos 1830, quando o médico John Elliotson começou a realizar demonstrações públicas no University College Hospital nas quais duas de suas pacientes, Elizabeth e Jane O’Key, conseguiram prever o destino de outros pacientes do hospital. Sob a influência hipnótica de Elliotson, elas afirmaram ver o “Big Jacky” (a morte) pairando sobre os leitos dos que viriam a falecer. No entanto, qualquer interesse sério despertado pelos métodos de Elliotson teve curta duração. Em 1838, ao induzir as irmãs O’Key a confessarem sua fraude, o editor da revista The Lancet — o maior periódico médico do mundo — denunciou Elliotson como charlatão.

O gosto amargo desse escândalo ainda estava fresco na memória dos que compareceram ao University College Hospital na tarde de 21 de dezembro, quando o renomado cirurgião Robert Liston anunciou que testaria a eficácia do éter em seu paciente. “Senhores, hoje vamos experimentar um truque ianque para deixar os homens insensíveis!”, declarou, enquanto se dirigia ao centro do palco.[10] O silêncio desceu sobre o anfiteatro quando ele começou a falar. Tal como o mesmerismo, o uso do éter era visto como uma técnica estrangeira suspeita, usada para colocar as pessoas num estado de consciência suavizado. Era chamado de “truque ianque” por ter sido usado como anestésico geral, pela primeira vez, nos Estados Unidos. Oficialmente, porém, fora descoberto em 1275, embora seus efeitos entorpecentes só tivessem sido sintetizados em 1540, quando o botânico e químico alemão Valerius Cordus criou uma fórmula revolucionária, que envolveu o acréscimo de ácido sulfúrico ao álcool etílico. Seu contemporâneo Paracelso fez experiências com éter em galinhas e notou que, quando bebiam esse líquido, as aves caíam num sono prolongado e despertavam ilesas. Ele concluiu que a substância “acalma todo o sofrimento, sem nenhum prejuízo, e alivia todas as dores, aplaca todas as febres e previne complicações em todas as enfermidades”.[11] Mesmo assim, o éter só seria testado em humanos centenas de anos depois.

Esse momento veio em 1842, quando Crawford Williamson Long se tornou o pioneiro no uso de éter como anestésico geral ao retirar um tumor do pescoço de um paciente na cidade de Jefferson, estado da Geórgia. Infelizmente, Long só publicou os resultados de seus experimentos em 1848. Na ocasião, o dentista bostoniano William T.G. Morton já tinha ganhado fama, em setembro de 1846, ao usá-lo numa extração dentária num paciente. Uma descrição desse procedimento bem-sucedido e indolor tinha sido publicada num jornal, o que levara um cirurgião eminente a pedir que Morton o auxiliasse numa operação para retirada de um grande tumor no maxilar inferior de um paciente, no Massachusetts General Hospital.

Em 18 de novembro de 1846, o dr. Henry Jacob Bigelow escreveu sobre esse momento inovador no Boston Medical and Surgical Journal: “Faz muito tempo que um problema importante da ciência médica é conceber um método para atenuar a dor das cirurgias. Descobriu-se, finalmente, um agente eficaz para esse propósito.”[12 ] Bigelow descreveu, então, como Morton havia administrado o que chamava de “Letheon” ao paciente antes de iniciar a cirurgia. Tratava-se de um gás cujo nome era inspirado no rio Lete. Segundo a mitologia clássica, as águas do Lete faziam as almas dos mortos esquecerem sua vida terrestre. Morton, que havia patenteado a composição do gás logo depois da operação, manteve em segredo seus componentes, ocultando-os inclusive dos cirurgiões. Bigelow, no entanto, revelou ter detectado no produto o cheiro enjoativo e doce do éter. A notícia sobre essa substância milagrosa, capaz de deixar os pacientes inconscientes durante a cirurgia, espalhou-se rapidamente pelo mundo, à medida que os cirurgiões se apressavam para testar os efeitos do éter em seus pacientes.

 

Notas:

1. Arthur C. Clarke, Profiles of the Future (Londres: Victor Gollancz Ltd., 1962), p. 25 [Perfil do Futuro, Petrópolis: Vozes, col. Presença do Futuro, 1970].

2. John Flint South, Memorials of John Flint South: Twice President of the Royal College of Surgeons, and Surgeon to St. Thomas’s Hospital, collected by the Reverend Charles Lett Feltoe (Londres: John Murray, 1884), p. 27.

3. Ibid., pp. 127-28, 160.

4. Ibid., p. 127.

5. Paolo Mascagni, Anatomia universa XLIV (Pisa: Capurro, 1823), citado em Andrew Cunningham, The Anatomist Anatomis’d: An Experimental Discipline in Enlightenment Europe (Farnham, Reino Unido: Ashgate, 2010), p. 25.

6. Jean-Jacques Rousseau, “Seventh Walk”, in Reveries of the Solitary Walker, (Harmondsworth, Reino Unido: Penguin, 1979), p. 114, citado em Cunningham, The Anatomist Anatomis’d, op. cit., p. 25 [Jean-Jacques Rousseu, Os devaneios do caminhante solitário, trad., introdução e notas de Fulvia Maria Luiza Moretto, São Paulo/Brasília: Hucitec/Ed. UnB, c. 1986].

7. J.J. Rivlin, “Getting a Medical Qualification in England in the Nineteenth Century”, baseado num artigo apresentado numa reunião conjunta da Sociedade de História da Medicina de Liverpool e da Sociedade de Liverpool para a História da Ciência e da Tecnologia, 12 out. 1996. Disponível em: <www.evolve360.co.uk/data/10/docs/09/09rivlin.pdf>. Acesso em: 4 abr. 2019.

8. Thomas Percival, Medical Jurisprudence; or a Code of Ethics and Institutes, Adapted to the Professions of Physic and Surgery (Manchester, 1794), p. 16.

9. Florence Nightingale, Notes on Hospitals, 3ª ed. (Londres: Longman, Green, Longman, Roberts & Green, 1863), p. iii.

10. Citado em Peter Vinten-Johansen et al., Cholera, Chloroform, and the Science of Medicine: A Life of John Snow (Oxford: Oxford University Press, 2003), p. 111. Ver também Richard Hollingham, Blood and Guts: A History of Surgery (Londres: BBC Books, 2008) [Sangue e entranhas: A assustadora história da cirurgia, trad. Mirian Inês Ibañes, São Paulo: Geração Editorial, 2011]; Victor Robinson, Victory over Pain: A History of Anesthesia (Londres: Sigma Books, 1947), pp. 141–50; Alison Winter, Mesmerized: Powers of the Mind in Victorian Britain (Chicago: University of Chicago Press, 1998), p. 180.

11. Citado em Steve Parker, Kill or Cure: An Illustrated History of Medicine (Londres: DK, 2013), p.174.

12. Henry Jacob Bigelow, “Insensibility During Surgical Operations Producedby Inhalation”, The Boston Medical and Surgical Journal, (18 nov. 1846) p. 309.

 

(Medicina dos Horrores: a história de Joseph Lister, o homem que revolucionou o apavorante mundo das cirurgias do século XIX; tradução de Vera Ribeiro)

 

(Ilustração: foto da sala de operações da Escola de Medicina de Paris, 1890)

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