quarta-feira, 2 de setembro de 2020

VOCÊ VAI TER QUE DECIDIR PARA ONDE QUER IR, de J. D. Salinger

 




Tomei meia xícara de café e comi metade de um pedaço de bolo, mais duro do que pedra. O Professor Antolini se contentou com outro drinque, e forte à beça. Se ele não tomar cuidado ainda acaba viciado. 

- Almocei com o seu pai há umas duas semanas - ele falou de repente. - Você sabia? 

- Não, não sabia. 

- Você não ignora, naturalmente, que ele anda muito preocupado com você. 

- Sei disso. Sei que anda. 

- Tudo indica que, antes de me telefonar, ele tinha recebido uma carta enorme e bastante perturbadora do seu último diretor, informando que você não estava fazendo o mínimo esforço. Matando aulas. Não preparando as lições. Em suma, sendo um completo... 

- Não matei aula nenhuma. Não havia jeito. De vez em quando eu deixava de assistir às aulas de umas duas matérias, como a tal de Expressão Oral que eu falei antes. Matar mesmo, não matei... 

Não estava com a menor vontade de discutir o troço. Minha dor de barriga tinha diminuído um pouco com o café, mas aquela dor de cabeça miserável, continuava. 

O Professor Antolini acendeu outro cigarro. Ele fumava como uma chaminé. Aí falou: 

- Francamente, Holden, não sei o que lhe dizer. 

- Eu sei. É difícil falar comigo. Compreendo. 

- Tenho a impressão de que você está caminhando para alguma espécie de queda... uma queda tremenda. Mas, honestamente, não sei de que espécie... Está me ouvindo? 

- Estou. 

A gente via logo que ele estava procurando se concentrar e tudo. 

- Talvez da espécie que faz com que a gente, aos trinta anos, se sente num bar e odeie todo mundo que entra com jeito de quem jogou futebol numa universidade. Ou, então, você conseguirá instruir-se o bastante para odiar todo mundo que diz: "É um segredo entre mim e você". Ou talvez acabe em algum escritório, atirando clipes na taquígrafa mais próxima. Não sei mesmo. Mas você entende o que estou querendo dizer, não entende? 

- Entendo - respondi. E entendia mesmo. - Mas o senhor se engana sobre esse negócio de odiar os jogadores de futebol e tudo. O senhor se engana mesmo. Não tenho raiva de muita gente. Pode ser que, de vez em quando, eu odeie alguns sujeitos durante algum tempo, como esse cara que eu conheci no Pencey, o Stradlater, ou esse outro sujeito, o Robert Ackley. De vez em quando eu tinha ódio deles, confesso, mas isso não dura muito, esse é que é o caso. Depois de algum tempo, se eu não os visse, se não vinham ao meu quarto, ou se eu passava umas duas refeições sem encontrar com eles no refeitório - chegava a sentir falta deles. É isso mesmo, chegava a ficar com saudade deles. 

O Professor Antolini ficou uns dois minutos em silêncio. Levantou-se, apanhou outro pedaço de gelo, deixou cair no copo e aí sentou de novo. Via-se que ele estava pensando. Fiquei torcendo para que ele deixasse a conversa para outro dia, em vez de continuar naquela hora, mas ele estava embalado. Em geral, as pessoas se esquentam numa discussão na hora que a gente está mais frio. 

- Está bem. Agora, escuta aqui um momento... Pode ser que eu não consiga expressar isso tão bem quanto eu gostaria, mas escrevo uma carta para você amanhã ou depois explicando tudo. Aí você vai entender direitinho. De qualquer maneira presta atenção agora. 

Começou a se concentrar outra vez, e aí disse: 

- Esta queda para a qual você está caminhando é um tipo especial de queda, um tipo horrível. O homem que cai não consegue nem mesmo ouvir ou sentir o baque do seu corpo no fundo. Apenas cai e cai. A coisa toda se aplica aos homens que, num momento ou outro de suas vidas, procuram alguma coisa que seu próprio meio não lhes podia proporcionar. Ou que pensavam que seu próprio meio não lhes poderia proporcionar. Por isso, abandonam a busca. Abandonam a busca antes mesmo de começá-la de verdade. Tá me entendendo? 

- Sim, senhor. 

- Está mesmo? 

- Estou sim. 

Levantou-se e despejou mais um pouco de bebida no copo. Aí se sentou de novo. Ficou um bocado de tempo sem dizer nada. 

- Não quero te assustar - ele disse - mas vejo você, com toda a clareza, morrendo nobremente, de uma forma ou de outra por uma causa qualquer absolutamente indigna. 

Me olhou de um jeito engraçado. 

- Se eu escrever umas palavras para você, promete que vai ler cuidadosamente? E guardar? 

- Prometo, sim - respondi. E era verdade. Até hoje guardo o papel que ele me deu. 

Foi até a escrivaninha, no outro lado da sala, e escreveu alguma coisa num pedaço de papel, sem se sentar. Aí voltou e se sentou, com o papel na mão. 

- Por estranho que pareça, isso não foi escrito por um poeta. Foi escrito por um psicanalista chamado Wilhelm Stekel. Aqui está o que ele... Você ainda está me ouvindo? 

- Claro que estou. 

- Aqui está o que ele disse: "A característica do homem imaturo é aspirar a morrer nobremente por uma causa, enquanto que a característica do homem maduro é querer viver humildemente por uma causa". 

Inclinou-se e me passou o pedaço de papel. Li imediatamente o que estava escrito, agradeci e tudo, e guardei o papel no bolso. Foi muito simpático da parte dele incomodar-se tanto por minha causa. Foi mesmo. Mas a verdade é que eu não estava realmente com muita vontade de me concentrar. Puxa, nunca me senti tão cansado, assim de repente. 

Mas ele não dava a menor impressão de cansaço. Em parte, porque estava bastante alto. 

- Acho que um desses dias - ele falou - você vai ter que decidir para onde quer ir. E aí vai ter que começar a ir para lá. E sem perda de tempo. No seu caso, não se pode perder um minuto que seja. 

Concordei com a cabeça, porque ele estava me encarando e tudo, mas não estava entendendo muito bem o que ele disse. Eu achava que sabia o que era, mas, naquele momento, não tinha certeza absoluta. Estava cansado pra diabo. 



(O apanhador no campo de centeio; tradução de Álvaro Alencar, Antônio Rocha e Jório Dauster) 



(Ilustração: Paul Bond - On The Path Of Knowing)

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