quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

A METRÓPOLE QUE A GUERRA CONSTRUIU, de Alejo Carpentier








... muitas coisas que, embora pudessem 

parecer-nos sumamente extravagantes e ridículas, 

não deixavam de ser geralmente 

recebidas e aprovadas por outros grandes povos.



Descartes



De semana em semana ia prolongando o Primeiro Magistrado sua estadia em Marbella, despachando os assuntos do governo de uma pérgola um tanto pompeiana metida num labirinto de laranjeiras, no fundo do jardim. Logo cedo dava um passeio, ao longo do litoral, montado em seu cavalo Holofernes, forte alazão de manchas deslumbrantes, desbocado e bravo com todos, mas hipocritamente submetido a um amo que, todas as tardes, levava às quadras um balde de cerveja inglesa – Guiness, da melhor – sempre recebido com felizes relinchos. O Presidente tinha muitos motivos para estar contente naqueles meses, uma vez que a Nação nunca tinha conhecido uma época tão próspera nem tão feliz. Com esta Guerra Europeia – que, na verdade, e era melhor nem dizer, estava sendo uma bênção de Deus – o açúcar, a banana, o café, a balata atingiam cotações nunca vistas, fazendo engordar as contas bancárias, levantando fortunas, trazendo luxos e refinamentos que, até ontem, pareciam coisas de novela mundana ou de filmes das quase mitológicas figuras de Gabrielle Robinne, Pina Menichelli, Francesca Bertini ou Lydia Borelli. Rodeada de selvas milenares, a capital tinha-se transformado numa moderna selva de andaimes, de madeiras apontadas ao céu, de guindastes em ação, de escavadeiras mecânicas, num perpétuo ranger de poleias, marteladas em ferro e aço, misturadas de cimento, remanches e percussões, entre gritos de peões trepados e de peões em terra, apitos sirenes, transporte de areias e bufar de motores. As lojas ampliavam numa noite, amanhecendo com vitrines nunca vistas, onde alguns manequins de cera – outra novidade – celebravam primeiras-comunhões, apresentavam vestidos de noiva, trajes de alta costura, e até fardas de gabardina inglesa, bem cortadas e acabadas, para os militares de categoria. Umas máquinas fazedoras de melcocha instaladas nos portais do velho Mercado Real assombravam os transeuntes com o movimento ordenado de braços metálicos que mexiam, esticavam, compactavam, umas massas brancas, estriadas de vermelho que cheiravam a baunilha e a malvavisco. Proliferavam os escritórios, bancos, companhias de seguros, razões sociais, negócios de investimentos. O teodolito e as fitas transformavam terrenos alagados, ermos, potreiros de cabras, em extensões divididas, quadriculadas, demarcadas, que, de repente, depois de haverem sido desde tempos remotos “A horta do leproso”, “Fazenda guachinanga” ou “A invernada da Misia Petra”, passavam a se chamar “Bagatelle”, “West Side” ou “Armenoville”, fraccionando-se em parcelas que, escolhidas na planta, quase nunca edificadas, aumentavam de preço ao serem compradas e revendidas várias vezes por dia, em escritórios de muitas Underwood, ventiladores dourados, mapas em relevo, preciosas maquetas, conhaque e genebra no cofre, onde se pechinchava e se discutia entre bebidas, charutos, e chamadas de mulheres – era a grande novidade – que ofereciam suas atenções por telefone, com sotaque estrangeiro prometedor de grandes refinamentos a que se negavam – e era pior para elas – as muito recatadas putas nossas, para as quais o “assunto” tinha que ser de modo clássico, sem barroquismos, desonjuntamentos, nem fantasias, dessas que usavam em outras terras. As pianolas haviam invadido a capital, desenrolando e enrolando rolos de La Madelon, Rose of Picardy, It’s a long way to Tipperay, da aurora à meia noite. Nas bodegas de bisca e dominó, nos bares onde o Rum Santa Inês era abandonado pelo White Horse, só se falava de lucros que, devido à guerra, haviam feito com que todos se esquecessem da própria guerra, embora todas as pessoas – brancos, mestiços, cafuzos, pretos, índios, “tostados” –, tivessem se transformado em galicistas, tricolores, revanchistas, roseteiros, jonadarquistas, barresianos, afirmando de repente que nos desforraríamos do desastre de Sedán e as cegonhas de Hansí voltariam aos campanários da Alsácia e da Lorena. E, enquanto isso, havia nascido o primeiro arranha-céu – cinco andares com ático – inciando-se, imediatamente, a construção do Edifício Titã, que teria oito. E a velha cidade, com suas casas de dois andares, foi-se transformando logo numa Cidade Invisível. Invisível porque, passando de horizontal a vertical, já não havia olhos que a visse e a conhecessem. Cada arquiteto empenhado na tarefa de fazer edifícios mais altos que os anteriores, só pensava na estética particular de sua fachada, como se pudesse ser contemplada com cem metros de perspectiva, quando as ruas, previstas para a passagem de um só carro – de uma récua, de uma tropa de mulas, de uma carreta – só tinham seis ou sete varas de largura. Assim, recostado a uma coluna infinita, tratava em vão o transeunte de contemplar os primores de ornamentação perdidos em céu de abutres e de urubus. Sabia-se que, lá em cima, havia guirlandas, cornucópias, caduceus, ou até um templo grego empoleirado sobre o 5º andar, com cavalos de Fídias e tudo, mas só se sabia, porque esses alcazares, esses zimbórios, essas cornijas, desconhecidas, desterradas, de um Mercúrio – o da Câmara de Comércio –, de uma Minerva cuja lança atraía os raios de agosto, de aurigas, de gênios alados, santos cristãos que dominavam, isolados uns dos outros, um intrincado escalonamento de coberturas, telhados de piçarras, caixas d’água, chaminés, para-raios, e casinholas para mecanismos de elevador. Sem perceber, as pessoas viviam em Nínives nunca antes suspeitadas, em Westminsters vertiginosos, em Trianons volantes, com gárgulas, personagens de bronze que chegariam a velhos sem haverem tido contato com as pessoas de baixo, sempre atarefadas entre pórticos, arcadas, portais, que carregavam um enorme peso de construções inatingíveis para a vista. E como todo mundo estava ansioso por novidades, aqueles que viviam há dois séculos em mansões coloniais, abandonavam-nas apressadamente para instalar-se nas casas novas, modernas, de estilo romano, Chambord ou Stanford White. Assim, aconteceu que os vastos palácios da cidade antiga, com suas fachadas platerescas e brasões entalhados em pedra, passaram a ser habitados pelos andrajosos, piolhentos e sarnosos – o cego fingido com guia alugado, o bêbado de tremedeiras matinais, o acordeonista de perna de pau, o pobre aleijado que pede esmola pelo amor de Deus. As formosas galerias internas encheram-se de mulheres desgrenhadas, de crianças nuas, de rameiras e vagabundos, entre fumaça de fogareiros e roupas penduradas, ao mesmo tempo que os pátios serviam como teatro para espetáculos de Bataclã, boxe, brigas de galo e prestidigitador associado com batedor de carteira. Centenas de automóveis Ford – os mesmos que apareciam nos filmes de Mac Sennet – corriam pelas ruas mal pavimentadas, esquivando buracos, trepando nas calçadas, derrubando cestas de frutas, arrebentando vitrinas, num afã de velocidade jamais conhecido por estas latitudes. Tudo era apuro, pressa, corrida, impaciência. Em poucos meses de guerra, havia-se passado da vela à lâmpada, da cuia ao bidê, da garapa à coca-cola, do jogo do bicho à roleta, de Rocambole a Peal White, do burro de recados à bicicleta do telegrafista, do carro de mulas – com pompons e guizos – ao Renault em grande estilo que, para virar as esquinas estreitas da urbe, tinha de realizar dez ou doze manobras de avanço e retrocesso, antes de entrar numa ruela recém-batizada de “Boulevard”, promovendo uma tumultuada fuga de cabras que ainda abundavam em alguns bairros, pois era boa a erva que crescia entre os paralelepípedos. As monjas Ursulinas haviam inaugurado uma Gruta de Lourdes com portentos de luz elétrica, foi aberto um primeiro dancing com jazz-band vindo de Nova Orleans, trouxeram-se cavalos e jóqueis de Tijuana para correr num empetecado hipódromo nascido de pântanos, e, certa manhã, a antiga Vila qualificada de “Mui Fiel e Mui Ilustre”, em suas Atas de Fundação (1553) amanheceu com a plena consciência de ter-se transformado toda em uma senhora Capital do século XX. Fugiram as últimas serpentes – crótalos, jararacas, corais, cascavéis... – das urbanizações, calaram-se os pintassilgos e os fonógrafos abriram a boca. Houve torneio de bridge, desfiles de modas, banhos turcos, bolsa de valores e bordel de categoria, onde era vedada a entrada àqueles que tivessem a pele mais escura que o Ministro das Obras Públicas – tomado como paradigma de apreciação, uma vez que, se não era a ovelha negra do Gabinete, era, não há dúvida, sua ovelha mais “tostada”. Os policiais trocaram o sapato remendado por botinas regulamentares e os sinais de luvas brancas foram obedecidos por um trânsito cujo ruído se enriquecia com buzinas de várias peras de borracha, que permitiam tocar a valsa da “Viúva Alegre”, ou os primeiros compassos do Hino Nacional... Contemplando aquela urbe que crescia e crescia, o Primeiro Magistrado angustiava-se às vezes diante da modificação da paisagem vista das janelas do palácio. Metido ele também em negócios imobiliários manejados pelo Doutor Peralta, construía edifícios destruidores de um panorama tão longamente unido ao seu destino, que uma alteração de seu conjunto, repentinamente assinalado pela Maiorala Elmira – “olhe aquilo”... “olhe aquilo”... – sobressaltava-o com um mal presságio. As chaminés de fábricas erguidas por ele, fracionavam, quebravam, uma natureza ignorante, até há pouco tempo, das feias cruzetas das linhas do telégrafo. O Vulcão, o Vulcão-Avô, o Vulcão Tutelar, morada de antigos Deuses, símbolo e emblema, cujo cone figurava no escudo nacional, era menos vulcão – menos Morada de Antigos Deuses – quando insinuava sua majestade, nas manhãs nubladas, com pudores de rei humilhado, de monarca sem corte, sobre as fumaças imediatas e espessas, despedidas por quatro altas bocas, da grande Central Elétrica, recém-inaugurada. Ao verticalizar-se, ao geometrizar-se, seccionando encostas de montanhas, colinas, visões de vales longínquos, fundos de verdores, a cidade ia-se fechando sobre seu Príncipe. E como a população aumentava com uma crescente afluência de camponeses, trabalhadores braçais, peões, artesãos de província, atraídos pela prosperidade da Metrópole, e havia, com isso, uma maior carga de avós bilharziosos, de organismos danificados por velhos impaludismos, de crianças furunculosas, comidas de amebas – vítimas maiores das cíclicas epidemias de gripes malignas, vindas não se sabe de onde – multiplicavam-se as agências funerárias, fechando seu cerco de lutos e ataúdes em torno do Palácio Presidencial – “Aí vem A Coruja!” – exclamava a Maiorala Elmira, quando via aparecer, na Praça Maior, algum carro de defunto a caminho do cemitério. – “Que vá só! ” – respondia o Primeiro Magistrado, unindo o indicador e mindinho das duas mãos num signo esconjuntório de Sombras Malignas. – “Nem Napoleão derruba o senhor” – concluía a Maiorala Elmira, dando presença atual a um personagem cujo nome era, para ela, expressão do máximo poder outorgado por Deus a um ser humano, uma vez que, saído do nada, nascido num presépio por assim dizer, havia chegado a dominar o mundo – sem deixar, por isso, de ser bom filho, bom irmão, amigo de seus amigos (lembrou-se até de sua lavadeira quando se fez grande!) e sempre macho de fêmeas pra lá de boas, como essa, do Caribe, que o mantinha preso por onde eu já sei, porque a mulata e a mestiça nascem com o Demônio entre as pernas, e aquele que provar isso... (Havia homens que abandonavam tudo, que desapareciam, fugiam de suas casas, ao chamado da Oração à Alma Solitária, manejada pelas Mulheres do Grande Poder que, com lamparinas acesas atrás da porta, repetiam, tantas como as contas do rosário: “Que como raivoso corra atrás de mim. Amém”...)





(O Recurso do Método, tradução de Beatriz A. Cannabrava)





(Ilustração: Jacek Yerka)




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