quinta-feira, 9 de novembro de 2023

CANÇÃO DE MALLARMÉ, de Jamesson Buarque

 






História

A história sempre acaba em livro

Tudo sempre acaba em livro, Mallarmé:

Papiro palimpsesto casca de árvore

Lugar de talhar palavras

Gralhas e metáforas espalhadas pelo papel —

A história tem a idade de escrever

História

Em mais nada senão mais páginas

Aurora

De dedos rosados é uma palavra

Um cego a estribilhou na ponta da língua

Lésbia é outra palavra

Mil vezes e mais tantas vezes beijada

Catulo a cunhou no côncavo da boca

Fremindo a úvula em latim antes de Virgílio

Dido é outra palavra

E fundou um mundo —

Cartago morreu depois mas ficou em livro



Tudo sempre acaba em livro, Mallarmé:

Beatriz sabe disso

Seu nome é próprio para luz

Uma palavra acima do nono céu e clara

E claro:

Não posso pronunciar palavra a palavra

Cada palavra que me ocorre nos lábios

Mas posso um pouco mais

Posso Isabel e posso Leiria —

A invenção do mundo caravela em minha fala



Lusíada

Uma palavra ou menina

Parideira de mais palavras ou meninas no colo da língua —

Língua tem colo:

Fones brotando de óvulos

Uma fertilidade da história

A glória disso é parir mais e feminina desde o sono:

Paraguaçu deitada no desenho do lago —

“Jararaca vai te morder”

“Vai não” — diz um livro



Tudo sempre acaba em livro, Mallarmé:

Diotima Marília e Lívia

Pastoras de palavras e amor

São palavras

E somente como palavras se bastam

Os bastiões dos dias

Pela criação do verbo: sarça e carne

Ou a invenção da poesia —

Cristabel largada no vazio da floresta

A tantos passos do castelo de seu pai

E de pernas abertas

Cada metade de um livro para um lado

Ou dois prados ou dois bagos:

Bandas de laranja plantando semântica



Marabá

De olhos verdes e cabelo dourado

Uma palavra em formato de pomo:

Anajá —

Uiara que sereia meus passos

Até Cecília e seu silabário mágico

Mais palavras havia

E Dora e Hilda

E Anna cravada no coração de Rannar

De um lado a outro lado

A história sempre acaba em livro



Tudo sempre acaba em livro, Mallarmé:

Casca de árvore talhada à faca

O poema é sempre feminino —

Uma manifestação das Horas e das Graças

Madalena sorrindo no sorriso de Helena

De Jerusalém a Ílion ao resto do mundo

Palavra sempre tem formato de mulher

Por isso Deusa: minha vida mais cara

Por isso sempre palavra dá em mais palavras

Gestação e geração:

Terra livroteca casa ilha cidade —

Signos de Safo solfejando sílabas

Ou um golpe de fada suando em cima de um sapo,

Segundo um livro

Segundo um livro onde houver gente

Para cada macho há pelo menos sete mulheres

Todas aptas ao combate:

Uma combate com os lábios

Outra com a saia e outra com as sandálias

Outra com as pernas e outra com os braços

Uma combate com a cabeleira

E outra com rosas —

Sobretudo todas combatem com palavras

Por isso Deus é feminino:

Pairava sobre as águas fez a luz e se vestiu de sarça

Como antes de rijos

Demiurgos mártires santos meninos heróis e poetas

São sempre suaves —

Segundo Guevara: outro livro



Tudo sempre acaba em livro, Mallarmé:

Estão escritos na história

Péricles Felipe Alexandre e Augusto

Embora seu formato de palavra

Regravam a vida a sua vontade

Como os demais generais a gerarem:

Consentiam apenas seu nome —

O mínimo da pirâmide sempre esmagou a base:

Está escrito

Suserano vassalo colono

E clérigos no meio

Fazendo ponte para cobrar pedágio

De cima abaixo

O mais raso somente recebe necessidade

Um dia Joana, e Joana era inconsútil,

Se despiu da cabeleira de Circe

E se banhou com os porcos para ombrear varões —

Conta um livro que sua bainha era impenetrável

Sua espada nunca amolecia

E não usava escudo

Li que antes de mudar o mundo o desordenou

E morreu —

Ainda vejo em Chiquinha Arendt Lou Salomé e Aninha, a Coralina,

Seu feitio de sandálias agraçando a história

Num formato de cântico

E todo cântico tem formato de livro



Tudo sempre acaba em livro, Mallarmé:

Quando chega a idade e as dores nos ossos

Com o primeiro derrame do lado esquerdo

A história desenha um mito —

Entre os fósseis e a cadeira de balanço

A dentadura mergulha precipício abaixo

Para fecundar uma nova queda

E queda tem signo de história:

Dormem nessa hora os filhos em seu casulo ou cegueira

Mas ainda aguenta o tranco

A velha Hannan Arendt

E domina o silêncio

Mansa

Mais mansa do que criança

De sono solto



No último século vestia saias

Somente

Assinava nome de macho

Se trocou num par de calças

E escala até edifícios

Quando quer faz filhos

E ainda vive estupros latejando bigorna martelo e estribo

Ou tapa na cara ou signo da mal-falada

Segundo o prontuário de delegacias e cartórios:

Um corpo de livro



Tudo sempre acaba em livro, Mallarmé:

Era uma vez uma lua que se chamava Jaci

Se esqueceu do Sol

E foi se banhar nua nas ruas

Veio a polícia e lhe enquadrou num código —

Tudo, Jaci, acaba em livro

Inclusive são livros a jaula e o absurdo

Outra se chamava Aninha, a Coralina,

E também era uma vez

Conheceu o grito o silêncio a indiferença e o barulho

Ainda lhe restam as sandálias

O quintal com cheiro de mato de avó

E disputa com rio e igrejas roteiro turístico



Quando chega a idade e as dores nos ossos

Com o primeiro derrame do lado esquerdo

A história desenha um mito —

Vai haver atestado de óbito:

Daqui para lá para um filho

De lá para cá para o outro

E um registro em folha de livro:

Pedrinhas brotando em canteiros de terra

A hora certa da cadeira na rua

O cochilo na hora do filme

E o badalo do sino na igreja mais antiga

Lembrando que a vida pulsa em formato de sílaba



Tudo sempre acaba em livro, Mallarmé:

Não faz de conta que a história existe

Quando a idade chega

Até os pássaros sentem dor no cântico dos bicos

E os dicionários crescem nessa hora

Seu tamanho de livro na história

Ou arquipélago de palavras

Que pela semântica das bandas da laranja é a mesma coisa

Então se expira a lâmpada de um verbete

Ou se um verbete se fossiliza

Uma palavra inventa de usá-lo sem vestido

Como rapariga moça puta são ao contrário a mesma coisa:

Desígnio de livro



A história nasce galopando sobre chamas

Estende suas veias ilha ao mundo todo

Pela vagina sopra e espalha antigo fogo

Do mesmo fogo originário das palavras



O fogo queima, e disse Edmar: recusa corpo

Este axioma é quase exato e porque canta

Ala ardentias de fonemas trota e rubra

A vida e morte que rubrica todo um povo



Todos sabemos que a história não se apaga

Pétalas caem para fazer crescerem árvores

A mais e aléias a mais também até onde a carne



É cada golpe de uma fada sobre um sapo —

Longo fagote que estruge até o mais fundo

Do fim do mundo nas entranhas das idades



Conclamando o rosto dos homens em seus olhos

Toda palavra desenrola a cabeleira

Como a sereia que ao cantar domina o mundo



Tudo sempre acaba em livro, Mallarmé:

Depois de um soneto e um estrambote

A poesia cabe em tudo:

É filha das palavras e feminina

Como Dona Jaideth ou mainha

Ensinando-me ciranda e roda —

A dança é sempre fêmea e cabe em livro

Como a saia rodada de Deusa

Dançando em passo ou galope de sílabas

Para a beira do mar ou qualquer lugar

Transformando insânia em fome

O que era insânia arde em palavras

Agora e sempre no cerne ou vulva das ilhas



Ilha é livro: uma palavra

Falena feita de mulher forjando a terra

Eva Pandora Lilith Safo e mais beldades

Bem como Cléa e sua fome de fiéis

Por isso a história não desiste:

Mainha nos ouvindo disquinhos

Amarelo e azul e vermelho e verde

Histórias de fantasmas e mais folclore

E contos da saga dos Buarque —

Vovó Hilda escondida num lago

O cajado de ordem de Mãe Fana

E o sorriso de Ismênia num álbum:

Outro livro



Tudo sempre acaba em livro, Mallarmé:

A história de uma pessoa é a história do planeta

Inteiro e arde

Nasci do batuque de tambores e da transmissão

Digitalizada de dados —

Mulher em homem fazendo páginas:

Dona Isabel fez uma igreja e roseiras

Dom Dinis, as caravelas

Igreja roseira e caravela são mulheres

Inclusive é mulher a guerra

E a paz vem sempre no feminino

Em língua de elfo de libélula ou em português moderno —

O Cristo sabia disso

Por isso desposou Madalena para beata

Num madeiro

E crucificado

Segundo a Bíblia, este organismo feminino:

Outro livro





(Meditações)



(Ilustração:  Édouard Manet - Portrait de Stéphane Mallarmé, 1876)

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