sábado, 20 de maio de 2017
ÁGUAS VERTIGINOSAS ATIRARAM-LHE AOS PÉS UMA VASILHA QUEBRADA E UMA PALHINHA, de Virginia Woolf
A noite estava escura; a treva era profunda; mas era por uma noite assim que tinham esperado. Era por uma noite assim que tinham planejado fugir. Recordava tudo. O tempo chegara. Num transporte de paixão, atraiu Sacha e sussurrou-lhe ao ouvido:
- Jour de ma vie*! - Era a senha. À meia-noite, deviam encontrar-se numa pousada próximo a Blackfriars. Os cavalos esperavam aí. Tudo estava preparado para a sua fuga. Assim se separaram, cada um para sua tenda. Faltava ainda uma hora.
Muito antes da meia-noite, Orlando já estava à espera. A noite era de um negrume de tinta: um homem podia assaltar outro, antes de poder ser visto - o que afinal era melhor; mas era também do mais solene silêncio, de modo que a pata de um cavalo ou o choro de uma criança podiam ser ouvidos a uma distância de meia milha. Por várias vezes, medindo com os seus passos o pequeno pátio, Orlando suspendeu o bater do seu coração aos estrépitos do firme passo de um cavalo nas pedras, ou ao sussurrar de um vestido de mulher. Mas o transeunte era apenas algum mercador, que voltava tarde para casa, ou alguma mulher do bairro, cuja missão era menos inocente. Passavam, e a rua ficava mais silenciosa que antes. Então, aquelas luzes que ardiam pelo rés do chão, nas pequenas, intrincadas habitações onde viviam os pobres da cidade, subiam para os quartos de dormir, e depois iam sendo apagadas, uma por uma. Eram poucos os lampiões da rua, nesse remoto sítio, e a negligência do guarda-noturno muitas vezes permitia que se apagassem muito antes da madrugada. A treva tornava-se então ainda mais profunda. Orlando olhou para o pavio da sua lanterna; examinou a cilha; escorvou as pistolas; examinou os coldres; e fez todas essas coisas pelo menos uma dúzia de vezes, até não encontrar mais nada que necessitasse a sua atenção. Embora faltassem ainda uns vinte minutos para a meia-noite, não se decidia a entrar na sala da pousada, onde a estalajadeira estava ainda servindo vinho seco e o mais barato vinho das Canárias a alguns marítimos que se instalavam ali, arrastando suas canções e contando suas histórias de Drake, Hawkins e Grenville até virarem os bancos e rolarem adormecidos na areia do chão. A obscuridade se compadecia mais do seu dilatado e violento coração. Prestava atenção a cada passo; investigava cada som. Cada grito de ébrio e cada gemido de algum desgraçado deitado na palha ou em alguma outra angústia cortava-lhe o coração num golpe súbito, como se anunciasse maus presságios para a sua aventura. Contudo, não se inquietava por Sacha. A aventura não era nada para a sua coragem. Chegaria sozinha, com sua capa, suas calças, e de botas, como um homem. Tão leve era o seu passo que não seria ouvido, mesmo naquele silêncio.
Assim esperava na escuridão. De repente, uma pancada macia, embora pesada, lhe caiu no rosto. Tal era a tensão da sua expectativa que deu um salto e levou a mão à espada. A pancada repetiu-se uma dúzia de vezes na testa e na face. A geada tinha durado tanto tempo que levou um minuto para compreender que aquilo eram gotas de chuva caindo; as pancadas eram pancadas de chuva. A princípio, caíam vagarosamente, deliberadamente, uma a uma. Mas em breve as seis gotas eram sessenta, logo eram seiscentas; e depois correram todas juntas, num forte aguaceiro. Era como se o próprio céu, firme e maciço, se derramasse todo numa profusa catarata. Em cinco minutos, Orlando estava ensopado até os ossos.
Abrigando apressadamente os cavalos, procurou refúgio sob o dintel da porta, de onde podia ainda observar o pátio. O ar estava agora mais grosso do que nunca, e da torrente se elevavam um vapor e uma zoada que abafavam o som de qualquer passo de gente ou de animal. As estradas, crivadas de grandes buracos, deviam estar inundadas e impraticáveis. Ele, porém, quase não dava atenção ao efeito que isso pudesse ter sobre a sua fuga. Todos os seus sentidos estavam concentrados, espreitando pelo caminho empedrado - que cintilava à luz da lanterna - a chegada de Sacha. Às vezes, na escuridão, parecia vê-la, envolta nas pancadas de chuva. Mas o fantasma se desvanecia. De repente, com uma voz terrível e agourenta, uma voz cheia de horror e sobressalto, que arrepiou cada pelo de angústia na alma de Orlando, bateu em São Paulo a primeira pancada da meia-noite. Implacável, bateu quatro vezes mais. Com a superstição de um amante, Orlando tinha estabelecido que ela chegaria ao soar a sexta pancada. Mas a sexta pancada esmoreceu, e vibraram a sétima e a oitava, e à sua mente apreensiva apareceram notas anunciando, primeiro, e proclamando, depois - morte e desgraça. Quando soou a décima segunda, viu que sua sentença estava selada. Era inútil que a sua parte de razão raciocinasse; podia estar atrasada; podia estar detida; podia ter errado o caminho. O apaixonado e sensível coração de Orlando sabia a verdade. Outros relógios soaram, discordantes, e sucessivamente. O mundo inteiro parecia repicar com a notícia da sua ilusão e da sua humilhação. As velhas suspeitas que nele trabalhavam subterrâneas, levantaram-se do seu esconderijo, abertamente. Foi picado por uma multidão de víboras, cada qual mais venenosa. Permaneceu à entrada da porta, imóvel, sob a chuva tremenda. Com o passar dos minutos, afrouxaram-se-lhe um pouco os joelhos. O aguaceiro continuava. Dentro dele parecia troarem canhões. Grandes barulhos, como um despedaçar e abater de florestas, podiam ser ouvidos. E também gritos selvagens, e terríveis lamentos inumanos. Mas Orlando ficou ali imóvel, até o relógio de São Paulo bater duas horas, e então, bradando com uma horrível ironia, com todos os dentes à mostra: "Jour de ma vie!", arrojou a lanterna ao chão, montou a cavalo e galopou sem saber para onde.
Algum cego instinto, porque estava incapaz de raciocínio, deve tê-lo conduzido pela margem do rio, em direção ao mar. Pois, quando rompeu a aurora, com uma rapidez fora do comum, com o céu volvendo-se amarelo-pálido, e a chuva quase acabada, achou-se na margem do Tâmisa, para além de Wapping. Seus olhos deram, então, com o mais extraordinário espetáculo. Aquilo que, por mais de três meses, tinha sido sólido gelo, de tal grossura que parecia permanente como pedra e no qual uma alegre cidade tinha estado toda edificada, era agora uma torrente de turbulentas águas amarelas. O rio conquistara, aquela noite, a sua liberdade. Era como se um jorro de enxofre (e muitos filósofos se inclinavam a pensar assim) se tivesse levantado de regiões vulcânicas inferiores, rompendo o gelo em pedaços, com tal veemência que varria e apartava os enormes e maciços fragmentos. O simples espetáculo da água era suficiente para entontecer. Tudo era tumulto e confusão. O rio estava juncado de avalanchas de gelo. Algumas eram amplas como um relvado e altas como uma casa; outras não eram maiores que um chapéu de homem, porém fantasticamente retorcidas. Agora descia um comboio inteiro de blocos de gelo, derrubando tudo o que encontrava em seu caminho. Agora, redemoinhando e rodando como uma torturada serpente, o rio parecia estar-se arremessando a si próprio entre os fragmentos e sacudindo-os de margem a margem, de modo que podiam ser ouvidos a esfacelar-se contra diques e pilares. Mas o mais terrível, e que inspirava mais horror, era o espetáculo das criaturas humanas que tinha sido colhidas de surpresa, durante a noite, e agora caminhavam por aquelas tortuosas e precárias ilhas, na maior agonia de espírito. Saltassem na correnteza ou ficassem no gelo, sua sentença era certa. Às vezes, um bando inteiro dessas pobres criaturas descia junto, umas ajoelhadas, outras amamentando os filhos. Um velho parecia ler em voz alta um livro sagrado. Outras vezes, e essa era talvez a sorte mais pavorosa, um infeliz solitário caminhava pela sua estreita habitação deserta. Ao serem arrastados para o mar, podia-se ouvir a inútil súplica de alguns, fazendo desesperadas promessas de corrigir-se, confessar seus pecados e doar altares e bens, se Deus ouvisse suas imprecações. Outros estavam tão estonteados de terror que se sentavam imóveis e silenciosos, olhando firme para a frente. Uma multidão de barqueiros ou estafetas, a julgar por suas librés, rugindo e berrando as mais baixas cantigas de taverna, como por bravata, foi de encontro a uma árvore e afundou, com blasfêmias nos lábios. Um velho nobre - como o proclamavam seu traje de peles e sua corrente de ouro - submergiu perto do lugar onde estava Orlando, pedindo vingança contra os rebeldes irlandeses, que - gritava com o seu último alento - haviam tramado aquela coisa diabólica. Muitos pereceram apertando ao peito algum jarro de prata ou qualquer outro tesouro; e pelo menos uma vintena de pobres infelizes se afogou pela sua própria cupidez, preferindo arrojar-se da margem à torrente do que deixar escapar algum cálice de ouro ou ver desaparecer alguma roupa de peles. Porque móveis, valores, objetos de toda espécie eram arrastados para longe pelas avalanchas. Entre outros estranhos espetáculos, via-se uma gata amamentando os filhotes; uma mesa suntuosamente preparada para a ceia de vinte convivas; um casal na cama, junto com um extraordinário número de utensílios de cozinha.
Aterrado e atônito, Orlando não pôde fazer nada, durante algum tempo, senão observar a medonha corrida das águas que se desencadeavam a seus pés. Por fim, como voltando a si, deu de esporas ao cavalo e galopou firme, ao longo do rio, em direção ao mar. Dobrando uma curva, chegou defronte àquele sítio onde, havia menos de dois dias, os navios dos embaixadores pareciam imobilizados para sempre. Contou-os apressadamente: o francês, o espanhol, o austríaco, o turco. Todos flutuavam ainda, embora ao francês se houvessem quebrado as amarras e o turco, com uma grande fenda no costado, estivesse fazendo água. Mas o navio russo não se avistava em parte alguma. Por um momento, Orlando pensou que tivesse afundado; mas, erguendo-se nos estribos e sombreando os olhos, que tinham o alcance dos de um falcão, conseguiu distinguir a forma de um navio no horizonte. As águias negras flutuavam no mastro principal. O navio da Embaixada Moscovita fazia-se ao largo.
Atirou-se do cavalo, como se, na sua cólera, quisesse acometer a corrente. Com água até os joelhos, lançou à infiel mulher todos os insultos que sempre tem recebido o seu sexo. Falsa, inconstante, volúvel, chamou-a: demônio, adúltera, traidora; e as águas vertiginosas receberam suas palavras e atiraram-lhe aos pés uma vasilha quebrada e uma palhinha.
(Orlando; tradução de Cecília Meireles)
(Ilustração: Sergei Aparin)
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