quarta-feira, 2 de agosto de 2017

500 ANOS DE ILUSÃO, de José Murilo de Carvalho





Há cem anos, por ocasião do quarto centenário da chegada dos conquistadores portugueses a Pindorama, o conde de Afonso Celso publicou o "Por Que me Ufano de Meu País". O livro, dedicado aos filhos, visava a despertar neles e, por extensão, em toda a juventude brasileira, um ilimitado amor à pátria. O lema "right or wrong, my country", em inglês mesmo, foi colocado na primeira página, logo abaixo do título. Êxito editorial, o livro e, mais especificamente, a palavra ufanismo passaram a denotar o patriotismo acrítico, ingênuo, incondicional.

Por que deveriam os brasileiros ufanar-se de seu país? O conde apresentou 11 motivos para a superioridade de nosso país em relação aos outros. Os cinco primeiros retomavam a tradição edênica inaugurada por Pedro Álvares Cabral, continuada pelo autor dos "Diálogos das Grandezas do Brasil" e mantida até hoje: a grandeza territorial, a beleza da terra (a cachoeira de Paulo Afonso, o Amazonas, a baía do Rio de Janeiro, a floresta virgem), as riquezas naturais, a amenidade do clima e a ausência de calamidades naturais.

Os outros tinham a ver com o caráter do povo (bom, pacífico, caridoso, ordeiro, sensível, sem preconceitos), as relações cavalheirescas e generosas com os outros países e a história do país. O brasileiro, segundo o conde, devia ufanar-se por morar em um país privilegiado, dom da providência, superior a todos os outros. O que ainda não tínhamos, poderíamos conquistar, transformando-nos eventualmente na primeira potência do orbe.

Cem anos depois do livro do conde, às vésperas do quinto centenário do evento que entre nós muitos ainda chamam de descoberta, já pululam os novos ufanistas, oficiais ou semioficiais, ingênuos ou espertos, beneficiados todos pela eficiência dos modernos meios de comunicação. A onda do oba-oba ufano-turístico só fará aumentar nos próximos meses. Convém, por isso, retomar os motivos de ufanismo do conde e examinar sua pertinência cem anos depois.

Alguns deles continham inverdades, como a afirmação de termos sido o primeiro país autônomo da América Latina ou de nunca termos sido derrotados (o conde esqueceu-se da derrota de Ituzaingó, que acabou com a pretensão de incorporar o Uruguai a nosso território). Outros continham tolices, como dizer que desfrutávamos liberdades desconhecidas em outras nações (não fosse o conde muito católico, poder-se-ia talvez pensar que se referia à liberdade de pecar). Ou afirmar que os ex-escravos se incorporaram à população em perfeito pé de igualdade.

Quanto a considerar a natureza como motivo de orgulho, poderíamos responder com Machado de Assis que ela não é obra nossa e que, portanto, não nos cabe dela nos orgulharmos. Mas temos que acrescentar que, se não fizemos a natureza, muito a desfizemos.

Nossa grandeza física continua intacta, apesar do receio de alguns do que chamam de cobiça internacional sobre a Amazônia. Também ainda não temos terremotos, vulcões e furacões. Mas as belezas naturais, o paraíso em que Deus nos colocou, já foram quase todas destruídas: as florestas foram e continuam a ser queimadas, as praias, as baías (a da Guanabara à frente), as suaves brisas e os céus foram poluídos. Só mesmo os milagreiros autores do hino encomendado pelo ministro do Esporte e Turismo para o quinto centenário conseguem beber água fresca nas cacimbas do sertão.

As riquezas naturais, por sua vez, foram vítimas de predação incansável e ininterrupta.

A bondade, caridade e doçura de nosso caráter não impediram que construíssemos uma das sociedades mais desiguais e injustas do globo, na qual os descendentes dos escravos, contradizendo a afirmação do conde sobre as condições de igualdade de sua incorporação, são discriminados e ocupam os estratos mais baixos da hierarquia social. Não impediram também que nos tornássemos campeões de violência na casa e na rua, que os massacres se generalizassem nas grandes cidades, que a tortura -depois de ser rotina no tratamento de escravos- se integrasse à prática policial e, por 20 anos, tivesse a cobertura das próprias Forças Armadas.

Primeira potência do orbe? Talvez no futebol e no Carnaval. Mas é preciso perguntar se um gol de Pelé ou uma Copa do Mundo valem a Copa que também ganhamos da desigualdade social e da pobreza; se um carnaval de Joãosinho Trinta ou um desfile da Mangueira valem os 15% de brasileiros analfabetos, os 35% com menos de quatro anos de educação, os 36% infectados por parasitas. Nossa história nos últimos cem anos? Deles, 41 foram de governo oligárquico sem participação popular. Mais 15 foram de ditadura civil. Outros 21 de ditadura militar. Sobram apenas 23 de democracia assustada e tímida, que tem sido muito lenta e pouco eficaz na solução do problema da desigualdade.

Ao final do quinto século, é preciso admitir que nossos melhores sonhos têm sido sistematicamente frustrados por nossa incapacidade de torná-los realidade. A retórica do ufanismo só serve para encobrir nossa frustração como povo e como nação.

Povo e nação que, como disse Renan, só existem devido à realização de grandes obras comuns no passado e da vontade de fazer outras tantas no presente.

Os brasileiros que julgam não ser este o país de seus sonhos, que acham não haver nada a celebrar no quinto centenário, enfrentarão a agitação ruidosa do oba-oba ufanista e aproveitarão a data para uma profunda autocrítica e para a busca de novos rumos que nos deem no futuro melhores razões para nos orgulharmos de nós mesmos. Nesse distante futuro talvez deixemos de ser o país do futuro que hoje desapontaria Stefan Zweig.



(Folha ONLINE, 8/8/1999)



Ilustração: Tarsila do Amaral - paisagem com touro)



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