quinta-feira, 30 de setembro de 2021

A VIDA SEXUAL DE CATHERINE M., de Mario Vargas Llosa

 



Diz a lenda que, em sua noite de núpcias, o jovem Victor Hugo fez amor oito vezes com sua esposa, a casta Adèle Foucher, que, em consequência desse recorde para o sexo varonil estabelecido pelo fogoso autor de Os Miseráveis, ficou vacinada para sempre contra esse tipo de atividades. (Sua tortuosa aventura de adúltera com o feio Saint Beuve não teve nada que ver com o prazer, mas com o despeito e a vingança.) O sábio Jean Rostand ria daquele recorde huguesco, comparando-o com as proezas que no domínio da fornicação outros espécimes realizam.

Que são, por exemplo, aquelas oito efusões consecutivas do vate romântico, comparadas com os 40 dias e 40 noites em que o sapo copula com a sapa sem se dar um só momento de pausa? Pois bem, graças a uma aguerrida francesa, a senhora Catherine Millet, os anfíbios anuros, os coelhos e outros grandes fornicadores do reino animal encontraram, na medíocre espécie humana, uma competidora capaz de se medir com eles de igual para igual, e até de derrotá-los em inúmeras cópulas.

Quem é a senhora Catherine Millet? Uma distinta crítica de arte, de 53 anos, que chefia a redação da ArtPress, em Paris, e autora de monografias sobre arte conceitual, o pintor Ives Klein, o desenhista Roger Tallon, a arte contemporânea e a crítica de vanguarda. Em 1989, foi a representante da seção francesa da Bienal de São Paulo e, em 1995, representante do Pavilhão francês da Bienal de Veneza. Sua fama no entanto é mais recente. Resulta de um ensaio sexual autobiográfico recém-publicado pela Seuil, La Vie Sexuelle de Catherine M., que tem causado notável furor e encabeça há várias semanas a lista de livros mais vendidos na França.

Direi de imediato que o ensaio da senhora Millet vale muito mais que o ridículo alvoroço que o tem promovido e, também, quem se precipite a lê-lo atraído pela auréola erótica ou pornográfica que o enfeita vai ter uma decepção. O livro não é um estimulante sexual nem uma sofisticada descrição de rituais a partir da experiência erótica, mas uma reflexão inteligente, crua, insolitamente franca, que adota às vezes o aspecto de um relatório clínico.

A autora se debruça sobre sua própria vida sexual com o rigor glacial e obsessivo desses miniaturistas que constroem barcos dentro de garrafas ou pintam paisagens na cabeça de um alfinete. Direi também que esse livro, embora interessante e corajoso, não é propriamente agradável de ler, pois a visão do sexo que ele deixa no leitor é quase tão fatigante e deprimente quanto a que deixaram em madame Victor Hugo as oito investidas maritais de sua noite nupcial.

Catherine Millet começou sua vida sexual bem tarde – aos 17 anos – para uma moça de sua geração, a da grande revolução dos costumes que maio de 1968 representou.

Mas, de imediato, começou a recuperar o tempo perdido, fazendo amor a torto e a direito, e com todos os lugares possíveis de seu corpo, a um ritmo verdadeiramente enlouquecedor, até chegar a uns números que, calculo, devem ter superado com folga aquele milhar de mulheres que, em sua autobiografia, se gabava de haver levado para a cama o concupiscente polígrafo Georges Simenon.

Insisto no valor quantitativo porque ela o faz, na extensa primeira parte de seu livro, intitulada exatamente O número, onde documenta sua predileção pelos partouzes, o sexo promíscuo, os entreveros coletivos. Nos anos 70 e 80, antes que a liberdade perdesse impulso e, graças à aids, deixasse de estar em moda em toda a Europa, a senhora Millet – que se descreve como uma mulher tímida, disciplinada, tendendo mais para o dócil, que nas relações sexuais encontrou uma forma de comunicação com seus congêneres que não lhe ocorre facilmente em outros aspectos da vida – fez amor em clubes privados, no Bois de Boulogne, à beira de rodovias, vestíbulos de prédios, bancos públicos, além de casas particulares e, alguma vez, na parte traseira de uma caminhonete na qual, com ajuda de seu amigo Eric, que organizava a fila, deu conta de dezenas de solicitantes em umas tantas horas.

Digo solicitantes porque não sei como chamar a esses companheiros de aventura da autora, fugazes e anônimos. Não clientes, claro, porque Catherine Millet, embora tenha prodigalizado seus favores com generosidade sem limites, nunca cobrou por fazê-lo. Nela o sexo tem sido sempre inclinação, esporte, rotina, prazer, mas nunca profissão ou negócio. Apesar da incontinência com que o pratica, diz que nunca foi vítima de brutalidades nem se sentiu em perigo; que, inclusive em situações que podiam chamar-se limítrofes da violência, bastou-lhe uma simples reação negativa para que os outros respeitassem sua decisão. Tem tido amantes e agora tem um marido – um escritor e fotógrafo, que acaba de publicar um álbum de nus de sua mulher -, mas um amante é alguém com quem se supõe existir uma relação um tanto estável, ao passo que a maioria dos companheiros sexuais de Catherine Millet aparece como silhuetas transitórias, tomadas e abandonadas com negligência, quase sem que mediasse um diálogo entre eles. Indivíduos sem nome, sem cara, sem história, os homens que desfilam por esse livro são, como aquelas vulvas furtivas dos livros libertinos, nada mais que umas vergas ambulantes.

Até agora, na literatura confessional, só os varões libertinos faziam assim o amor, em sequências cegas e no atacado, sem se preocupar sequer em saber com quem. Esse livro mostra – e talvez seja o que há de verdadeiramente escandaloso nele – que se enganam os que acreditavam que o sexo em cadeia, transformado em simples ginástica carnal, dissociado por completo do sentimento e da emoção, era privativo de quem usa calças compridas.

Convém destacar que Catherine Millet não faz nessas páginas o menor alarde de feminista. Não exibe sua riquíssima experiência sexual como uma bandeira reivindicatória ou uma acusação aos preconceitos e discriminações de que sofrem as mulheres no âmbito sexual. Seu testemunho está despojado de arengas e não aparece nele a menor pretensão de querer ilustrar, com o que conta, alguma verdade geral, ética, política ou social. Não, ao contrário, seu individualismo é extremado, e muito visível em seu escrúpulo de não querer tirar, de sua experiência pessoal, conclusões válidas para todo mundo, sem dúvida por não acreditar que elas existam. Então por que tornou pública, mediante uma auto autópsia sexual sem precedentes, essa intimidade que a imensa maioria de fêmeas e varões esconde sob sete chaves? Pareceria que é para ver se desta forma se entende melhor, se chega a ter a perspectiva suficiente para transformar em conhecimento, em ideias claras e coerentes, esse poço escuro de iniciativas, arrebatamentos, audácias, excessos e também confusão que, apesar da liberdade com que o assumiu, o sexo ainda é para ela.

O que mais desconcerta nessas memórias é a frieza com que estão escritas. A prosa é eficiente, empenhada em ser lúcida, com frequência abstrata. Mas a frieza não só impregna a expressão e o raciocínio. É também a matéria, o sexo, o que exala um hálito gelado, enregelante, e em muitas páginas deprimente. A senhora Millet nos garante que muitos de seus parceiros a satisfazem, a ajudam a materializar seus fantasmas, que passou bons momentos com eles. Mas de fato a saciam, a fazem gozar? A verdade é que seus orgasmos parecem com frequência mecânicos, resignados e até tristes. Ela própria o dá a entender, de modo bastante inequívoco, nas últimas páginas de seu livro, quando assinala que, apesar da diversidade das pessoas com as quais faz amor, nunca se sentiu tão realizada sexualmente quanto ao praticar (“com a pontualidade de um funcionário”) a masturbação. Não é, portanto, sempre correta aquela generalizada crença machista (agora esta adjetivação é discutível) de que, em matéria de sexo, só na variação se encontra o prazer. Que o diga a senhora Millet: nenhum de seus incontáveis parceiros de carne e osso conseguiu destronar seu fantasma invertebrado.

Esse livro confirma o que toda literatura limitada ao sexual mostra à saciedade: que o sexo, dissociado das demais atividades e funções que constituem a existência, é extremamente monótono, de um horizonte tão limitado que no fim das contas se torna desumanizante. Uma vida imantada pelo sexo, e só por ele, rebaixa essa função a uma atividade orgânica primária, não mais nobre nem agradável do que o engolir por engolir, ou o defecar. Só quando a cultura o civiliza e o carrega de emoção e paixão e o reveste de cerimônias e rituais, o sexo enriquece extraordinariamente a vida humana, e seus efeitos benfazejos se projetam por todos os aspectos da existência.

Para que esta sublimação ocorra é imprescindível, como o explicou George Bataille, que se preservem certos tabus e regras que enquadrem e freiem o sexo, de modo que o amor físico possa ser vivido – gozado – como uma transgressão. A liberdade irrestrita e a renúncia a toda teatralidade e formalismo em seu exercício, que é apresentada como uma conquista em certos enclaves do mundo ocidental, não contribuíram para enriquecer o prazer e a felicidade dos seres humanos graças ao sexo. Antes, contribuíram para banalizar e cegar, transformando físico em mera ginástica e rotina o amor, uma das fontes mais férteis e misteriosas do fenômeno humano.

Além do mais, convém não esquecer que essa liberdade sexual que se exibe com tanta eloquência no ensaio de Catherine Millet é privilégio de pequenas minorias. Ao mesmo tempo em que eu lia seu livro, aparecia na imprensa, aqui em Paris, a notícia do apedrejamento, numa província do Irã, de uma mulher que um tribunal de imãs fanáticos declarou culpada de aparecer em filmes pornográficos. Esclareçamos que “pornografia”, numa teocracia fundamentalista islâmica, consiste no fato de uma mulher mostrar seus cabelos. A culpada, de acordo com a lei corâmica, foi enterrada numa praça pública até os seios e apedrejada até a morte.


(Tradução de Magno Dadonas)



(Ilustração: Hans Bellmer)


segunda-feira, 27 de setembro de 2021

THE NEW COLOSSUS / O NOVO COLOSSO, de Emma Lazarus (*)

 



Not like the brazen giant of Greek fame,

With conquering limbs astride from land to land;

Here at our sea-washed, sunset gates shall stand

A mighty woman with a torch, whose flame

Is the imprisoned lightning, and her name

Mother of Exiles. From her beacon-hand

Glows world-wide welcome; her mild eyes command

The air-bridged harbor that twin cities frame.

“Keep, ancient lands, your storied pomp!” cries she

With silent lips. “Give me your tired, your poor,

Your huddled masses yearning to breathe free,

The wretched refuse of your teeming shore.

Send these, the homeless, tempest-tost to me,

I lift my lamp beside the golden door!”



Tradução de autoria não identificada:



Não como a fama do gigante de Bronze, da Grécia,

com suas pernas conquista, espaçadas, todas as terras,

aqui em nossos portais lavrados pelo pôr-do-sol marinho,

uma mulher poderosa, com uma tocha, cuja flama

é o relâmpago aprisionado, e seu nome, mãe de todos os Exílios.

De seu punho farol brilha a acolhida abrangente,

seus olhos meigos, comandam.

O porto, estendido nas alturas emoldurado pelas cidades gêmeas

"Guarde terras ancestrais, com sua pompa histórica!",

grita ela com lábios silenciosos, "Deem-me os cansados,

os pobres, suas massas apinhadas,

que anseiam por respirar em liberdade.

A recusa desventurada de seu porto abundante

envia a mim esses desabrigados assolados pela tempestade.

Ergo meu tocheiro ao lado do Portão Dourado.



Tradução de Ivan Eugênio da Cunha:



Não como a estátua audaz de grega fama,

Com pernas entre terras estendidas;

O nosso portão d'água se confia

À dama poderosa cuja chama

Altívola é farol e que se aclama

A Mãe dos Exilados; à que inspira,

Co'a tocha erguida, vasta boas vindas

E ao porto, deste irmão, lança esperança.



"Terra ancestral, retenha seu orgulho!"

Diz suavemente. "Dê-me seus cansados,

Suas massas sedentas de ar puro,

Miseráveis nas costas entulhados.

Entregue-os para mim, os moribundos,

Minha luz mostrará o portão dourado!"



Tradução de Nuno Guerreiro Josué:




Não como o gigante bronzeado de grega fama,

Com pernas abertas e conquistadoras a abarcar a terra

Aqui nos nossos portões banhados pelo mar e dourados pelo sol, se erguerá

Uma mulher poderosa, com uma tocha cuja chama

É o relâmpago aprisionado e seu nome

Mãe dos Exílios. Do farol de sua mão

Brilha um acolhedor abraço universal; Os seus suaves olhos

Comandam o porto unido por pontes que enquadram cidades gémeas.

“Mantenham antigas terras sua pompa histórica!” grita ela

Com lábios silenciosos “Dai-me os seus fatigados, os seus pobres,

As suas massas encurraladas ansiosas por respirar liberdade

O miserável refugo das suas costas apinhadas.

Mandai-me os sem abrigo, os arremessados pelas tempestades,

Pois eu ergo o meu farol junto ao portal dourado.



Tradução de Margarida Vale de Gato:




Não tal gigante — o de bronze e grega fama,

Cujas pernas se firmam sobre duas terras;

Aqui, onde o Sol desce e o mar se quebra,

Ao nosso portão rubro uma mulher inflama

O raio aprisionado. E ela se proclama

A mãe dos exilados; um facho enverga

Que acolhe o mundo inteiro; os brandos olhos ergue

À ponte que no porto dupla urbe irmana.

“Guardai, terras antigas, vossa intacta glória!”

É o que, muda, grita: “A mim! Pobres, estafados,

Massas aflitas que almejam liberdade,

Os que as vossas costas lançam como escória,

Os sem-abrigo que escorraça a tempestade,

A eles estendo a luz nestes portões dourados!”



(*) Poema inscrito aos pés da estátua da Liberdade. O título e as duas primeiras linhas referenciam o Colosso de Rodes, considerado uma das Sete maravilhas do mundo. A linha "your huddled masses" ("suas massas encurraladas") é em referência aos imigrantes que chegavam aos Estados Unidos pelo porto de Nova Iorque, normalmente na Ilha Ellis.



(Ilustração: Edward Moran - A estátua da Liberdade iluminando o mundo – 1886)

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

SEXO NA SENZALA: CASA-GRANDE & SENZALA ENTRE O ENSAIO E A AUTOBIOGRAFIA?, de Roberto Ventura

 






Com fuxicos danados

E chamegos safados

De mulecas fulôs

Com sinhôs!

Manuel Bandeira, Casa-Grande & Senzala



Casa-Grande & Senzala causou surpresa e espanto, quando de seu lançamento em 1933, por suas saborosas descrições dos hábitos sexuais dos senhores de engenho, patriarcas muitas vezes chegados a um sadomasoquismo. As negras e mulatas surgiam, em suas páginas, como "areia gulosa", em que os meninos brancos da classe senhorial davam início à sua precoce depravação, ao mesmo tempo que preservavam a pureza e a integridade das sinhás e sinhazinhas. "A virtude da senhora branca", escreve Freyre, "apoia-se em grande parte na prostituição da escrava negra". Tais vícios morais se deviam aos efeitos da monocultura escravista sobre a população brasileira.

Freyre foi um inovador pela importância que atribuiu ao sexo na formação da sociedade e da cultura. O historiador francês Lucien Febvre, no prefácio de 1952 à edição francesa de Casa-Grande & Senzala, já havia se referido com admiração ao importante lugar que a questão sexual ocupava no livro. O sociólogo se inspirou nos estudos psicanalíticos de Sigmund Freud, psicológicos de Havelock Ellis e antropológicos de Bronislaw Malinowski e Margaret Mead, sua colega nos tempos de estudante na Universidade de Columbia. Tal dimensão erótica e afetiva da cultura se deve ainda, segundo Enrique Larreta, um de seus biógrafos, em artigo na Folha de S. Paulo de 12 de março de 2000, à influência de ensaístas lidos na juventude, como Walter Pater, e dos esteticistas do final do século XIX, Nietzsche, Simmel, George Moore e Huysmans.

Casa-Grande & Senzala pode ser lido como uma autobiografia sexual, em que Freyre dá compreensão histórica ao seu entusiasmo pelas mulatas, procuradas, segundo ele, "pelos que desejam colher do amor físico os extremos de gozo". Sua predileção pelas mulatas se ancoraria no gosto imemorial dos colonizadores portugueses pela "mulher de cor", desde os tempos do cativeiro árabe na Península Ibérica até o latifúndio escravocrata nas plantações brasileiras, segundo o velho ditado: "Branca para casar, mulata para foder, negra para trabalhar". Ou, como dizia um senhor de engenho, citado por Freyre: "Botina e mulher só pretas".

Freyre racionaliza, em Casa-Grande & Senzala, seu gosto pelas mulatas, que revelou nas recordações de Tempo Morto e Outros Tempos (1975), ou na entrevista que deu à revista Playboy em março de 1980, em que confessou sua fixação pela mulher morena e o encantamento com a atriz Sônia Braga, que viveria no cinema e na TV os papéis da Tieta e da Gabriela de Jorge Amado.

Fala, em suas memórias, do apetite sexual pelas mulatas ternas e dengosas, sempre de posição social inferior. Tem aos 17 anos as primeiras relações com A., "diabo de mulatinha", virgem e adolescente como ele, que o introduz no sexo anal e o inicia em mulher de uma forma "oblíqua", mas "singularmente deleitosa". Conta ainda a relação que manteve por muitos anos com "a melhor das mulatas do Recife", "um monumento no gênero", que lhe fora recomendada pelo tio.

Freyre revelou ainda, na entrevista à Playboy, ter fumado maconha, que aprendeu a tragar com os pescadores alagoanos, e ter tido aos 20 anos algumas poucas e insatisfatórias aventuras homossexuais na Europa. Refere-se, de modo velado, ao seu namoro com Esme Howard Junior, presidente do Oxford Spanish Club, que reunia admiradores da cultura hispânica. Descrito por Freyre como "o mais rosado e belo dos adolescentes de Oxford", Esme era filho do embaixador inglês na Espanha, Lord Howard. Alude ainda à sua curiosidade pelos belos rapazes de Berlim, que se prostituíam devido à fome e à miséria que se abatera na Alemanha entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial.

O filósofo francês Michel Foucault comentou, na História da Sexualidade (Rio de Janeiro, Graal, 1988), que a confissão é um ritual que purifica o sujeito, que se torna digno de salvação pelo perdão de suas faltas. Freyre conta, nas memórias, como a educação protestante no Colégio Americano, no Recife, seguida de sua breve conversão à Igreja Batista, fez com que a "consciência do pecado" o perseguisse por toda vida: "Como me esquecer dessa leitura da Bíblia e desses hinos?" Espécie de "Nossa formação", que remete a Minha Formação, de Joaquim Nabuco, Casa-Grande & Senzala se converte em autobiografia sexual, em que o notável apetite priápico de seu autor ganha dimensões histórico-sociais.

Freyre faz, portanto, em Casa-Grande & Senzala, uma espécie de autoanálise, ao mostrar como sua fixação nas mulheres "de cor" constituía uma autêntica predileção nacional, já que, desde os tempos da colônia, os colonos manifestavam uma "preferência quase mórbida pelas negras e mulatas". A marca da influência negra sobre o homem brasileiro se estenderia assim da mesa à cama, da cozinha ao sexo, "da escrava ou mucama que nos embalou [e] que nos deu de mamar" à mulata "que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira sensação completa de homem". Até os padres e frades mergulhavam fundo neste "grande atoleiro de carne", composto de índias desnudas e de negras cativas, praticando o "livre arregaçar de batinas para o desempenho de funções quase patriarcais" de multiplicação da espécie. Tais relações sadomasoquistas de prazer e dominação tiveram seus efeitos não apenas na privacidade doméstica e na intimidade sexual, mas também na ordem social e política. O autoritarismo da sociedade e da política brasileiras teria, para Freyre, razões de ordem cultural, já que o sadismo, aprendido e praticado na relação com os cativos e dependentes, se transformaria em "simples e puro gosto de mando, característico de todo brasileiro nascido ou criado em casa-grande de engenho". Já os situados nos níveis inferiores da hierarquia social e sexual acabariam por tomar o "gosto [masoquista] pela dominação". Chega a afirmar, em Casa-Grande & Senzala, que "no íntimo, o que o grosso do que se pode chamar 'povo brasileiro' ainda goza é a pressão sobre ele de um governo másculo e corajosamente autocrático"! A vida política brasileira se equilibraria, portanto, entre duas místicas: de um lado, a ordem e a autoridade, decorrentes da tradição patriarcal; e, de outro, a liberdade e a democracia, bases da sociedade moderna.

Freyre foi mais escritor do que sociólogo, ainda que recorresse aos métodos de investigação social aprendidos com o antropólogo Franz Boas na Universidade de Colúmbia, nos EUA, onde fez mestrado em Ciências Políticas, Jurídicas e Sociais de 1920 a 1922, e no breve período que passou por Oxford, na Inglaterra. Procurou criar uma escrita própria, mais artística do que científica, em que as ideias e os assuntos se emendam em um contínuo, com uma aparente falta de plano que evoca a livre associação de ideias do romance psicológico.

Sua preocupação com a escrita e o vivo interesse pela literatura o levaram a escrever perfis de autores, como José de Alencar e Euclides da Cunha, e a se debruçar sobre os hábitos de leitura no Império e na República. Escreveu ainda poemas, reunidos em Talvez Poesia (1962), e duas obras ficcionais, Dona Sinhá e o Filho Padre (1964) e O Outro Amor do Dr. Paulo (1977).

Antonio Candido comentou, em "Gilberto Freyre, crítico literário", ensaio de 1962, incluído na coletânea Gilberto Freyre: Sua Ciência, Sua Filosofia, Sua Arte (Rio de Janeiro, José Olympio 1962), a fecunda diversidade do pluralismo do sociólogo, que, tomado pelo pavor de parecer técnico ou acadêmico, atacava vorazmente a realidade, disposto a esclarecê-la e mesmo transfigurá-la a qualquer preço: "quando saímos à busca do sociólogo, deslizamos para o escritor; e quando procuramos o escritor, damos com o sociólogo".

Freyre se inspirou em obras literárias, como os romances históricos dos irmãos Goncourt, que consideravam a história íntima de um povo como o "verdadeiro romance". Observou, em sua dissertação de mestrado de 1922, Vida Social no Brasil nos Meados do Século XIX (Rio de Janeiro, Recife, Artenova, Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, 1977), que pretendia reconstituir os "aspectos menos ostensivamente públicos e menos brilhantemente oficiais [...] do viver em família - inclusive o quase secreto viver das alcovas, das cozinhas".

Leu com paixão as autobiografias de Santo Agostinho e do teólogo John Newman. Baseou-se ainda na ficção memorialista de Marcel Proust, de Em Busca do Tempo Perdido, cujo narrador recria, em No Caminho de Swann, os tempos de menino na casa da tia-avó, evocados pelo gosto da madeleine embebida no chá. O antropólogo Roger Bastide, em artigo na Folha de S. Paulo, de 24 de julho de 1987, chegou a chamar Freyre de Proust da sociologia. O próprio sociólogo dizia fazer uma espécie de "sociologia proustiana", entendida como a "interpretação do que de mais íntimo se possa encontrar no passado de uma sociedade".

A trilogia de ensaios histórico-sociais, que inclui Casa-Grande & Senzala (1933), Sobrados e Mucambos (1936) e Ordem e Progresso (1959), abarca a formação e a dissolução da família patriarcal brasileira em uma narração cíclica, cujos temas e personagens surgem e ressurgem, de modo semelhante às grandes obras romanescas, como A Comédia Humana, de Balzac (1799-1850), ou o ciclo dos Rougon-Macquart, de Émile Zola (1840-1902). Tais romancistas franceses procuraram captar, de modo semelhante aos historiadores sociais, a interação, ao longo do tempo, entre o indivíduo e a sociedade. Ao escrever o prefácio para Minha Formação (1900), livro de memórias do líder abolicionista Joaquim Nabuco, cujo interesse pelo escravo viera da infância passada no engenho familiar, Freyre observou que o autor "descobriu-se somente pela metade": "Conservou para si mesmo, ou dentro de si mesmo, a outra metade do todo semi-revelado". A autobiografia de Nabuco seria assim parcial, por esconder seus excessos de reformador social ou revolucionário político, que lutara quando jovem contra os interesses de sua própria casta, a elite de brancos e de quase brancos do Império agrário.

A obra ensaística de Freyre tem uma inflexão autobiográfica tão velada quanto a de Nabuco. Muitas das motivações pessoais e sexuais de seu enfoque histórico-social se iluminam com a leitura de suas memórias em Tempo Morto e Outros Tempos. Por sua vez, os aspectos mais encobertos de sua autobiografia, sobretudo aquilo que chamaria de seu "homossexualismo transitório", se desdobram nos personagens gay de suas novelas, o filho padre de dona Sinhá e o dr. Paulo.

Freyre inovou em objeto, método e estilo. Em vez de seguir a ordenação cronológica das histórias tradicionais, ou de adotar os períodos delimitados pelos feitos do Estado ou da Igreja, investigou a família patriarcal, gerada à sombra do latifúndio e da escravidão. Usou fontes pouco convencionais, como os arquivos e as cartas de família, os inventários e os testamentos, os livros de assento e as atas das câmaras, os livros de ordens régias e as visitações do Santo Ofício, teses médicas, relatórios oficiais e estatutos de colégios, coleções de jornais, almanaques e revistas, diários e livros de viagem, que reuniu com enorme voracidade documental.

Para dar conta do impacto provocado pela Abolição da Escravatura e pela proclamação da República, recolheu, de forma pioneira, testemunhos de seus familiares e de pessoas idosas que viveram à época de tais acontecimentos, antecipando os métodos da chamada história oral. O belo desenho de Cícero Dias, com as minúcias do dia-a-dia do engenho Noruega, em Pernambuco, que serve de portal a Casa-Grande & Senzala, mostra a intenção do escritor de reconstruir, em termos plásticos e de forma pormenorizada, os hábitos e estilos do passado, praticando aquilo que o historiador italiano Carlo Ginzburg, em A Micro História e Outros Ensaios (Lisboa, Difel, 1991), define como micro história.

Freyre abordou a intimidade familiar e o cotidiano doméstico nos tempos coloniais, destacando o papel da mulher, da criança e do escravo, "novos objetos" da história, com um foco semelhante ao que seria adotado pela escola dos Annales na França. Escreveu uma história íntima da vida doméstica da família patriarcal brasileira, em que resgata o cotidiano miúdo, como a arquitetura das casas, as tradições culinárias, as práticas sexuais, os jogos infantis, as roupas e vestimentas.

Sua escrita traz marcas orais, que o aproximam dos autores modernistas. Tomou a linguagem popular como objeto, com inúmeras referências a cantigas, orações, poemas, ditados e provérbios, mas sobretudo como modelo de um estilo distendido, em que as palavras fluem com grande ritmo e sonoridade, em um tom de quase conversa, que abole a distância entre o oral e o escrito, entre o popular e o erudito. Procurou evitar o estilo oratório e retórico, com a linguagem elevada e eloquente que foi, segundo ele, o grande mal de escritores como Euclides da Cunha e Rui Barbosa, escravos às vezes das palavras e sobretudo dos adjetivos.

O estilo distendido de Freyre mimetiza a arquitetura horizontal e esparramada das casas-grandes coloniais e dos sobrados do Império, de que tanto gostava. Imita ainda seu personagem central, o mestiço ou o híbrido de raça e cultura, ao optar por uma escrita mesclada e sincrética, tanto na combinação de métodos e enfoques, quanto nos níveis de linguagem, que oscilam entre o formal e o informal, entre o demonstrativo e o obsceno.

Com uma notável capacidade de dar sabor àquilo que relata, transforma d. Pedro II, o monarca do Segundo Reinado brasileiro, no Pedro Banana, a partir de uma expressão jocosa empregada à época. O senador Tomás Nabuco de Araújo, pai de Joaquim Nabuco, que o retratou de forma magistral em Um Estadista do Império (1897-8), se torna o João Pobre, que teria melhorado de vida, ao se casar com uma moça rica. Os próprios antepassados de Freyre, os aristocráticos Wanderley, corruptela brasileira do sobrenome do fidalgo holandês Gaspar van der Lei, que se uniu por casamento aos Mello de Pernambuco, aparecem como loucos por cachaça e por mulher negra, segundo o dito popular de que não há Wanderley que não beba, Albuquerque que não minta, ou Cavalcanti que não deva...

Freyre seduz e envolve o leitor como uma Xerazade tropical ou uma fogosa mulata. Em um relato aparentemente despretensioso, encobre a exposição autoritária de ideias discutíveis sobre o processo de democratização social, que teria levado à ascensão do mestiço e do bacharel, capazes de desafiar o poder e a autoridade do patriarca. E não conclui, nunca conclui, como observou à época o crítico João Ribeiro, que apontara esse traço do ensaísta, que preferia sugerir a afirmar.

Esse caráter não-conclusivo de sua escrita o liga à tradição dos ensaístas europeus, que tanto leu na juventude, como os franceses Pascal e Montaigne, ou os ingleses Francis Bacon, Walter Pater e Arnold Bennett, em que o traço provisório e cíclico da argumentação se relaciona à incessante busca de novos vieses interpretativos a partir de detalhes insignificantes ou de pormenores do cotidiano. Foi ainda um discípulo confesso dos ensaístas espanhóis - Ganivet, Unamuno, Baroja, Ortega y Gasset - e dos místicos espanhóis São João da Cruz e Santa Teresa de Ávila. Mas se inseriu também na tradição de ensaístas brasileiros, como Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha, Manoel Bomfim, continuada por Sérgio Buarque de Holanda e Darcy Ribeiro, que pensaram, como ele, ainda que de outra forma, os dilemas do País.

A surpreendente trajetória política de Freyre, que evoluiu da esquerda democrática nos 30 e 40 para a direita autoritária nas décadas de 60 e 70, tem raízes no conservadorismo saudosista e aristocrático de sua obra, apesar do seu grau de inovação em termos de método, objeto e estilo. O método cultural de Freyre contém, portanto, o ovo da serpente: o reacionarismo exacerbado que ostentaria publicamente no fim da vida. Freyre concebeu, de forma idílica e harmônica, as relações entre senhores e escravos, centradas na autoridade benevolente dos patriarcas e no amolecimento trazido pela miscigenação, capaz de gerar uma sociedade que favoreceria a mobilidade social dos negros e mestiços. Tal ideia sofreu duras críticas por parte dos sociólogos da Universidade de São Paulo, como Fernando Henrique Cardoso e Octávio Ianni, orientados por Florestan Fernandes, que denunciaram o caráter mercantil e violento das relações sociais sob o cativeiro e criticaram a tese da democracia racial, segundo a qual não haveria preconceitos contra negros no Brasil. Florestan Fernandes mostrou, em A Integração do Negro na Sociedade de Classes (1964; São Paulo, Ática, 1978), que o País nutria um forte preconceito racial e que, ao invés de democracia, havia dominação de raça e de classe e um alto grau de assimetria e desigualdade na estrutura social e econômica.

O historiador marxista Jacob Gorender também criticou Freyre, em O Escravismo Colonial (São Paulo, Ática, 1978), por generalizar as características da escravidão doméstica, tomada como modelo geral, em que as relações entre senhores e escravos eram mais pessoais e brandas. Freyre idealizou as duras condições de trabalho dos cativos nas plantações de café e cana-de-açúcar, com jornadas de até 14 horas e curtíssima expectativa de vida. Os senhores dos engenhos e fazendas gastavam os escravos, por ser uma mão-de-obra de reposição fácil e barata pelo menos até 1850, enquanto se manteve aberta a porta do tráfico negreiro.

Gilberto Freyre começou, porém, a ser recuperado a partir dos anos 80 como um dos precursores da "nova história", pregada e praticada na França a partir da década de 1960 pelos herdeiros da Escola dos Annales. Historiadores franceses, como Fernand Braudel, se voltaram para a história da cultura material, enquanto Georges Duby e Philippe Ariès ampliavam a história da família para incluir a vida privada, a história do amor, da sexualidade, do corpo e das mulheres. Tais tópicos haviam sido discutidos três décadas antes por Freyre em seus estudos sobre o Brasil colonial.

Freyre foi portanto o antecipador das histórias da vida privada tão em voga a partir de G. Duby e P. Ariès, organizadores da obra coletiva, História da Vida Privada (São Paulo, Companhia das Letras, 1989-92; 5 v.), que deu origem à coleção dirigida por Fernando Novais, História da Vida Privada no Brasil (São Paulo, Companhia das Letras, 1997-8; 4 v.).

É tido também como pioneiro no interesse pela arquitetura e pelas mudanças nas habitações como expressões de variações na cultura e também no destaque que dava à alimentação e às tradições culinárias. Tinha sido ridicularizado, nos anos 30, ao escrever sobre os enfeites dos papéis de bolo e a disposição dos tabuleiros das quituteiras, e ao publicar Açúcar (1939), com as receitas de seus doces e sorvetes preferidos.

Com um pé na cozinha e um olhar guloso sobre os prazeres afro-brasileiros, Freyre viu a senzala do ponto de vista da casa-grande, mirou o canavial da perspectiva do alpendre. No poema O Alpendre e o Canavial, João Cabral de Melo Neto, seu primo, escreveu que do alpendre "o tempo ali pode mesmo/ ser sentido literalmente,/ e até como sabor e cheiro". Este tempo físico e palpável se torna, para João Cabral, ainda mais material do que a própria matéria e se converte em "coisa capaz de linguagem", que expressa as próprias formas:

O tempo então é mais que coisa:

é coisa capaz de linguagem,

e que ao passar vai expressando

as formas que tem de passar-se.

Escrito em uma linguagem criativa e inovadora, com métodos de pesquisa pouco ortodoxos e ideias antirracistas que desafiaram os preconceitos da época, Casa-Grande & Senzala é um grande ensaio de interpretação do Brasil. Trata-se, para Darcy Ribeiro, do maior livro já escrito no país e da única obra brasileira de importância, junto com Os Sertões de Euclides da Cunha. As inúmeras contradições da obra e de seu autor são também as da elite e do povo, cujo dualismo entre ordem e liberdade, entre autoridade e democracia, procurou retratar.



(Seminário de tropicologia: o Brasil e o século XXI: desafios e perspectivas)



(Ilustração: Di Cavalcanti - mulheres facetadas – 1968)


terça-feira, 21 de setembro de 2021

BAÚ VELHO, de Farias de Carvalho

 



No baú velho do inconsciente

mexendo papéis antigos

achei um mapa de sonhos.



Pedi emprestado ao tempo

as minhas mãos de menino,

sentei num chão de memórias

cruzei as pernas cansadas

abri a caixa de armar

falei de novo com o tempo

pedi as pedras esparsas

juntei o quebra-cabeça

bati o pó e a saudade

e comecei a jogar.



Num balet de simetria

as minhas mãos de menino

foram reconstruindo

em sonho, mapa e distância

a geografia física da infância:



Ladeira do Mercado, pedras soltas,

o mundo todo girando, rodando e rebolando

dentro da meia rasgada;

quebrando vidraças, subindo as calçadas,

o mundo todo, inteirinho,

amassado, sacudido

debaixo dos pés do time.



Trapiche antigo, molecada nua,

dos Barés, da Miranda, dos Andradas,

até os moleques que moravam mesmo

num batente qualquer - de qualquer rua.



Saltos ligeiros, corpos gotejando

pingos de rio e pingos de desejos:

fúria que vinha inconsciente e pura

nas estranhas e novas sensações

das primeiras nervosas ereções.



Quintal cheio de sol

linha zero esticada

mão ligeira melada

espalhando cerol.



Banda de asa no ar,

braços fortes colhendo.

Rabo e linha, quedooo!

bota outro medroso...



Velha praça da Igreja dos Remédios

do Monsenhor Oliveira e do Mané Sacristão;

missa chata aos domingos, logo de madrugada,

- as beatas rezando sempre a mesma oração.



Mané doido mascando

Monsenhor celebrando

os moleques roubando

o vinho e o sagrado pão.



Mas, estão faltando pedras,

como é que eu vou trabalhar?

As mãos tristes do menino

estão querendo parar

- cansadas de tentativas

cansadas de jogo inútil.



Acho que o quebra-cabeça

vai ficar mesmo incompleto.

Sempre um espaço a sobrar,

sempre uma pedra a faltar.

As mãos gastas do menino

já não podem continuar.



Estão paradas no tempo

cheias de pedras lisas,

de pedras feitas de nada

que não servem para jogar.



Estão paradas no tempo!



Ah! Tempo, tempo malvado,

tempo, você me enganou:



Pedi o jogo emprestado

pedi as mãos de menino

mas juro que não sabia

que você empresta sempre

cobrando um juro tão alto!



Vou fechar meu baú velho.

Carregue as caixas de armar.

- Leve as ruas, leve os dados,

leve as pontes, leve as bolas,

leve as torres dos castelos,

leve tudo, tempo, leve.

Só quero que você deixe,

impressas aqui neste mapa

de sonhos e de lembranças

as mãos gastas do menino

que já estão ficando longe

sujas de ocasos de infância

sujas de você também.



Mas não me cobre este juro,

você sabe muito bem

que eu já não sei mais chorar!



(Pássaro de cinza)



(Ilustração: Cândido Portinari - crianças brincando 1960)


sábado, 18 de setembro de 2021

UM GATO DE RUA GANHA UM LAR E UM NOME, de Hiro Arikawa

 



Eu sou um gato. Ainda não tenho nome.

Ouvi falar que certo gato muito famoso aqui no Japão disse isso.*

Não sei o que esse gato aí fez de tão importante, mas sei que ganho dele pelo menos nisso. Nome, eu tenho.

Agora, se eu gosto ou não desse nome, aí já são outros quinhentos. O problema fundamental é que o nome que me deram não é compatível com meu gênero.

Faz uns cinco anos que ganhei esse nome, bem na época em que atingi a maioridade. Falando nisso, parece que há várias teorias sobre a melhor maneira de converter a idade dos gatos em idade de humanos, mas todas concordam que o primeiro ano de vida de um gato equivale mais ou menos aos primeiros vinte anos de um humano.

Naquela época, meu lugar preferido para dormir era o capô de uma van prata, no estacionamento de certo prédio residencial.

Naquela van eu tinha tranquilidade para dormir, sem medo de ser enxotado com um humilhante “Xô! Xô!”. O ser humano é uma criatura arrogante demais para quem não passa de um macaco gigante que sabe andar ereto.

Deixam o carro largado, à mercê das intempéries, mas acham um absurdo se um gato sobe nele? Não faz sentido. Até porque, para nós, gatos, todas as coisas deste vasto mundo em que é possível subir são consideradas vias públicas de acesso livre.

E se você se distrai e deixa alguma pegada no capô, então? Eles surtam, te botam para correr.

Enfim, eu gostava muito de dormir no capô daquela van. Era o meu primeiro inverno, e o metal quentinho do capô, aquecido pelo sol, era como uma bolsa térmica. Perfeito para uma soneca.

Finalmente, a primavera chegou, completei minha primeira volta pelas estações. Para um gato, é uma grande sorte nascer na primavera. Nós, gatos, costumamos ter duas temporadas reprodutivas ao ano, uma na primavera e outra no outono, porém os filhotes nascidos no outono raramente sobrevivem ao inverno.

Lá estava eu, instalado confortavelmente no capô quentinho, quando senti um olhar intenso sobre mim. Entreabri os olhos para espiar…

Um homem magricelo e alto me observava dormir, sorridente.

— Você dorme sempre aqui?

Durmo. Algum problema?

— Você é muito bonitinho!

Pois é, ouço bastante isso.

— Posso te fazer um carinho?

Opa! Aí já é demais.

Com um movimento da pata, afastei a mão do homem, que fez um bico, chateado. Ué, você também ficaria incomodado se alguém viesse querendo mexer em você no meio do seu sono, não ficaria?

— De graça não vai rolar, é?

Olha só, até que você é esperto. Isso mesmo, vai ter que me recompensar por você ter interrompido meu descanso.

Levantei a cabeça, interessado. O homem revirou a sacola que segurava.

— Não tenho nada muito bom para um gato…

Qualquer coisa serve! Um gato de rua não pode ser muito exigente. Que tal esse petisquinho de vieira, hein? Acho que seria uma boa. Dei uma fungada no pacote que despontava da sacola, e o homem me deu um tapinha na cabeça, rindo sem jeito. Ei, ainda não autorizei você a encostar em mim!

— Esse aqui não pode, faz mal pra saúde. E é apimentado, ainda por cima.

Faz mal pra saúde? Você acha que um gato vadio como eu, que não sabe nem se verá o dia de amanhã, vai se preocupar com esse tipo de coisa? Minha prioridade máxima é encher a barriga aqui e agora.

Por fim, ele pegou um pedaço de frango empanado de um sanduíche, tirou a casquinha frita e me ofereceu a carne na palma da mão. Ih, tá achando que eu vou comer assim, direto da sua mão, é? Pois saiba que eu não caio nesses truques baratos de quem quer vir para cima de mim cheio de intimidades!

… Se bem que não é todo dia que me aparece uma carne assim tão fresquinha e apetitosa. Acho que posso abrir uma exceção.

Enquanto eu mastigava o frango, uns dedos se esgueiraram por baixo do meu queixo até minha orelha. Era a outra mão do homem. Ele deu uma coçadinha atrás da minha orelha, devagar. Às vezes eu permito que as pessoas me façam um cafuné em troca de comida, e aquele sujeito até que sabia o que estava fazendo…

Se me der mais, deixo você coçar embaixo do meu queixo também, viu?

Foi só roçar a cabeça na mão dele. Fácil, fácil.

— Desse jeito vai me sobrar um sanduíche só de repolho!

Ele deu um sorriso contrariado, mas pegou o último pedaço do frango, novamente tirou a parte frita e me ofereceu a carne. Por mim, podia deixar a casquinha… Tanto melhor.

Permiti que o desconhecido me afagasse um bom tempo, em troca da doação recebida, mas já estava chegando a hora de parar. Justo quando eu ia levantar a pata para afastar a mão dele… — Até mais!

Ele tirou a mão um segundo antes e foi embora, subindo os degraus de entrada do prédio.

Puxa vida, taí um sujeito que sabe a hora certa de parar.

E foi assim que nos conhecemos. Mas ainda levou um tempo até ele me dar meu nome.

Daquele dia em diante, todas as noites eu encontrava debaixo da van prata aquela comida que faz croc-croc. Sempre um punhado, na proporção de uma mão humana, atrás do pneu traseiro. O suficiente para uma refeição de gato.

Era aquele homem que tinha desaparecido dentro do prédio quem me trazia a comida, à noite. Quando ele me encontrava por ali, eu o recompensava deixando que brincasse um pouco comigo, mas, mesmo que eu não estivesse, ele deixava, respeitosamente, sua oferenda.

Às vezes outro gato encontrava a comida antes de mim, ou acontecia de o homem sair para algum lugar, e aí, por mais que eu esperasse, o croc-croc não aparecia. Mesmo assim, passei a ter uma refeição garantida praticamente todos os dias. Só que os humanos são criaturas muito caprichosas, então é melhor nunca depender totalmente deles. Um gato de rua esperto tem seus esquemas e se garante em vários lugares.

E foi assim que começou minha relação com aquele homem — éramos apenas conhecidos, mantendo uma distância segura um do outro. Entretanto, logo quis o destino que essa relação se transformasse completamente.

E esse destino doeu horrores.

Eu estava atravessando a rua, de madrugada, quando o farol de um carro veio em cheio na minha cara. Tentei correr, mas uma buzina gritou nos meus ouvidos. Aí, já era.

Levei um susto com a buzina, o que me fez demorar um segundo a mais para correr. Não fosse por isso, eu teria conseguido escapar fácil, mas a meio passo da calçada o carro me atingiu, com uma força espantosa — BAM!. Depois disso, eu não vi mais nada.

Quando dei por mim, estava caído no meio dos arbustos da calçada. Meu corpo doía de um jeito que eu nunca tinha sentido na vida. Ah, mas eu estava vivo!

Puxa vida, que situação. Tentei ficar em pé… só para despencar, com um grito. Ai, ai, ai, que dor!

Era a minha pata traseira direita que doía absurdamente.

Voltei a me deitar, sem forças, e lá fui eu lamber a ferida. Ah, não! Tinha um osso espetado.

E agora? O que eu faço? Alguém me ajude!!

Onde já se viu, um gato de rua pedir socorro? Não temos ninguém para nos acudir… Mas naquela hora eu me lembrei do homem, o que me dava a comida croc-croc toda noite.

Talvez ele me socorresse. Não sei por que pensei isso, afinal, era só um conhecido que às vezes me levava uns agrados, e de vez em quando eu permitia um cafuné em troca.

Saí andando, arrastando a pata com o osso aparecendo. A cada vez que ela raspava pelo chão, eu sentia a dor vibrar por todo o meu esqueleto. Ao longo do caminho, várias vezes perdi as forças e caí.

Não dá, desisto, não consigo dar nem mais um passo.

Não era uma grande distância até o prédio, mas o céu já estava clareando quando alcancei a van prata.

Não dá, desisto, não consigo dar nem mais um passo… Dessa vez, era verdade. Então, gritei o mais alto que consegui.

Aaaaaaaaiiiiii!!!

Gritei e gritei, sem parar, até minha voz começar a falhar. Nessas horas, juro pra vocês, parece que até os gritos ressoam nos ossos da gente, porque a dor só aumenta.

Quando eu já não conseguia mais gritar, alguém apareceu na entrada do prédio. Olhei para cima:

era o homem.

— Sabia que era você!

Ele se aproximou correndo, transtornado.

— O que aconteceu? Foi atropelado?

Odeio admitir, mas foi só eu vacilar um pouco que… — Está doendo muito? Aposto que sim.

Não faça perguntas idiotas, por favor! Anda logo, me ajuda!

— Você me chamou com um grito tão agoniado que até me acordou! Estava me chamando, não estava?

Estava, chamei até cansar! Você demorou muito, viu?

— Você sabia que podia contar comigo…

Eu ia responder na defensiva, explicar que não tinha alternativa, mas reparei que ele estava fungando.

Eu me machuco e você é que chora?

— Que bom que você se lembrou de mim!

Não choramos como os humanos, mas, não sei por quê… naquela hora, acho que entendi o que é chorar.

Quando pensei que fosse meu fim, eu me lembrei de você. Pensei que, se você viesse, daria um jeito de me salvar.

Você vai me ajudar, né? Está doendo tanto! Não aguento mais.

Dói tanto que estou com medo. O que vai ser de mim?

— Não se preocupe, agora vai ficar tudo bem.

Ele me acomodou em uma caixa de papelão forrada com uma toalha macia e me colocou dentro da van prata.

Fomos a um hospital veterinário. Vou poupá-los dos detalhes do que me aconteceu naquele lugar terrível, fonte eterna dos meus suplícios. Na primeira visita ao veterinário, qualquer animal aprende que nunca mais quer voltar ali, então não tenho por que me alongar no relato dessa experiência.

Depois disso, fiquei hospedado na casa do homem até minha pata sarar. Ele morava sozinho, e o apartamento até que era bem razoável. Ele instalou um banheiro para mim em um canto ao lado do boxe e colocou na cozinha as vasilhas para comida e água.

Pode não parecer, mas sou um gato muito inteligente e de boas maneiras. Aprendi num instante a usar o banheiro e nunca fiz sujeira no apartamento dele. Eu nem afiava as unhas nos lugares que o homem não permitiu. Vi que ele não gostava que eu afiasse nas paredes e nas colunas, então eu usava só os móveis e o tapete. Esses, ele nunca disse diretamente que eram proibidos. (Tudo bem, no começo ele me olhava feio, mas sou um gato muito perspicaz, percebo direitinho se algo é totalmente proibido ou não. Os móveis e os tapetes não eram totalmente proibidos.)

Acho que demorou uns dois meses para meu osso sarar e tirarem os pontos. Nesse tempo, eu aprendi o nome do homem. Era Satoru Miyawaki.

Satoru me chamava como lhe desse na telha: “você”, “gato”, “senhor gato”, e por aí vai. Natural, já que eu não tinha nome.

E mesmo que eu tivesse um nome, não teria como contar a Satoru, já que ele não fala minha língua. Esse negócio de os humanos falarem só a própria língua é muito inconveniente. Não sei se os senhores estão cientes, mas nesse aspecto os animais são muito mais poliglotas.

Sempre que eu pedia para sair um pouco do apartamento, Satoru fazia o mesmo discurso, com uma expressão tensa:

— Se você sair, talvez não volte mais, não é? Espere só mais um pouco, até sua pata sarar de vez.

Senão, vai acabar passando o resto da vida com esses pontos.

Eu não entendia muito bem qual era o problema de ter os tais pontos, pois já conseguia andar normalmente, era só ignorar umas pontadinhas de dor, mas Satoru ficava muito aflito, então aguentei firme e fiquei dois meses sem passear. Além do mais, se eu arranjasse briga com algum rival, manco daquele jeito, não seria legal.

Finalmente, o ferimento cicatrizou por completo.

Fui até a porta, onde sempre era barrado por aquela expressão aflita, e exigi sair. Muito obrigado por tudo, serei eternamente grato por sua dedicação.

A partir de agora vou abrir uma exceção, só para você: pode brincar comigo sempre que me encontrar em cima daquela van, mesmo que não me dê nenhum presente.

Dessa vez, a expressão de Satoru não era de preocupação, mas de tristeza. Era aquela cara de “não é totalmente proibido, mas…”.

— Você realmente gosta mais do mundo lá fora?

Ei, ei, não faz essa cara de choro. Desse jeito eu me sinto mal de ir embora! — Eu estava pensando se você não queria ser o gato aqui de casa…

Para falar a verdade, isso nunca me ocorreu. Sabe, é que eu sou um verdadeiro gato de rua, então a ideia de virar um bichinho de estimação nem me passou pela cabeça.

Meu plano era ficar aqui só até me recuperar. Mentira, não era bem isso. Eu achava que teria que ir embora.

E aí, se era para ir embora de qualquer jeito, melhor ir logo, com elegância, do que esperar me expulsarem. Temos classe, sabe?

Por que não avisou logo que eu podia morar aqui de vez?

Satoru abriu a porta, relutante, e eu me esgueirei para fora. Então parei, me voltei para ele e miei:

Vem!

E Satoru entendeu. Para um humano, ele até que tinha jeito com a língua dos gatos. Hesitou um pouco, mas acabou me acompanhando.

Era uma noite clara de luar. O bairro estava em silêncio total.

Pulei para o capô da van prata, encantado em ter minha agilidade recobrada. Depois saltei de volta para o chão e rolei pra lá e pra cá, até cansar.

Quando um carro passou perto, meu rabo se arrepiou todo. O pavor que senti ao ser lançado pelos ares, a ponto de quebrar um osso, devia ter ficado gravado no meu corpo. Sem perceber, me escondi atrás de Satoru, que ria baixinho, me olhando com ternura.

Demos uma volta pela vizinhança e voltamos para o prédio dele. Parei diante da porta do primeiro apartamento do segundo andar e miei. Abre!

Levantei a cabeça para Satoru, que sorria com os olhos marejados.

— Você voltou, foi?

Aham, voltei. Então abre logo essa porta.

— Vai morar aqui?

Vou. Mas vamos sair para dar uma volta de vez em quando, tá? E foi assim que eu me tornei o gato do Satoru.

— Quando eu era criança, tinha um gato igualzinho a você! Satoru pegou um álbum de fotos do armário e me mostrou.

— Olha só.

Era o álbum inteiro só de fotos do mesmo gato. Ah, já saquei tudo! Os humanos que fazem esse tipo de coisa são os tais “gateiros”.

O gato das fotos realmente se parecia comigo. Tinha o pelo quase todo branco, com exceção de duas manchinhas marrons na testa e o rabo preto e torto. A única diferença era que o rabo dele virava para o outro lado. Até as manchas no rosto eram idênticas.

— Ele se chamava Hachi, “oito”, por causa dessas manchas inclinadas na testa, que parecem o ideograma do número.

Nossa, mas que falta de criatividade! Oito, Nana, como no ideograma 八! Comecei a ficar preocupado com o nome que ele pretendia me dar.

E se ele me chamar de “nove”? Eu seria “Kyu”?

— Que tal Nana, de “sete”?

Opa, uma subtração? Por essa eu não esperava.

— É que seu rabo faz uma curva para o lado oposto do rabo do Hachi, e olhando de cima parece o número 7!

Ah, então a coisa tinha a ver com meu rabo…

Ei, espera aí. Nana não é nome de menina? Eu sou um macho autêntico, viu? Como é que fica isso?

— É um bom nome, hein, Nana? Sete é o número da sorte!

Miei bem alto — Ei, me ouve! —, mas Satoru só afagou meu queixo, sorrindo satisfeito.

— Achou legal também?

Não! Mas… poxa, perguntar enquanto me faz carinho é sacanagem.

Foi só eu me distrair e dar uma ronronadinha que Satoru se animou: — Que bom que você gostou!

Nããão, eu odiei!

Acabei nunca tendo a oportunidade de esclarecer o mal-entendido (o cara não parava com os cafunés!), então esse ficou sendo meu nome.

— Vamos precisar nos mudar …

Naquele prédio eram proibidos animais de estimação, Satoru tinha negociado para eu poder ficar só até minha pata sarar. Fomos morar em um apartamento no mesmo bairro. Mudar de casa por causa de um gato… Sei que eu, por razões óbvias, não deveria dizer isto, mas só um gateiro de carteirinha para fazer uma coisa dessas.

E assim começou nossa vida juntos. Satoru não deixava nada a desejar como roommate de gato, e eu não deixava nada a desejar como roommate de humano.

A gente realmente se entendeu muito bem, durante aqueles cinco anos.





* Refere-se à primeira frase de Eu sou um gato, de Natsume Soseki, uma das obras literárias mais conhecidas no Japão. (N. T.)



(Relatos de um gato viajante; tradução de Rita Kohl)



(Ilustração: Celia Pike - cat paintings)

quarta-feira, 15 de setembro de 2021

DER TOTENTANZ / A DANÇA MACABRA, de Goethe (Johann Wolfgang Goethe)

 





Der Türmer, der schaut zu Mitten der Nacht

Hinab auf die Gräber in Lage;

Der Mond, der hat alles ins Helle gebracht,

Der Kirchhof, er liegt wie am Tage.

Da regt sich ein Grab und ein anderes dann:

Sie kommen hervor, ein Weib da, ein Mann

In weißen und schleppenden Hemden.



Das reckt nun, es will sich ergötzen sogleich,

Die Knöchel zur Runde, zum Kranze,

So arm und so jung und so alt und so reich;

Doch hindern die Schleppen am Tanze:

Und weil hier die Scham nun nicht weiter gebeut,

So schütteln sich alle, da liegen zerstreut

Die Hemdelein über den Hügeln.



Nun hebt sich der Schenkel, nun wackelt das Bein,

Gebärden da gibt es vertrackte;

dann klippert's und klappert's mitunter hinein,

als schlüg' man die Hölzlein zum Takte.

Das kommt nun dem Türmer so lächerlich vor;

da raunt ihm der Schalk, der Versucher, ins Ohr:

Geh! hole dir einen der Laken!



Getan, wie gedacht! und er flüchtet sich schnell

nun hinter geheiligte Türen.

Der Mond und noch immer er scheinet so hell

zum Tanz, den sie schauderlich führen.

Doch endlich verlieret sich dieser und der,

schleicht eins nach dem andern gekleidet einher,

und husch! ist es unter dem Rasen.



Nur Einer, der trippelt und stolpert zuletzt

und tappet und grapst nach den Grüften;

doch hat kein Geselle so schwer ihn verletzt;

er wittert das Tuch in den Lüften.

Er rüttelt die Turmtür, sie schlägt ihn zurück,

geziert und gesegnet, dem Türmer zum Glück,

sie blinkt von metallenen Kreuzen.



Das Hemd muß er haben, da rastet er nicht,

da gilt auch kein langes Besinnen,

den gotischen Zierrat ergreift nun der Wicht

und klettert von Zinne zu Zinnen.

Nun ist's um den Armen, den Türmer, getan,

es ruckt sich von Schnörkel zu Schnörkel hinan,

langbeinigen Spinnen vergleichbar.



Der Türmer erbleicht, der Türmer erbebt,

Gern gäb' er ihn wieder, den Laken.

Da häckelt jetzt hat er am längsten gelebt

Den Zipfel ein eiserner Zacken.

Schon trübet der Mond sich verschwindenden Scheins,

Die Glocke, sie donnert ein mächtiges Eins,

Und unten zerschellt das Gerippe.



Tradução de Raphael Soares:



O guarda que olha, no meio da noite,

Lá para baixo, para as covas frias;

A lua, com sua luz, qual um açoite,

Tudo ilumina como dia.

As covas, uma a uma, a se mover,

Sai um homem após uma mulher

Em longas e brancas camisas.



Esticam-se todos duma vez só, os

Ossos formam a roda, em festança;

O pobre, o velho, o rico, e até os novos;

Todos são o mesmo na dança.

E agora, por não ter nenhum pudor

Se agitam todos, e começam a por

As camisas sobre a colina.



Agora ergue a coxa e a perna levanta,

São mui difíceis estes passos;

Um coro de cliques e claques canta,

E um marca com um pau os compassos.

Tudo parece, ao guarda, engraçado,

E à orelha diz o tentador desgraçado:

Vá! vá para lá vestindo um trapo.



Dito e feito, foge ele como um vento

Para trás da sacrossanta porta.

A lua ainda ilumina o relento,

E a dança assustadora mostra.

No final, quando tudo está acabado

Se arrastam, voltam a ficar trajados,

E vupt! e voltam para a grama.



Resta apenas um, trôpego, no fim,

Está a tatear as tumbas;

Não tem companheiro ferido assim,

E no ar fareja a roupa imunda.

Sacode a porta da torre e é empurrado,

O guarda alegre fica, abençoado,

Brilham as cruzes de metal.



De sua camisa ele precisa agora,

Sem nenhum longo pensamento,

Da gótica ornamentação se apossa

E ameias sobe num momento.

Agora o pobre guarda está acabado,

Cada floreio escala, aparentado

Uma aranha de patas longas.



O guarda empalidece, o guarda treme,

Queria devolver-lhe os panos.

Muitos anos de vida ele já teve

A ponta de um férreo cano.

E então a lua some com seu brilho,

Golpeia em trovejante golpe o sino

E estraçalha o esqueleto.




(Ilustração: Hieronymus Hess - the ossuary from Basel's danse of death)