quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

SER LÍRICO, de Emil Cioran


Por que não podemos morar isolados em nós mesmos? Por que nós perseguimos a expressão e a forma, procurando esvaziar-nos de todo o conteúdo, por meio de um processo caótico e rebelde? Não seria mais fecundo abandonar-nos à essa fluidez interior, sem preocupação objetiva, limitando-nos a gozar de todas as nossas efervescências e agitações íntimas? Vivências múltiplas e diferenciadas fundir-se-iam assim para engendrar uma das mais fecundas efervescências, semelhante a um movimento de marés ou a um paroxismo musical. Estar cheio de si, não no sentido do orgulho, mas da riqueza; sentir-se feito de um infinito interior, numa tensão extrema - isto significa viver intensamente, intensamente a ponto de sentir-se morrer de viver. Tão raro é este sentimento, e tão estranho, que nós deveríamos vivê-lo aos gritos. Preciso morrer de viver e me pergunto se existe algum sentido em buscar explicações. Assim que o passado da alma palpita em nós numa tensão infinita, ou que num dado momento retornam todas as experiências vividas e um ritmo perde seu equilíbrio e seu padrão, a morte nos prende aos cumes da vida, fazendo-nos provar, perante um tal terror, a mais dolorosa obsessão. Sentimento análogo àquele dos amantes que, no cume da alegria, veem surgir em frente a eles, fugitiva embora intensamente, a imagem da morte. Ou como, quando nos momentos de incerteza, emerge, em meio a um amor ainda nascente, a premonição do fim ou do abandono. 

Raros demais são aqueles que podem submeter-se até o fim, em tais experiências. É sempre perigoso reter uma energia explosiva, porque pode chegar o momento em que não teremos mais forças para dominá-la. A fusão acontecerá, portanto, à partir de um excesso. Existem estados e obsessões com os quais não saberíamos viver. A salvação não consiste em confessá-los logo? Guardadas na consciência, a experiência terrível e a obsessão aterradora da morte conduzem à ruína. Falando da morte nós salvamos qualquer coisa de nós mesmos, e, apesar disso, no âmago de nosso ser, apagamos algo. O lirismo representa uma expansão dispersiva da subjetividade, porque ele indica, no indivíduo, uma efervescência incoercível que visa incessantemente expressar-se. Esta necessidade de exteriorização é tanto mais urgente quanto mais é o lirismo interior, profundo e concentrado. Por que o homem se torna lírico em meio ao sofrimento ou ao amor? Porque estes dois estados, ainda que diferentes por sua natureza e orientação, surgem - de alguma forma - do âmago do ser, do próprio centro da subjetividade. Nós nos tornamos líricos assim que a vida interior palpita com seu ritmo essencial. O que nós temos de único e de específico é alcançado de uma forma tão expressiva que o indivíduo eleva-se ao plano universal. Somente as mais profundas experiências subjetivas são universais, na medida em que apenas elas são capazes de unir-se ao fundo da vida. A verdadeira interiorização leva a uma universalidade inacessível àqueles que não alcançam a essência e para quem o lirismo não passa de um fenômeno inferior, produto de uma inconsistência espiritual, quando os recursos líricos da subjetividade testemunham, na realidade, uma frescura e uma profundidade das mais remarcáveis. 

Algumas pessoas só se tornam líricas nos momentos decisivos de sua existência; para outras, é somente no instante da última agonia, quando o passado faz-se presente com todo o vigor de uma torrente. Mas, na maioria dos casos, a explosão lírica surge após experiências essenciais, quando a agitação do fundo íntimo do ser atinge o paroxismo. Assim, uma vez cativo do amor, o espírito habitualmente inclinado à objetividade e à impessoalidade, tão estrangeiro de si mesmo quanto das realidades profundas, prova um sentimento que mobiliza todos os seus recursos pessoais. O fato de que, salvo raras exceções, todos os homens "façam poesia" quando estão apaixonados demonstra bem que o pensamento conceitual não é o suficiente para exprimir o infinito interior; só uma matéria fluida e irracional é capaz de oferecer ao lirismo uma objetivação apropriada. Ignorante tanto de tudo o que se esconde em si mesmo, quanto de tudo o que o mundo em si esconde, nós somos subitamente surpreendidos pela experiência do sofrimento e transportados a uma região infinitamente complicada, de uma vertiginosa subjetividade. O lirismo do sofrimento alcança uma purificação interior em que as feridas não são mais meras manifestações externas sem implicações profundas, mas participam da própria substância do ser. É um hino do sangue, da carne e dos nervos. Assim, quase todas as doenças têm virtudes líricas. Somente aqueles que se mantêm numa insensibilidade escandalosa permanecem impessoais face à doença, fonte eterna de uma sondagem interior. 

Nós só nos tornamos verdadeiramente líricos após um profundo problema orgânico. O lirismo acidental é proveniente de determinantes exteriores e desaparece com eles. Não há lirismo sem um grão de loucura interior. Fato significativo, as psicoses caracterizam-se, em seu início, por uma fase lírica em que as barreiras e os obstáculos fundem-se para dar lugar a uma profunda embriaguez dos sentidos. Assim explica-se a produtividade poética das psicoses ainda insípidas. A loucura: um paroxismo do lirismo? Limitemo-nos, então, a escrever seu elogio, afim de evitarmos ter que escrever o da loucura. O estado lírico está além das formas e dos sistemas: uma fluidez e um derramar-se interiores misturam-se numa só expansão, como todos os elementos da vida do espírito numa convergência ideal, para criar um ritmo intenso e perfeito. Comparado ao refinamento de uma cultura paralítica que, prisioneira das molduras e das formas, tudo disfarça, o lirismo é uma expressão bárbara: seu verdadeiro valor consiste, precisamente, em ser somente sangue, sinceridade e chamas. 



(PE CULMILE DISPERARII - em romeno; ON THE HEIGHTS OF DESPAIR - em inglês; NOS CUMES DO DESESPERO; tradução de Guimarães Silva) 



(Ilustração: Edvard Munch -young woman on the shore-1896)



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