domingo, 1 de outubro de 2023

A CRÔNICA DE RITA BANDOLEIRA, de Rosa Lobato de Faria

 


Andávamos sempre em bandos, disse a Rita Bandoleira. Corríamos tudo, de Coimbra para cima, evitando as cidades, pois era pelas serras e pelos matos que nos sentíamos bem, deuses da floresta, capazes de mandar nos rios e nos ventos, senhores de roubar, incendiar, matar, nadar nus nas represas até que o sangue nos saísse da pele, rir e fazer amor pela madrugada nas camas amarelas que o Outono lentamente apodrecia.

Espalhávamos o terror pelos casais, entrávamos à coronhada às portas e janelas, trazíamos os moradores para fora atados como salpicões e pendurados nas asnas dos alpendres, fazíamos neles a matança do porco. Roubávamos o pouco ou muito que havia para roubar, era mais pela excitação do medo, pela bebedeira da loucura, depois limpávamos as mãos às ervas do caminho e fugíamos nas carrinhas desengonçadas, a rir e a cantar brejeiradas com vozes roucas de devassidão.

Quando parávamos as carrinhas, porque precisávamos de correr para dar vazão àquela energia de bestas, eu aproveitava para colher arruda e urgelão roxo para a minha avó que era curandeira, levava-lhe as ervas juntamente com ramos de camélias que as japoneiras me estendiam sobre os muros das quintas.

No dia em que a minha mãe me fez nascer sem pai e fugiu logo a seguir para Espanha com um galego contrabandista, a minha avó defumou-me e leu-me nas estrias dos olhos que eu seria do Mal e nada me podia livrar daquele destino. Ainda pouco falava e já me aprontava a torcer o pescoço às galinhas da ceia ou a ajudar a esfolar os coelhos para o ensopado. Torturava os ratos que apanhava nas ratoeiras e cortava os bigodes aos gatos com a tesoura do peixe para vê-los andar aos tombos e morrer de confusão.

Aos quinze anos o chefe escolheu-me para sua companheira, de nada valeram os mau-olhados que as outras me lançaram, eu não estava apaixonada por ele mas pela sua posição, pela sua voz de comando, pela sua crueldade.

Já conhecia homens desde os doze anos quando o bando passou lá por casa fugido de um assalto e a minha avó lhes deu agasalho e comida e ainda lhas deitou as cartas e previu, para cada um deles, glória, dinheiro e morte violenta. Eles beberam a isso todo o nosso licor de cardamomo.

Os mais novos violaram-me sem cerimónia no folhelho que servia de cama ao boi e se o primeiro me aleijou, ao segundo cedi e ao terceiro pedi mais.

Fui com eles de livre vontade e o chefe prometeu e cumpriu que me levaria a visitar a velha sempre que o seu caminho de sangue passasse perto do Casal das Bruxas.

Fiquei mulher de todos, tal como as minhas companheiras Eva e Laurindinha, até àquele dia em que o chefe me escolheu só para ele, porque como ele disse, eu era a mais bonita, a mais depravada e a mais selvagem.

Chamavam-lhe o Urso, éramos o bando do Urso, conhecido em todo o norte do país e raia de Espanha e ele disse-me que agora nós os dois íamos viver à grande, comprou-me roupas em Vigo, levou-me aos melhores restaurantes onde eu ficava a olhar para as outras mesas para ver como se fazia com tanto talher e tanto copo, mas de pouco me valia, trocava tudo e ria à gargalhada, só não nos punham fora porque o olhar do Urso era dos mais ferozes e as suas notas das maiores.

Depois destas saídas à espanhola, como o Urso dizia, voltávamos à nossa paisagem de carvalhos, olmos e zimbros, cedros-do-líbano, bétulas e teixos, a matar pobres pelas encostas, velhos que escondiam pés-de-meia em buracos cosidos do enxergão.

Mas um dia tudo mudou. Andava eu há oito anos nesta existência de meliante salteadora de estradas quando, depois duma matança de pessoas e animais, nos fomos lavar ao rio. Ia eu a sair toda nua da água, dei a mão ao Urso que me puxasse para fora, quando ouvi estalar os ramos de um salgueiro e ao mesmo tempo uma luz ali à minha mão esquerda e nisto vimos, o Urso e eu, Nossa Senhora com os pés descalços, pousada como uma pomba em cima da árvore, com um manto todo branco a dizer-nos, Rita, Urso, eu venci o demónio e a vossa vida de pecado acaba hoje.

O Urso teve vergonha da minha nudez e envolveu-me na sua capa de malfeitor e foi então que ao virar-me vi que o pé da Senhora pisava numa serpe que tinha a minha cara e caí de joelhos e o Urso ao meu lado, com uma grande tremedeira e um soluçar que fazia abanar os esfondílios da margem.

Pensámos que a Senhora queria dizer que aquele era o dia da nossa morte, nenhum de nós sabia rezar mas sabíamo-nos benzer e benzemo-nos e deitámo-nos abraçados à espera da nossa hora.

Acordámos de manhã com o cantar alvoroçado dos pássaros, pensámos que tínhamos sonhado, mas o salgueiro lá estava com um ramo partido e do chão apanhei uma meia-lua de prata que até hoje nunca mais larguei de usar comigo, tanto que a minha filha nasceu com um sinal em forma de meia-lua no rosto e por isso lhe chamámos Luna de Santa Maria.

Ali jurámos naquela manhãzinha de catorze de Outubro que iríamos viver como santos e nos casaríamos na Igreja e compraríamos uma quinta de vinho e rosas, vinho para o sustento, rosas para o altar de Nossa Senhora.

O Urso chamou o bando, passou a chefia para o Idalécio, a Eva e a Laurindinha nunca me perdoaram eu ter ido viver uma vida bonita, com marido e filha, vindimas e roseiral.

Está bom de ver que quando, cinco anos mais tarde, tinha a minha Luna três aninhos, o Urso, agora senhor Domingos, morreu envenenado por se ter descuidado com o sulfato, as minhas antigas camaradas de malfeitorias deram parte de mim. O meu passado era a melhor prova de que eu tinha matado o meu marido com premeditação e requintes de malvadez. De Nossa Senhora em cima do salgueiro a treze de Outubro de mil novecentos e setenta e sete, o juiz não quis nem ouvir falar. Deu-me dezanove anos de prisão, sem apelo nem agravo.

Vim presa com alegria porque achei que era a vontade do céu, por tantos e tantos crimes que cometi e que escaparam ao julgamento dos homens. A minha filha Luna tem quase dezassete aninhos, ficou com a minha vizinha que conhecia bem o nosso viver de lavradores ordeiros e tementes a Deus.



(Romance de Cordélia)



(Ilustração: Francisco de Goya - making shot in the Sierra de Tardienta)


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