quinta-feira, 28 de setembro de 2023

O ANO EM QUE EU VIREI BRANCO, de Rubens Akira Kuana

 




eu nasci em uma cidade do interior de Santa Catarina

onde até meados dos anos 2000 eu e meu pai éramos os únicos

japoneses na cidade (minha mãe descende de alemães e italianos)

desde criança eu lembro que ninguém nunca soube escrever

o nome do meu pai corretamente: Siogi, Xiogui, Chiodi

quando eu lia um recibo um bilhete uma anotação

ninguém acertava seu nome: Sioji às vezes eu ouvia

meu pai soletrar no telefone s de serpente

i de ilha o de olho j de jiboia i de ilha de novo

anos mais tarde quando eu assisti um filme de Akira Kurosawa

(Tengoku to jigoku / High and Low / Céu e Inferno)

eu aprendi que ninguém nunca acertou sequer a pronúncia de seu nome

em japonês o jota se pronuncia quase como um dê: Si-ô-di

anos mais tarde eu descubro que no Japão Sioji seria escrito como Shoji, Shouji ou Shohji

mas como filhos de imigrantes pobres meus avós fazendeiros não tinham acesso a um cartório

que compreendesse esses detalhes ou quem sabe

nem mesmo meus pobres avós soubessem como escrever o nome do meu pai

durante os anos em que cresci na cidade do interior eu também perdi o meu nome

ninguém me chamava de Rubens (meus pais me chamavam de ‘mano’)

me chamavam de: japonês, japa, japa-japa-girl, japinha, china-in-box, china (com a pronúncia em inglês mesmo)

e toda vez que ouvia esses nomes eu me sentia extremamente consciente

do meu corpo dos meus olhos do meu nariz dos meus pelos das minhas genitais

mas eu me acostumei a esse nome e esse nome passou a me definir

da mesma maneira com que um prego define um martelo

batendo batendo e batendo

foi só quando eu me mudei para Curitiba uma cidade onde há mais do que uma

família japonesa (quem diria) é que da noite para o dia as pessoas que ia conhecendo lá

passaram a me chamar de Rubens e quando eu tentava explicar para elas

podem me chamar de japa (pois esse era o meu nome até aquele momento)

elas me olhavam confusas e diziam: mas você nem é japonês

(aparentemente meus olhos não são puxados o suficiente)

foi então que eu soube que podia ser branco isto é meu corpo continuou o mesmo

mas foi então que passei a ser tratado como um branco e ter direito a um nome próprio

o ano foi 2010





(Digestão; 2014)



(Ilustração:Manabu Mabe - autorretrato, 1950)

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