terça-feira, 19 de setembro de 2023

O PASSA-PAREDES, de Marcel Aymé

 


Havia em Montmartre, no 3º andar do 75 bis da rua Orchampt, um excelente homem chamado Dutilleul que possuía o dom singular de passar através de paredes sem ser incomodado. Ele portava um pincenês , uma pequena barbicha negra e era empregado da terceira divisão do Ministério de Registro. No inverno, ele ia para seu escritório de ônibus, e na bela estação, fazia o trajeto a pé, sob seu chapéu-coco.

Dutilleul acabava de fazer 43 anos quando teve a revelação de seu poder. Certa noite, uma breve pane elétrica o surpreendera no vestíbulo de seu pequeno apartamento de solteiro. Ele tateou um momento na escuridão e, restabelecida a corrente, encontrou-se na escada do 3º andar. Como sua porta de entrada estava trancada a chave por dentro, o incidente o fez refletir e, apesar das advertências de sua razão, decidiu entrar novamente em casa como tinha saído, passando através da parede. Essa estranha faculdade, que não responde a nenhuma de suas aspirações, não deixava de contrariá-lo um pouco, e no sábado seguinte, aproveitando a semana inglesa, foi consultar o médico do bairro para expor-lhe seu caso. O doutor pôde-se convencer que ele dizia a verdade e, após o exame, descobriu a causa do mal no endurecimento helicoidal da parede estrangulada do corpo tireóideo. Ele prescreveu que se afadigasse mais no trabalho, e à razão de dois comprimidos ao ano, a absorção do pó de píretro tetravalente, mistura de farinha de arroz e de hormônio de centauro.

Engolido o primeiro comprimido, Dutilleul guardou o medicamento na gaveta e não pensou mais nisso. Quanto à recomendação de cansar-se mais no trabalho, sua atividade de funcionário era regrada por hábitos não complacentes a nenhum excesso, e suas horas de lazer, consagradas à leitura do jornal e à sua coleção de selos, tampouco o obrigavam a um gasto insensato de energia. No início do ano, guardava intacta a capacidade de passar através de paredes, mas nunca a utilizava, salvo por descuido, sendo pouco curioso por aventuras e resistente à sedução da imaginação. Nem mesmo lhe ocorria a ideia de entrar em sua casa de outra maneira, a não ser pela porta e depois de tê-la devidamente aberto fazendo mover a maçaneta. Talvez teria envelhecido na paz de seus hábitos sem ter a tentação de colocar seus dons a prova, se um acontecimento extraordinário não viesse de repente agitar sua existência. O Sr. Mouron, seu subchefe de escritório, chamado para outras funções, foi substituído por um certo Sr. Lécuyer, que tinha a palavra breve e o bigode em escova. Desde o primeiro dia, o novo subchefe viu com maus olhos Dutilleul por portar um monóculo com corrente e uma barbicha negra, e começou a tratá-lo como uma velha coisa incômoda e um pouco asquerosa. O mais grave, porém, era que ele pretendeu introduzir em seu serviço, reformas, de um alcance considerável e feitas expressamente para perturbar a quietude de seu subordinado.

Durante vinte anos, Dutilleul começava suas cartas pela fórmula seguinte: ―Referindo-me à vossa honrada correspondência do dia tal e tendo como memorando nossa troca de cartas anteriores, tenho a honra de vos informar... Fórmula que Sr. Lécuyer pretende substituir por outra de aspecto mais americano: ―Em resposta à carta do dia tal, eu lhe informo... Dutilleul não pôde acostumar-se a essas maneiras epistolares. Ele voltava, contudo, à sua maneira tradicional com uma obstinação mecânica que lhe valeu antipatia crescente do subchefe. O ambiente do Ministério de Registro tornava-se quase pesado para ele. De manhã, entregava-se ao seu trabalho com apreensão e à noite, na cama, chegava frequentemente a meditar um quarto de hora inteira antes de encontrar o sono.

Aborrecido por esta vontade retrógrada que comprometia o sucesso de suas reformas, M. Lécuyer deportou Dutilleul para um reduto meio escuro, muito próximo ao seu escritório. Podia-se acessá-lo por uma porta baixa e estreita dando para o corredor e trazendo ainda em letras grandes a inscrição, Depósito. Dutilleul tinha aceitado de coração conformado esta humilhação sem precedente, mas em casa, lendo no seu jornal a notícia de algum feito sangrento, surpreendeu-se sonhando que M. Lécuyer era a vítima.

Certo dia, o subchefe irrompeu no reduto agitando no ar uma carta e se pôs a berrar:

― Refaça este lixo! Refaça esta inominável porcaria que desonra meu serviço! Dutilleul queria protestar, mas M. Lécuyer, em voz tonante, tratou-o de barata rotineira e antes de sair, amassando a carta que tinha na mão, jogou-a na cara de Dutilleul. Este era modesto, porém orgulhoso. Sozinho, no seu reduto, o sangue lhe esquentou e, de repente, sentiu-se atormentado por uma inspiração. Deixando seu assento entrou pela parede que separava o seu escritório do subchefe, mas entrou com prudência, de tal maneira que somente sua cabeça surgiu do outro lado. O Sr. Lécuyer sentado em sua mesa de trabalho, com uma pena ainda nervosa deslocava uma vírgula no texto de um funcionário submetido à sua aprovação, quando escutou tossir em seu escritório. Levantando os olhos, descobriu com um susto indescritível a cabeça de Dutilleul colada na parede como um troféu de caça. E esta cabeça estava viva. Através do monóculo com corrente, ela lançava sobre ele um olhar de ódio. Mais do que isso, a cabeça se pôs a falar:

― Senhor, diz ele, o senhor é um canalha, um estúpido e um moleque de rua.

Pasmo de horror, o Sr. Lécuyer não podia desprender os olhos daquela aparição. Enfim, arrancou-se de sua poltrona, saltou para o corredor e correu para o reduto. Dutilleul, com a pena na mão, estava acomodado em seu lugar habitual, em atitude pacífica e laboriosa. O subchefe o olhou longamente e, após ter balbuciado algumas palavras, voltou ao seu escritório. Bastava sentar-se que a cabeça reaparecia na parede.

― Senhor, o senhor é um canalha, um estúpido e um moleque de rua.

No decurso desse dia de trabalho, a temida cabeça apareceu vinte e três vezes na parede e, no dia seguinte, continuou no mesmo ritmo. Dutilleul, que tinha adquirido certa facilidade nesse jogo, não se contentava somente em praguejar contra o subchefe. Ele proferia ameaças obscuras gritando, por exemplo, em uma voz sepulcral, pontuada de risos verdadeiramente demoníacos:

― Bicho do mato! Bicho do mato! Pelo de gato! (risos) Ronda um calafrio a descornar qualquer corujinha-do-mato! (risos)

Ouvindo isso, o pobre subchefe tornava-se cada vez mais pálido, mais sufocado, arrepiavam-se os cabelos e escorria pelas costas um horrível suor de agonia. No primeiro dia, ele emagreceu uma libra. Na semana seguinte, começou a emagrecer rapidamente, pegou o hábito de comer sopa com o garfo e saudar militarmente os policiais. No início da segunda semana, uma ambulância veio pegá-lo em seu domicílio e levá-lo a um hospital.

Dutilleul, livre da tirania do Sr. Lécuyer, pôde voltar à suas queridas fórmulas:

―Referindo-me a vossa honrada correspondência do dia tal... Porém, estava insatisfeito. Alguma coisa reclamava uma necessidade nova e irresistível, que não era nada menos do que a necessidade de passar através das paredes. Sem dúvida poderia fazê-lo facilmente, por exemplo, em sua casa, e assim o fez. Mas, o homem que possui dons brilhantes não pode satisfazer-se por muito tempo em exercê-los num objeto medíocre. Passar através de paredes não poderia, aliás, constituir um fim em si. É o começo de uma aventura, que invoca uma conclusão, um desenvolvimento e, em suma, uma retribuição. Dutilleul compreendeu-o muito bem. Sentia em si uma necessidade de expansão, um desejo crescente de se realizar, de superar a si mesmo, e certa nostalgia que era alguma coisa como o chamado detrás da parede. Infelizmente, faltava-lhe um propósito. Procurou inspiração na leitura do jornal, particularmente nos cadernos de política e de esporte, que lhe pareciam ser atividades honradas, mas finalmente compreendendo que não ofereciam nenhuma solução às pessoas que passam através de paredes, voltou-se sobre as notícias que se revelaram mais sugestivas. O primeiro roubo ao qual se entregou teve lugar em um grande estabelecimento de crédito na margem direita do Sena. Tendo atravessado uma dezena de paredes e divisórias, adentrou em vários cofres-fortes, encheu os bolsos de notas e, antes de se retirar, assinou no local do roubo, com giz vermelho, o pseudônimo Garou-Garou , com uma forte e bonita rubrica que foi reproduzida no dia seguinte por todos os jornais. Ao final da semana, este nome Garou-Garou conheceu uma extraordinária fama. A simpatia do público dirigia-se sem reservas a este prestigioso ladrão que desafiava tão bem a polícia. Ele se destacava a cada noite por uma nova façanha executada, seja em detrimento de um banco, de uma joalheria, ou de um rico particular. Em Paris como na província, não havia mulher um pouco sonhadora que não tivesse o ardente desejo de pertencer de corpo e alma ao terrível Garou-Garou. Após o roubo do famoso diamante de Burdigala e o furto do banco municipal, que tiveram lugar na mesma semana, o entusiasmo da multidão atingiu o delírio. O ministro do Interior teve que se demitir e arrastou em sua queda o ministro dos Registros. Apesar de Dutilleul ter-se tornado um dos homens mais ricos de Paris, estava sempre pontualmente em seu escritório e falavam dele para as palmas acadêmicas. De manhã, no ministério do Registro, seu prazer era escutar os comentários que faziam os colegas sobre suas façanhas da véspera.

― Este Garou-Garou, diziam, é um homem formidável, um super-homem, um gênio.

Ao escutar tais elogios, Dutilleul ficava vermelho de embaraço e por trás do monóculo com corrente, seu olhar brilhava amigavelmente e com gratidão. Certo dia, este ambiente de simpatia deixou-o tão confiante que não acreditou poder guardar o segredo por mais tempo. Com um resto de timidez, considerou seus colegas reunidos ao redor do jornal que relatava o roubo do Banco da França e declarou com uma voz modesta.

—Vocês sabem, Garou-Garou, sou eu.

Um riso enorme e interminável acolheu a confidência de Dutilleul que recebeu, por escárnio, o cognome de Garou-Garou. À noite, na hora de deixar o ministério, ele era objeto de zombaria sem fim da parte dos seus camaradas e a vida parecia-lhe menos bela.

Alguns dias mais tarde, Garou-Garou foi apanhado por uma ronda militar noturna em uma joalheria na Rua da Paz. Ele deixou sua assinatura sobre o balcão e se pôs a cantar uma canção de bêbado despedaçando diversas vitrines com a ajuda de uma taça em ouro maciço. Ter-lhe-ia sido fácil penetrar na parede e escapar, assim, da ronda noturna, mas tudo leva a crer que ele gostaria de ser pego e provavelmente com a única finalidade de confundir seus colegas cuja incredulidade o mortificara. Estes, de fato, ficaram bem surpreendidos quando os jornais do dia seguinte publicaram na primeira página a fotografia de Dutilleul. Eles lastimaram amargamente por ter subestimado seu genial camarada e lhe prestaram uma homenagem, deixando crescer uma barbicha. Alguns, até mesmo, levados pelo remorso e admiração, tentaram lançar mão na carteira ou no mostruário de família de seus amigos e conhecidos.

Julgaram sem dúvida que o feito de se deixar prender pela polícia para causar admiração em alguns colegas mostra uma grande volubilidade, nada digna de um homem excepcional, mas a força aparente da vontade é muito pouca coisa em tal determinação. Renunciando à liberdade, Dutilleul acreditava ceder a um orgulhoso desejo de revanche, quando na realidade deslizava simplesmente sobre a ladeira de seu destino. Para um homem que passa através de paredes, não há carreira pouco arrojada se ele não experimentou, ao menos uma vez, a prisão. Quando Dutilleul adentrou a prisão de Santé, teve a impressão de ser adulado pelo destino. A espessura dos muros era para ele um verdadeiro festim. No dia seguinte ao seu encarceramento, os guardas descobriram, com assombro, que o prisioneiro tinha fixado um prego na parede de sua cela e que havia pendurado nele um relógio de ouro legítimo do diretor da prisão. Ele não pôde ou não quis revelar como obteve este objeto. O relógio foi entregue ao seu proprietário e, no dia seguinte, foi achado na cabeceira da cama de Garou-Garou com o primeiro tomo dos Três Mosqueteiros emprestado da biblioteca do diretor. O pessoal da Santé estava extremamente cansado. Os guardas se queixavam, além disso, de receber pontapés no traseiro, cuja origem era inexplicável. Parecia que as paredes tinham, não só orelhas, mas também pés. A prisão de Garou-Garou já durava uma semana, quando o diretor da prisão, entrando em uma manhã em seu escritório, encontrou sobre sua mesa a seguinte carta:

― Senhor diretor, reportando-me à nossa conversa do último dia 17 e tendo, por memorando, vossas instruções gerais de 15 de maio do ano passado, eu tenho a honra de lhe informar que vim acabar a leitura do segundo tomo dos Três Mosqueteiros e que espero escapar esta noite entre onze e vinte e cinco e onze e meia. Eu lhe peço, senhor diretor, aceitar a expressão de meu profundo respeito. Garou-Garou.

Apesar da estreita vigilância da qual foi objeto naquela noite, Dutilleul escapou às onze e meia. Ao ser conhecida pelo público, na manhã seguinte, a notícia provocou em toda parte um entusiasmo magnífico. Entretanto, tendo efetuado um novo roubo que levou ao auge da sua popularidade, Dutilleul parecia pouco preocupado em esconder-se e circulava em Montmartre sem nenhuma precaução. Três dias depois de sua fuga, ele parou na rua Caulaincourt, no café Rêve, um pouco antes do meio-dia, enquanto bebia vinho branco cítrico com os amigos.

Reconduzido à prisão e trancado a triplo ferrolho no calabouço sombrio, Garou-Garou fugiu na mesma noite e foi dormir no apartamento do diretor, no quarto de visitas. Na manhã seguinte, por volta das nove horas, ele soava a campainha para criada trazer seu café da manhã e deixou-se ser pego na cama, sem resistência, pelos guardas alertados. Enfadado, o diretor colocou um posto policial na porta do seu calabouço e o deixou a pão e água. Por volta do meio-dia, o prisioneiro foi almoçar no restaurante vizinho à prisão e, depois de ter bebido seu café, telefonou para o diretor.

— Alô! Senhor diretor, eu estou confuso, mas há pouco, na hora de sair, esqueci-me de pegar sua carteira, tanto que eu me encontro constrangido no restaurante. O senhor quer ter a bondade de mandar alguém para pagar a conta?

O diretor foi lá pessoalmente e enfureceu-se a ponto de proferir ameaças e injúrias. Atingido em seu orgulho, Dutilleul fugiu na noite seguinte e para não voltar mais. Desta vez, ele tomou a precaução de fazer a barba e substituir seu monóculo com corrente por óculos de tartaruga. Uma boina esporte e um paletó de largos xadrezes com calça de golfe terminaram de transformá-lo. Instalou-se no pequeno apartamento da avenida Junot, para onde, desde antes de sua primeira prisão, mandara transportar uma parte de sua mobília e os objetos que mais apreciava. O ruído de sua fama começava a deixá-lo. E desde sua estadia na Santé, ele estava desanimado em relação ao prazer de passar através da parede. As mais espessas, as mais orgulhosas lhe pareciam, agora, simples biombos, e sonhava entranhar-se no coração de alguma maciça pirâmide. Amadurecendo o projeto de uma viagem ao Egito, ele levava uma vida mais pacífica, dividido entre sua coleção de selos, o cinema e os longos passeios por Montmartre. Sua metamorfose era tão completa que passava calvo com óculos de tartaruga, ao lado do melhor amigo sem ser reconhecido. Somente o pintor Gen Paul, a quem não escaparia uma mudança repentina na fisionomia de um velho habitante do bairro, tinha percebido sua verdadeira identidade. Uma manhã deparou-se com Dutilleul na esquina da Rua Abreuvoir, ele não pôde deixar de lhe dizer em sua grosseira gíria:

— Diz, então, eu te vejo de Cafetão para enrolar aqueles trutas.

Isto significa mais ou menos em linguagem vulgar:

— Eu vejo que você se disfarçou de elegante para confundir os inspetores da segurança.

— Ah! murmurou Dutilleul, você me reconheceu!

Ele ficou incomodado e decidiu apressar sua partida para o Egito. Foi na tarde do mesmo dia que se apaixonou por uma formosura loura vista duas vezes na rua Lepic em quinze minutos de intervalo. Ele esqueceu imediatamente sua coleção de selos, o Egito e as pirâmides. Do seu lado, a loura o olhara com muito interesse. Não há nada que fale mais à imaginação das jovens de hoje do que calças de golfe e um par de óculos de tartaruga. Isso cheira a cineasta e faz sonhar com coquetéis e noites da Califórnia. Infelizmente, a bela ― Dutilleul foi informado disso por Gen Paul ― era casada com homem bruto e ciumento. Este marido desconfiado que levava, aliás, uma vida agitada, deixava regularmente sua mulher entre dez horas da noite e quatro da manhã, mas antes de sair, tomava a precaução de trancá-la no quarto, com duas voltas de chave, todas as janelas fechadas a cadeado.

Durante o dia, ele a vigiava estreitamente, chegando mesmo a segui-la pelas ruas de Montmartre.

― Sempre vesgo que é. É da grossa natureza de vadio que não admite galhos enfeitando sua cabeça.

Mas este aviso de Gen Paul não conseguiu inflamar Dutilleul. No dia seguinte, cruzando a jovem, na Rua Tholozé, ousou segui-la até uma leiteria e, enquanto, ela esperava sua vez de ser atendida, ele lhe disse que a amava respeitosamente e que sabia de tudo: o marido perverso, a porta trancada a chave e as janelas, mas que ele estaria nesta mesma noite, em seu quarto. A loira corou, o litro de leite tremeu na sua mão e, com os olhos molhados de ternura, ela suspirou debilmente:

― Ai de mim, senhor, é impossível.

Na noite deste dia radiante, por volta das 10 horas, Dutilleul estava de sentinela na Rua Norvins e vigiava um robusto muro, atrás do qual se encontrava uma pequena casa da qual ele avistava somente o catavento e a chaminé. Uma porta se abriu neste muro e um homem, após tê-la fechado cuidadosamente a chave atrás de si, desceu em direção à Avenida Junet. Dutilleul esperou até vê-lo desaparecer, bem longe na curva da descida, e contou ainda até dez. Então, atirou-se, entrou no muro a passo de ginasta e, sempre correndo através dos obstáculos, penetrou no quarto da bela reclusa. Ela o acolheu com embriaguez e eles se amaram até uma hora tardia.

No dia seguinte, Ditilleuil teve a contrariedade de sofrer de violentas dores de cabeça. A coisa era sem importância e ele não iria, por tão pouco, faltar a seu encontro. Entretanto, tendo, por acaso, descoberto os comprimidos espalhados no fundo da gaveta, ele tomou um de manhã e um ao meio-dia. À noite, suas dores de cabeça estavam suportáveis e a exaltação fez com que ele as esquecesse. A jovem o esperava com toda a impaciência que as lembranças da véspera haviam provocado nela, e eles se amaram, esta noite, até as três horas da manhã. Quando foi embora, Dutilleul, atravessando as divisórias e as paredes das casas, teve a impressão de uma fricção incomum nos quadris e nos ombros. Contudo, ele acreditou que não era necessário dar atenção a isso. Aliás, foi penetrando no muro que sentiu claramente uma sensação de resistência. Parecia-lhe mover-se em uma matéria ainda fluida, mas que se tornava pastosa e adquiria, a cada um de seus esforços, mais consistência. Tendo êxito ao se alojar na espessura do muro, percebeu que não avançava mais e lembrou-se com terror dos dois comprimidos que ele havia tomado durante o dia. Esses comprimidos, que ele tinha acreditado ser aspirinas continham, na realidade, o pó de píretro tetravalente prescrito pelo doutor no ano passado. O efeito dessa medicação unido a esta intensa fatiga por excesso de trabalho, manifestava-se de uma maneira súbita.

Dutilleul estava petrificado no interior do muro. Até hoje ele está lá, incorporado à pedra. Os noctâmbulos que descem a rua Norvins, na hora em que o rumor de Paris se acalma, escutam uma voz abafada que parece vir d’além túmulo e que tomam por lamentos do vento sibilante nas esquinas da Colina. É Garou-Garou Dutilleul que lamenta o fim de sua gloriosa carreira e o pesar dos amores breves demais. Certas noites de inverno, ocorre que o pintor Gen Paul, tomando sua guitarra, aventura-se, na solidão sonora da rua Norvins, para consolar com uma canção o pobre prisioneiro, e as notas, voando de seus dedos enrijecidos, penetram no coração da pedra como as gotas de luar.



(Tradução de Jacqueline Silva Cidreira)

(Ilustração: Jean Marais - Le passe-muraille, Montmartre – Paris)


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