quinta-feira, 19 de outubro de 2023

COMPORTAMENTO NOS VELÓRIOS, de Julio Cortazar

 


Não vamos por causa do anis, nem porque seja preciso ir. Já terão desconfiado: vamos porque não podemos suportar as formas mais sutis da hipocrisia. A mais velha de minhas primas em segundo grau se encarrega de investigar a natureza do luto, e se for de verdade, se se chora porque o choro é a única coisa que resta a esses homens e a essas mulheres entre o cheiro de nardos e de café, então ficamos em casa e lhes fazemos companhia de longe. No máximo, minha mãe vai lá por pouco tempo e dá os pêsames em nome da família; não gostamos de impor insolentemente nossa vida alheia a esse diálogo com a sombra. Mas se da minuciosa investigação de minha prima surgir a suspeita de que num pátio coberto ou na sala foram armadas as bases da encenação, então a família veste suas melhores roupas, espera que o velório esteja no ponto e vai se apresentando aos poucos mas implacavelmente.

Em Pacífico as coisas acontecem quase sempre num pátio com vasos e música de rádio. Nessas ocasiões os vizinhos concordam em desligar o rádio, e restam somente os jasmins e os parentes, alternando-se contra as paredes. Chegamos de um em um ou de dois em dois, cumprimentamos os parentes, aos quais se reconhece facilmente porque choram mal veem alguém entrar, e nos inclinamos perante o defunto, escoltados por algum parente próximo. Uma ou duas horas depois a família está na casa mortuária, mas embora os vizinhos nos conheçam bem, agimos como se cada um de nós tivesse vindo por conta própria e quase não nos falamos. Um método preciso comanda nossos atos, escolhe os interlocutores com quem se conversa na cozinha, debaixo da laranjeira, nos quartos, no vestíbulo, e de quando em quando se sai ao pátio ou à rua para fumar, ou se dá uma volta no quarteirão para manifestar opiniões políticas ou esportivas. Não nos toma tempo demais sondar os sentimentos dos parentes mais próximos: os copinhos de cachaça, o chimarrão doce e os Particulares suaves1 são a ponte das confidências; antes da meia-noite nos sentimos seguros, podemos agir sem remorsos. Em geral minha irmã mais moça se encarrega da primeira escaramuça; sabiamente colocada aos pés do caixão, ela cobre os olhos com um lenço roxo e começa a chorar, primeiro em silêncio, empapando o lenço a um ponto incrível, depois aos soluços e ofegante e, finalmente, é atacada por um terrível ataque de choro que obriga as vizinhas a levá-la à cama preparada para tais emergências, dar-lhe água de alfazema para cheirar e consolá-la, enquanto outras vizinhas tomam conta dos parentes próximos, subitamente contagiados pela crise. Durante certo tempo fica um montão de pessoas na porta da capela ardente, perguntas e notícias em voz baixa, dar de ombros por parte dos vizinhos. Esgotados por um esforço ao qual tiveram de dedicar-se a fundo, os parentes reduzem suas manifestações e, nesse mesmo momento, minhas três primas em segundo grau desatam a chorar sem afetação, sem gritos, mas tão comovedoramente que os parentes e vizinhos sentem a emulação, compreendem que não é possível ficar assim descansando enquanto estranhos da outra quadra se afligem de tal maneira, e outra vez se unem à lamentação geral, outra vez têm de buscar lugar nas camas, abanar as velhas senhoras, afrouxar o cinto dos velhinhos convulsos. Meus irmãos e eu habitualmente esperamos este momento para entrar na sala mortuária e colocar-nos junto do caixão. Por incrível que pareça, estamos realmente aflitos, jamais podemos ouvir nossas irmãs chorarem sem que uma angústia infinita nos encha o peito e nos lembre fatos da infância, uns campos perto da Vila Albertina, um bonde que rangia ao entrar na curva da rua General Rodríguez, em Banfield, coisas assim, sempre tão tristes.

Basta ver as mãos cruzadas do defunto para que o choro nos deixe arrasados de repente, nos obrigue a cobrir o rosto, envergonhados, e somos cinco homens a chorar de verdade no velório, enquanto os parentes retêm desesperadamente a respiração para se igualarem a nós, percebendo que, custe o que custar, precisam provar que o velório é deles, que somente eles têm o direito de chorar assim nessa casa. Mas são poucos, e mentem (disso sabemos por minha prima em segundo grau, a mais velha, o que nos dá forças). Em vão eles acumulam soluços e desmaios, inutilmente os vizinhos mais solidários os confortam com seus consolos e suas reflexões, levando-os e trazendo-os para que descansem e se reintegrem na luta. Meus pais e meu tio mais velho nos substituem agora, há algo que impõe respeito na dor desses velhos que vieram da rua Humboldt, cinco quadras a contar da esquina, para velar o defunto. Os vizinhos mais coerentes começam a perder a paciência, largam os familiares para lá, vão até a cozinha beber bagaceira e fofocar; alguns parentes, extenuados por uma hora e meia de pranto ininterrupto, dormem profundamente. Nós nos revezamos em ordem, embora sem dar a impressão de nada preparado; antes das seis horas da manhã somos donos indiscutíveis do velório, a maioria dos vizinhos foi dormir em suas casas, os parentes jazem em diferentes posições e graus de inchação do rosto, a madrugada nasce no pátio. Nessa hora, minhas tias providenciam lanches reforçados na cozinha, tomamos café bem quente, olhamo-nos fervorosamente ao nos encontrarmos no vestíbulo ou nos quartos; temos algo de formigas que vão e vêm, roçando as antenas ao passar. Quando chega o carro fúnebre as disposições estão todas tomadas, minhas irmãs levam os parentes para se despedirem do falecido antes de fechar o caixão, os sustentam e confortam enquanto minhas primas e meus irmãos vão se adiantando até desalojá-los, abreviarem o último adeus e ficarem sozinhos junto do morto. Exaustos, perdidos, compreendendo vagamente mas incapazes de reagir, os parentes se deixam levar e trazer, bebem qualquer coisa que se lhes chegue aos lábios, e respondem com vagos protestos inconscientes às carinhosas solicitações de minhas primas e irmãs. Quando chega a hora de partir e a casa está cheia de parentes e amigos, uma organização invisível mas sem erros decide esse movimento, o diretor da funerária acata as ordens de meu pai, a remoção do esquife se faz de acordo com as indicações de meu tio mais velho. Uma vez ou outra os parentes chegados à última hora manifestam alguma reivindicação absurda; os vizinhos, convencidos de que tudo está correndo como deve ser, os olham escandalizados e os obrigam a calar a boca. No primeiro carro se instalam meus pais e tios, meus irmãos sobem no segundo e minhas primas condescendem em aceitar algum dos parentes no terceiro, onde se instalam embrulhadas em grandes echarpes pretas e roxas. O restante sobe onde pode, e há parentes que são obrigados a chamar um táxi. E se alguns, refrescados pela brisa matinal e pelo longo trajeto, tramam uma reconquista na necrópole, amarga é sua desilusão. Apenas chega o caixão à porta do cemitério, meus irmãos cercam o orador designado pela família ou pelos amigos do defunto, e que é facilmente reconhecível por sua cara de circunstância e pelo rolo de papel que faz volume no bolso do paletó. Apertando-lhe as mãos, empapam-lhe a lapela de lágrimas, dão-lhe tapas nos ombros com um débil som de farinha de mandioca, e o orador não consegue impedir que meu tio mais moço suba à tribuna e abra os discursos com uma oração que é sempre um modelo de verdade e discrição. Leva três minutos, refere-se exclusivamente ao defunto, ressalta-lhe as virtudes e dá conta de seus defeitos, sem tirar humanidade a nada do que diz; está profundamente emocionado e às vezes lhe custa acabar. Apenas desce, meu irmão mais velho ocupa a tribuna e se encarrega do panegírico em nome da vizinhança, enquanto o vizinho designado para essa tarefa procura abrir caminho entre minhas primas e irmãs que choram dependuradas em seu paletó. Um gesto afável mais imperioso de meu pai mobiliza o pessoal da funerária; o caixão começa a rodar suavemente e os oradores oficiais se postam ao pé da tribuna, olhando-se e espremendo os discursos em suas mãos úmidas. Geralmente não nos damos ao trabalho de acompanhar o defunto até o jazigo ou sepultura: fazemos meia-volta e saímos todos juntos, comentando as ocorrências do velório. Vemos de longe como os parentes correm desesperados para segurar algumas das cordas do esquife e brigam com os vizinhos, os quais, entretanto, tomaram conta das cordas e preferem segurá-las eles mesmos, em vez dos parentes.


(Histórias de Cronópios e de Famas; tradução de Gloria Rodriguez)

 

(Ilustração: Edvard Munch - death chamber,1896)

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