sábado, 26 de setembro de 2020
A TORTURA DE GATOS NA FRANÇA DO SÉCULO XVIII, de Robert Darnton
A tortura de animais, especialmente os gatos, era um divertimento popular em toda a Europa, no início dos Tempos Modernos. Basta examinar as Etapas da crueldade, de Hogarth, para verificar sua importância e, quando se começa a procurar, encontram-se pessoas torturando animais em toda parle. As matanças de gatos tornaram-se um tema comum na literatura, do Dom Quixote, no início do século XVII, na Espanha, ao Germinal, no fim do século XIX, na França. Longe de ser uma fantasia sádica da parte de alguns poucos autores meio loucos, as versões literárias da crueldade para com os animais expressavam uma corrente profunda da cultura popular, como mostrou Mikhail Bakhtin, em seu estudo de Rabelais. Todos os tipos de relatórios etnográficos confirmam esse ponto de vista. No dimanche des brandons, em Semur, por exemplo, as crianças costumavam amarrar gatos a varas e assá-los em fogueiras. No leu du chat, no Corpus Christi em Aix-en-Pro-vence, jogavam os animais para cima, bem alto, e eles se espatifavam no chão. Eram usadas expressões como "paciente como um gato cujas garras estão sendo arrancadas" ou "paciente como um gato cujas patas estão sendo grelhadas". Os ingleses eram igualmente cruéis. Durante a Reforma, em Londres, uma multidão protestante raspou os pelos de um gato de modo a fazê-lo parecer-se com um padre, vestiu-o com uma batina em miniatura e enforcou-o no patíbulo, em Cheapside. Seria possível enumerar muitos outros exemplos, mas a questão é clara: nada havia de incomum na matança ritual de gatos. [...]
Para entender bem esse assunto, devemos examinar as coletâneas de contos populares, superstições, provérbios e a medicina popular. O material é rico, variado e vasto, mas extremamente difícil de lidar. Embora grande parte dele remonte à Idade Média, pouca coisa pode ser datada. Foi recolhido na maior parte por folcloristas, no fim do século XIX e início do século XX, quando vigorosos produtos do folclore ainda resistiam à palavra escrita. Mas as coletâneas não possibilitam uma afirmação de que esta ou aquela prática existiu nas gráficas de Paris, em meados do século XVIII. Podemos apenas declarar que os tipógrafos viviam e respiravam numa atmosfera de costumes e crenças tradicionais, que envolvia tudo. Não era a mesma em toda parte — a França permaneceu uma colcha de retalhos de pays, em vez de uma nação unificada, até o fim do século XIX — mas, em toda parte, eram encontrados alguns temas comuns. Os mais comuns relacionavam-se com os gatos. Os franceses, no início dos Tempos Modernos, provavelmente usaram mais os gatos, em nível simbólico, do que qualquer outro animal, e usavam-no de maneiras diferentes, mas que podem ser reunidas para exame, apesar das peculiaridades regionais.
Antes de mais nada, os gatos sugeriam feitiçaria. Cruzar com um deles, à noite, praticamente em qualquer parte da França, significava arriscar-se a se deparar com o demônio, com um de seus agentes ou com uma feiticeira indo cumprir alguma malévola missão. Os gatos brancos podiam ser tão satânicos quanto os pretos, de dia ou de noite. Num encontro típico, uma camponesa de Bigorre encontrou um bonito gato branco, doméstico, que se perdera nos campos. Carregou-o de volta para a aldeia em seu avental e, assim que chegaram à casa de uma mulher suspeita de feitiçaria, o gato pulou para fora, dizendo "Merci, Jeanne”. As feiticeiras se transformavam em gatos para enfeitiçar suas vítimas. Algumas vezes, especialmente na Terça-feira de Carnaval, reuniam-se para horrendos sabás à noite. Uivavam, brigavam e copulavam de maneira terrível, sob a direção do próprio demônio, na forma de um imenso gato. Para se proteger da feitiçaria do gato, só havia um remédio, clássico: aleijá-lo. Cortando-lhe a cauda, aparando suas orelhas, quebrando-lhe uma perna, arrancando ou queimando seu pelo, a pessoa quebrava seu poder malévolo. Um gato aleijado não compareceria a um sabá nem andaria às soltas enfeitiçando ninguém. Os camponeses, frequentemente, esbordoavam gatos que cruzavam seu caminho, à noite, e descobriam, no dia seguinte, que as machucaduras haviam aparecido em mulheres que se acreditava serem bruxas — ou era isso que se dizia, na tradição de suas aldeias. Os aldeães também contavam histórias de fazendeiros que descobriam gatos estranhos em estrebarias e quebravam suas patas para salvar o gado. Invariavelmente, uma perna quebrada aparecia numa mulher suspeita, na manhã seguinte.
Os gatos tinham poder oculto, independentemente de sua associação com a feitiçaria e a arte diabólica. Podiam impedir o pão de crescer, se entrassem nas padarias, em Anjou. Podiam estragar a pescaria, se cruzassem o caminho dos pescadores, na Bretanha. Quando enterrados vivos, no Béarn, podiam limpar as urtigas de um campo. Figuravam como ingredientes básicos em todos os tipos de medicina popular, além de constarem nas infusões das feiticeiras. Para se recuperar de uma queda forte, a pessoa devia sugar todo o sangue da cauda amputada de um gato macho. Para se curar de pneumonia, bebia-se o sangue da orelha de um gato, misturado com vinho tinto. Para fazer a cólica passar, misturava-se o vinho com excremento de gato. Alguém poderia até tornar-se invisível, pelo menos na Bretanha, comendo o cérebro de um gato que acabara de ser morto, desde que ainda estivesse quente.
Havia um campo específico para o exercício do poder do gato: a casa e, particularmente, a pessoa do dono ou da dona da casa. Contos populares como "O gato de botas” enfatizavam a identificação do dono e do gato e superstições como a prática de amarrar uma fita negra em torno do pescoço de um gato cuja dona tivesse morrido. Matar um gato era trazer infelicidade para seu dono ou para a casa. Se um gato abandonasse uma casa, ou parasse de pular no leito do dono ou da dona doentes, provavelmente a pessoa morreria. Mas um gato deitado na cama de um agonizante poderia ser o demônio, esperando para levar sua alma para o inferno. Segundo um conto do século XVI, uma moça de Quintin vendeu sua alma ao demônio em troca de algumas roupas bonitas. Quando ela morreu, os carregadores do féretro não conseguiram levantar seu caixão; abriram a tampa e um gato preto pulou para fora. Os gatos podiam pôr uma casa em perigo. Muitas vezes, sufocavam bebês. Entendiam os mexericos e iam contar tudo lá fora. Mas seu poder podia ser contido ou transformado em vantagem, se a pessoa seguisse os procedimentos corretos, como passar manteiga nas patas do animal ou aleijá-lo, logo que aparecesse. Para proteger uma nova casa, os franceses encerravam gatos vivos dentro de suas paredes — um ritual muito antigo, a julgar pelos esqueletos de gatos exumados das paredes de prédios medievais.
Finalmente, o poder dos gatos concentrava-se no aspecto mais íntimo da vida doméstica: o sexo. Le chat, la chatte, le minet significam a mesma coisa, na gíria francesa, que “pussy” em inglês [1], e vêm sendo usados como obscenidades há séculos. O folclore francês atribui importância especial aos gatos como metáfora ou metonímìa sexual. Já no século XV ter gatos como bichos de estimação era recomendado para se ter sucesso na corte às mulheres. A sabedoria proverbial identificava as mulheres com os gatos: “Quem cuida bem dos gatos terá uma mulher bonita”. Se um homem amava os gatos, amaria as mulheres; e vice-versa: “Como ele ama seu gato, ama sua mulher”, dizia outro provérbio. Se não dava importância à mulher, seria possível dizer, a seu respeito: "Tem outros gatos para chicotear”. Uma mulher que queria conseguir um homem deveria evitar pisar na cauda de um gato. Isto poderia adiar o casamento por um ano — ou por sete anos, em Quimper, e por um número de anos correspondentes aos miados que o gato desse, em partes do Vale do Loire. Em toda parte, os gatos sugeriam fertilidade e sexualidade feminina. Dizia-se, comumente, das moças, que estavam “amando como uma gata”; e, quando engravidavam, tinham “deixado o gato comer o queijo”. Comer gatos, em si, poderia causar a gravidez. Moças que os comiam, davam à luz gatinhos, em muitos contos populares. No norte da Bretanha, os gatos podiam até fazer macieiras atacadas por pragas darem frutos, quando enterrados de maneira correta.
Era um pulo fácil, da sexualidade das mulheres para a traição dos homens. A gritaria dos gatos podia vir de uma orgia satânica, mas também poderiam ser gatos machos uivando, em desafio uns aos outros, quando suas companheiras estavam no cio. Mas não uivavam como gatos. Faziam desafios com os nomes de seus donos, juntamente com zombarias sexuais referentes às suas mulheres: "Reno! François! Como vai?” — “Ver sua mulher.” — “Ver minha mulher! Ha!” Então os gatos machos voavam uns sobre os outros, como os gatos de Kilkenny, e seu sabá terminava num massacre. O diálogo diferia de acordo com a imaginação dos ouvintes e o poder onomatopaico de seu dialeto mas, em geral, enfatizava a sexualidade predatória. "À noite, todos os gatos são pardos”, dizia o provérbio e a interpretação de uma coletânea de provérbios do século XVIII explicitou a insinuação sexual: "Isso quer dizer que todas as mulheres são suficientemente bonitas à noite.” Suficientemente para quê? Sedução, estupro e assassinato ecoavam no ar, quando os gatos uivavam à noite, na França do início dos Tempos Modernos. Os gritos dos gaios convocavam Katzenmusik, porque as pândegas, muitas vezes, tomavam a forma de miados debaixo da janela de um marido enganado, na véspera da Terça-feira de Carnaval, ocasião favorita para sabás dos gatos.
Nota:
[1]”Pussy" — expressão correspondente a "órgão genital feminino" (N.T.)
(O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa;tradução de Sonia Coutinho)
(Ilustração: Arthur Rackham, Le Sabbat des sorcières)
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