segunda-feira, 6 de novembro de 2023

O “VIAGRA ROYALE”, Jean-Noel Fabiani

 


Em medicina, uma feliz coincidência significa que uma descoberta científica ou uma invenção tecnológica foi obtida de modo “inesperado”, por um conjunto fortuito de circunstâncias, em um quadro de uma pesquisa orientada para outro fim. Sendo assim, muitas descobertas médicas acontecem por acaso, de forma imprevista ou até mesmo imprevisível. Tudo depende do observador. Ele pode deixar passar o acontecimento que acabou de observar por falta de preparo ou falta de conhecimento, e lamentaremos, portanto, sua falta de perspicácia. Ou, ao contrário, será fonte da descoberta.

“O acaso favorece apenas os espíritos preparados”, afirmou, ao que parece, o grande Pasteur, querendo dizer que a mesma observação não podia ter o mesmo sentido para um douto, cujo sistema de correlações já está bem formado, e para um ingênuo, que só pode, quando muito, manifestar seu espanto. [1]

Até para se espantar é preciso ter discernimento.

Em 1981, o bioquímico norte-americano Robert Furchgott, que pesquisava artérias de coelhos cultivadas in vitro, percebeu que essas veias podiam se dilatar quando recebiam acetilcolina – (ACh) um neurotransmissor – em contato com células musculares de sua parede interna. A essa substância misteriosa, Furchgott deu o nome de EDRF (endothelium-derived-relaxing-factor), o que em química logicamente não quer dizer nada.

Alguns anos mais tarde, depois de batalhas épicas entre pesquisadores, descobre-se que o misterioso EDRF nada mais é do que uma pequena molécula bem conhecida, o óxido nítrico ou NO, presente de forma natural no corpo humano e que tem a capacidade de sintetizar as células que revestem o interior das artérias. Isso valeu, aliás, o prêmio Nobel a Robert Furchgott, mas também desencadeou uma pesquisa clínica orientada para as doenças que causam estreitamento das artérias, na qual o laboratório Pfizer acabou ficando em lugar de destaque.

Os homens da Pfizer (Peter Dunn e Albert Wood, para não deixar de citá-los) tinham de fato desenvolvido uma molécula, o citrato de sildenafila, em Sandwich (GrãBretanha), que tinha a propriedade de aumentar a concentração de NO nas células musculares das artérias, favorecendo, portanto, sua dilatação. Desse modo, podia-se dilatar as artérias coronárias – ou seja, do coração –, tratar a angina pectoris e, talvez, prevenir os infartos do miocárdio.

Tudo parecia ir às mil maravilhas.

Em 1991, teve início, então, um estudo de fase I [2], dirigido por Peter Ellis e Nichola Terret. O estudo era clássico, seguindo um princípio simples. Os pacientes eram escolhidos por sorteio, alguns recebiam comprimidos de citrato de sildenafila, e os demais, placebo (ou seja, comprimidos inócuos), e os efeitos cardíacos obtidos nos dois grupos eram registrados. Não demorou para perceberem que os resultados eram muito decepcionantes, e que a eficácia obtida no nível das artérias do coração parecia ser muito limitada, para não dizer nula. Decidiu-se, então, interromper o estudo, e encarregaram o assessor de pesquisa clínica de recolher os envelopes que continham os compridos que não foram consumidos pelos pacientes.

Logo observaram que a maioria dos pacientes devolvia de bom grado seus comprimidos, mas aqueles que não devolviam chamaram a atenção de Peter Ellis e Nichola Terret. E – fato ainda mais estranho –, depois de revogado o anonimato, constataram que aqueles que não tinham devolvido os comprimidos eram pacientes do grupo investigacional, ou seja, do grupo que recebeu o citrato de sildenafila. Faltava saber por que os doentes se recusavam a se separar de seus preciosos comprimidos, pondo em xeque o próprio princípio do estudo científico do qual tinham participado.

Uma pesquisa trouxe a solução do enigma e pôs os pingos nos is: existia um efeito colateral inesperado. O citrato de sildenafila provocava ereções estáveis e duradouras em pacientes que, até então, tinham histórico de impotência.

Sem saber e por meio de uma feliz coincidência bastante engraçada, nossa dupla de pesquisadores tinha encontrado (enfim) a solução médica para o maior drama dos homens. Desde a aurora da humanidade, perdemos a conta das tentativas e das soluções mirabolantes oferecidas por todo tipo de charlatão: de pó de chifre de rinoceronte a extrato de testículo de tigre, passando pelos supostos efeitos do ginseng. E, às vezes, os próprios médicos davam seus pitacos, como o dr. Brown-Séquard que, em 1889, propôs a sequardina, cujo único efeito era dar dinheiro para seu inventor. Depois, nos anos 1930, Serge Voronoff, o primeiro a realizar um transplante de rim, transplantou glandes de macaco em milionários para lhes dar a ilusão de uma nova virilidade. Ainda mais grave: em 1982, em Paris, Ronald Virag, cirurgião cardíaco, propôs a utilização das propriedades vasodilatadoras da papaverina, injetando-a diretamente nos corpos cavernosos. Uma técnica eficaz, cujos preparativos eram, no mínimo, constrangedores. Porque dar uma injeção no pênis logo antes de satisfazer sua parceira demandava, muitas vezes, explicações complicadas e nada glamorosas. No ano seguinte, o fisiologista norte-americano Giles Brindley, maravilhado com as propriedades da papaverina, injetou a droga no próprio pênis, em seu quarto de hotel, durante um congresso da Sociedade Norte-Americana de Urologia em Las Vegas, e apresentou sua ereção para os colegas perante todo o auditório, chegando até a descer do púlpito e convidar os incrédulos a apalpar seu pênis... 

Mas ainda estávamos longe de obter um resultado estável e reprodutível depois da simples ingestão de um comprimido. O desafio portanto era enorme, e as expectativas dos homens (e das mulheres), infinitas. Evidentemente, depois de ter verificado a realidade e a constância desse efeito por meio de um novo estudo, a Pfizer foi logo mudando de tática. Pouco importava o infarto do miocárdio, bom mesmo era apresentar um tratamento elegante para as disfunções eréteis. Um mercado infinito, de valor inestimável para um laboratório. Foi rápido – e com milhões de dólares ao ano – que o sucesso dessas pequenas pílulas azuis se fez conhecer, sobretudo quando seu efeito foi reforçado por um nome comercial provocante como “Viagra”, uma contração de “Vigor” e “Niágara”... Que espetáculo!

A vida é assim mesmo. Não podemos lutar contra os interesses financeiros. Especialmente quando se trata de milhões de dólares... E, afinal de contas, por que não? Pelo menos, essa feliz coincidência pode ter melhorado o dia a dia de milhões de casais. Multiplicados ao infinito. Pois, como outrora previu o dr. Louis-Ferdinand Destouches, mais conhecido na literatura sob seu pseudônimo de escritor, Céline: “A vida é uma orgia que nunca termina”.[3]

 

Notas:

[1] O filósofo Gaston Bachelard assim escreveu: “O microscópio não esclarece o ignorante, ele o deixa tonto...”. (N.A.)

[2] Estudo de fase I (e II, III, IV): um estudo clínico se divide em diversas fases, que ocorrem depois dos ensaios pré-clínicos (experimentos em laboratórios e experimentos em animais). Um estudo de fase I é a preliminar de um estudo de eficácia de um medicamento. Trata-se de avaliar a tolerância e a ausência de efeitos colaterais nos sujeitos que, na maior parte das vezes, são voluntários sadios ou pacientes em impasses terapêuticos, para os quais o tratamento em estudo representa a única chance de sobrevivência. Essa fase também permite observar a cinética e o metabolismo da substância estudada dentro do corpo humano. A fase II ou estudo-piloto consiste em determinar a dose ótima do medicamento e seus eventuais efeitos colaterais. A fase III é o estudo comparativo da eficácia propriamente dita. Compara o tratamento com placebo em relação ao tratamento de referência. Muitas vezes, os grupos são bem grandes e não é raro reunirem milhares de participantes. A fase IV é o acompanhamento a longo prazo do tratamento depois de sua comercialização ter sido autorizada. Deve revelar a incidência de efeitos secundários raros ou complicações tardias.

[3] Louis-Ferdinand Céline. Voyage au bout de la nuit. Paris: Gallimard. [Viagem ao fim da noite. Trad. Rosa Freire d’Águiar. São Paulo: Cia. Das Letras, 2009.] (N.A.)

 

(A fabulosa história do hospital – da Idade Média aos dias de hoje; tradução de Lavínia Fávero)

 

(Ilustração: Fernando Botero)

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