terça-feira, 8 de setembro de 2020

NO INÍCIO A VAGINA ERA SAGRADA, de Naomi Wolf

 




No topo do mundo, dou à luz o pai; meu útero está no meio das águas, no oceano. De lá eu expando através de todos os mundos e alcanço o céu distante com minha grandeza (…) o útero de Devi (Yoni), às vezes traduzido como “origem” ou “lar”, é seu poder criativo (…) daí emana o universo inteiro. 

Devadatta Kali, em Praise of The Goddess: The Devimahatmaya and Its Meaning 



Seriam necessários muitos volumes para explicar de forma abrangente a história da vagina somente no Ocidente; portanto, isto é necessariamente um resumo conciso, concentrando-se nas mudanças dramáticas de seu significado cultural e representação. 

No início a vagina era sagrada. Há símbolos da vagina entalhados em paredes de cavernas nos primeiros povoamentos da história. Os artefatos dos primórdios dos tempos pré-históricos da humanidade representavam vaginas. Estatuetas de terracota da Europa Central, que provavelmente representavam a fertilidade, frequentemente exibiam os órgãos genitais de forma exagerada. Não temos como saber com certeza o que essas vaginas sagradas representavam, mas historiadoras feministas, como Riane Eisler em O cálice e a espada e outras, têm certeza de que elas representavam um estado [1] primordial de matriarcado. Mas a proeminência dada às representações da vagina quando os seres humanos fizeram os primeiros trabalhos de arte sugere que a sexualidade feminina e a fertilidade eram vistas como sagradas. De 25000 a 15000 a.C., as estatuetas de Vênus — imagens de fertilidade com vulvas pronunciadas — feitas de pedra ou marfim eram abundantes na Europa, e imagens similares feitas à mão com lama do Nilo eram comuns no Egito. Sir Arthur Evans, que descobriu a civilização minoica na virada do século XX, observou que a grande quantidade dessas estatuetas da fertilidade em tantas diferentes partes do mundo sugeria que a mesma “Grande Mãe (…) cuja adoração sob diversas designações e títulos se estendia em uma grande [2] parte da Ásia Menor e nas regiões mais distantes”, era um “fato mundial”. 

Tal como consideram várias historiadoras, como Rosalind Miles em A história do mundo pela mulher , “ desde o início, quando a humanidade [3] emergia da escuridão da pré-história, Deus era uma mulher”. 

E desde o início dos registros históricos, cada cultura antiga estudada tinha uma versão da deusa do sexo, desde o épico criacionista sumério de Gilgamés , com Inanna, até as muitas versões de Ashtaroth adoradas na antiga Mesopotâmia; da deusa fenícia Astarte do século VI que surgiu do culto a Ashtaroth, seguindo para as culturas da Antiguidade Clássica, Grécia e Roma. 

Há 5 mil anos, onde é agora o Iraque, a vulva de Inanna era adorada como um local sagrado; os hinos sumérios louvavam o “colo de mel” da deusa, comparavam sua vulva a um “barco do paraíso” e celebravam a abundância que “brota de seu ventre”. A conexão de sua sexualidade com a fertilidade da terra era tão direta, que até mesmo os pés de alface eram descritos como [4] sendo os pelos pubianos da deusa. A vagina de Inanna era mágica, um local de pura santidade: “Inanna (…) inclinou-se contra a macieira/ Quando ela se inclinou contra a macieira sua vulva era maravilhosa de ver/ Regozijando-se com sua maravilhosa vulva, a jovem mulher Inanna aplaudia a si mesma/ Ela [5] disse, Eu, a Rainha do Paraíso, visitarei o Deus da Sabedoria (…)”. 

O núcleo da religião suméria era um “casamento sagrado” entre o deus pastor Tamuz e Inanna: moedas dessa época mostram Inanna com as pernas [6] bem afastadas em sagradas relações sexuais com Tamuz. As mulheres adoradoras dedicavam a Inanna vasos que simbolizavam o útero. Um texto sagrado desse período observa: 

Uma vez que a sagrada Inanna houvesse se lavado/ era aspergida com óleo de cedro./ O rei, então, orgulhosamente se aproximava de seu colo sagrado./ Ele orgulhosamente se juntava com o glorioso triângulo de Inanna./ E Tamuz, o noivo, se deitava com ela/ Apertando suavemente seus lindos seios! 

A “vagina maravilhosa” de Inanna está relacionada com a busca pela sabedoria. No final, as principais antigas religiões da deusa incluíam um consorte masculino com quem a deusa copularia em sagrado matrimônio. 

Kadesh, uma variante no arquétipo de Astarte, a deusa fenícia da natureza, da beleza e do prazer sexual, foi representada como uma mulher nua em pé nas costas de um leão, com um adorno de cabeça de lua crescente. Era frequentemente mostrada segurando cobras ou plantas de papiro na mão direita, representando o pênis; e na mão esquerda, flores de lótus, que representavam a vagina. A simbologia de serpente frequentemente acompanhava representações de deusas do sexo. Estatuetas da deusa-mãe minoica também mostravam-na com os seios nus, segurando uma cobra em cada mão. A história de Eva, tentada pela serpente no pecado original de sua sexualidade feminina vergonhosa, é uma posterior transposição negativa hebraica do sagrado simbolismo da deusa com sua serpente. 

Através de todo o Crescente Fértil, a adoração da deusa do sexo Astarte/Ashtaroth era universal no período anterior à ascensão do Deus patriarcal hebraico. A adoração da deusa nesse período identificava Astarte com a geração sexual, mas também com a sabedoria do próprio cosmo. Mas, como o judaísmo se afastou de seus antecedentes da Suméria, todos os aspectos da adoração da deusa se transformaram gradativamente em negativos, enquanto a jovem religião procurava concentrar seus seguidores [7] em uma versão masculina do Deus Único. Quando os hebreus desenvolveram o monoteísmo, fizeram-no no contexto das religiões da deusa, que haviam desenvolvido um sistema de sacerdotisas sagradas. Em certos pontos do calendário, essas sacerdotisas copulariam com adoradores masculinos, uma prática considerada um meio de trazer a ordem e a bondade do divino feminino à comunidade. Os adoradores tratavam as prostitutas sagradas com reverência e, de forma alguma, como trabalhadoras degradadas do sexo. Há muitas estelas que retratam essas sacerdotisas tendo relações sexuais, consideradas sagradas, com seus adoradores masculinos. 

A aversão hebraica a essa forma de adoração — que repetidamente tentava as tribos de Israel —, sua luta política para competir com tal religião e a consequente hostilidade à tradição da sagrada prostituta são todas evidências do horror com que os cinco livros de Moisés falam da irrestrita sexualidade feminina e particularmente sobre “prostituição”. Os hebreus reformularam o que havia sido considerado uma união divina, vista então como abominação. 

A adoração da vagina sagrada e da sexualidade feminina como metáforas para uma divindade maior expandiu-se para a Europa antes da chegada do cristianismo. Na Irlanda pré-cristã, e mesmo na era cristã, construtores entalhavam muitas Sheela na Gigs [entalhes de mulheres nuas] nas paredes externas das edificações. Nessas esculturas, mulheres nuas — representando as bruxas sagradas da mitologia celta e, como vimos, simbolizando a liminaridade — são representadas com as pernas abertas e as mãos segurando [8] os lábios vaginais abertos. Alguns historiadores de arquitetura acreditam que mesmo as grandes pedras pontiagudas que formam as entradas das catedrais europeias medievais incorporam o imaginário vaginal dessa tradição pré-cristã. (Na verdade, fiquei espantada uma vez, enquanto vagava pela pacífica e tradicionalmente sagrada ilha de Iona, nas Hébridas escocesas, quando olhei para a parte de cima da parede exterior de um antigo convento e vi lábios vaginais grandes e elegantes esculpidos na parede de pedra do convento, sem nada em torno deles.) Mas as deusas do sexo não eram só feitas de doçura e luz: em cada cultura que adorava a deusa, embora esta tivesse um aspecto majestoso e sedutor, também trazia um lado negro e potencialmente destruidor. Muitas culturas têm uma versão do que os antropólogos chamam de “vagina dentata ”. Isso significa, literalmente, “vagina dentada”. Em Teogonia , por exemplo, o poeta grego Hesíodo descreve o deus Cronos, ainda por nascer, estendendo a mão do ventre de sua mãe para castrar seu pai, Urano. Na mitologia hindu, o demônio Adi, na forma da deusa Parvati, tem dentes na vagina. O autor Erich Neumann, em seu relato da adoração da deusa, A grande mãe, identifica o tema da vagina dentada na mitologia indígena norte-americana, na qual “um peixe carnívoro [9] habita a vagina da Terrível Mãe”. Os mitos inuítes também descrevem mulheres com cabeça de cachorro onde deveria estar a vagina. A associação arquetípica e universal (normalmente estabelecida pelos homens) da vagina com a boca torna a vagina dentada um símbolo universal e atemporal da ansiedade masculina quanto à deglutição e aniquilação por uma mãe ameaçadora — tão universal, que Sigmund Freud explorou esse símbolo em [10] Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Essas imagens de vagina dentada não refletem uma aversão pessoal ao órgão humano, creio eu; pelo contrário, são imagens arquetípicas de um equilíbrio necessário para a reverência pelos poderes da mulher de dar a vida. Elas abordam o lado negro inevitável da deusa reconhecendo que a destruição é a outra face da geração, que a encarnação — o ventre, o canal do nascimento — é um portal para o ser, mas que também, inevitavelmente, leva à morte. 

Notas: 

1. Riane Eisler, The Chalice and the Blade: Our History, Our Future (Nova Iorque: HarperOne, 1988), 51. [Edição brasileira: O cálice e a espada; São Paulo, Palas Athena, 2008.] 

2. Veja J. A. MacGillivray, Minotaur: Sir Arthur Evans and the Archaeology of the Minoan Myth (Nova Iorque: Hill and Wang, 2000). 

3. Rosalind Miles, The Women’s History of the World (Londres: Paladin Books, 1989), 34-37. [Edição brasileira: A história do mundo pela mulher; Rio de Janeiro, LTC, 1989.]↵ 

4. Asia Shepsut, Journey of the Priestess: The Priestess Traditions of the Ancient World (Nova 

Iorque: HarperCollins, 1993), 62-79. 

5. Ib., 16. 6. Ib., 72. 

7. Ib., 69. 

8. Catherine Blackledge, The Story of V: A Natural History of Female Sexuality (New Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 2004), 30. 

9. Erich Neumann, The Great Mother: Analysis of an Archetype (Princeton, NJ: Princeton University Press), 168. [Edição brasileira: A grande mãe; São Paulo, Cultrix, 1996.] 

10. Sigmund Freud, “Three Essays on The Theory of Sexuality”, The Freud Reader, ed. Peter Gay (Nova Iorque: W. W. Norton, 1989), 239. [Edição brasileira: Três ensaios sobre a teoria da sexualidade; Rio de Janeiro, Imago, 1997.] 



(Vagina, uma biografia; tradução de Renata S. Laureano) 



(Ilustração: Anacreonte Fongiq - vulva flower)



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