sexta-feira, 20 de abril de 2012

A FILHA DO PATRÃO, de Artur Azevedo






(A Artur de Mendonça)







O comendador Ferreira esteve quase a agarrá-lo pelas orelhas e atirá-lo pela escada abaixo com um pontapé bem aplicado. Pois não! Um biltre, um farroupilha, um pobre diabo sem eira, nem beira, nem ramo de figueira, atrever-se a pedir-lhe a menina em casamento! Era o que faltava! Que ele estivesse durante anos a juntar dinheiro para encher os bolsos de um valdevinos daquela espécie, dando-lhe a filha ainda por cima, a filha, que era a moça mais bonita e mais bem educada de toda a rua de São Clemente! Boas! O Comendador Ferreira limitou-se a dar-lhe uma resposta seca e decisiva, um "Não, meu caro Senhor" capaz de desanimar o namorado mais decidido ao emprego de todas as astúcias do coração.


O pobre rapaz saiu atordoado, como se realmente houvesse apanhado o puxão de orelhas e o pontapé, que felizmente não passaram de tímido projeto.


Na rua, sentindo-se ao ar livre, cobrou ânimo e disse aos seus botões: - Pois há de ser minha, custe o que custar! - Voltou-se, e viu numa janela Adosinda, a filha do comendador, que desesperadamente lhe fazia com a cabeça sinais interrogativos. Ele estalou nos dentes a unha do polegar, o que muito claramente queria dizer: - Babau! - e, como eram apenas onze horas, foi dali direitinho espairecer no Derby-Clube. Era domingo e havia corridas.


O Comendador Ferreira, mal o rapaz desceu a escada, foi para o quarto da filha, e surpreendeu-a a fazer os tais sinais interrogativos. Dizer que ela não apanhou o puxão de orelhas destinado ao moço, seria faltar à verdade que devo aos pacientes leitores, apanhou-a, coitadinha! E naturalmente, a julgar pelo grito estrídulo que deu, exagerou a dor física produzida por aquela grosseira manifestação de cólera paterna.


Seguiu-se um diálogo terrível:


- Quem é aquele pilantra?


- Chama-se Borges.


- De onde o conhece você?


- Do Clube Guanabarense... Daquela noite em que papai me levou...


- Ele em que se emprega? Que faz ele?...


- Faz versos.


- E você não tem vergonha de gostar de um homem que faz versos?


- Não tenho culpa; culpado é o meu coração.


- Esse vagabundo algum dia lhe escreveu?


- Escreveu-me uma carta.


- Quem lha trouxe?


- Ninguém. Ele mesmo atirou-a com uma pedra, por esta janela.


- Que lhe diria ele nessa carta?


- Nada que me ofendesse; queria a minha autorização para pedir-me em casamento.


- Onde está ela?


- Ela quem?


- A carta!


Adosinda, sem dizer uma palavra, tirou a carta do seio. O comendador abriu-a, leu-a e guardou-a no bolso. Depois continuou:


- Você respondeu a isso?


A moça gaguejou.


- Não minta!


- Respondi, sim, senhor.


- Em que termos?


- Respondi que sim, que me pedisse.


- Pois olhe: proíbo-lhe, percebe? Pro-í-bo-lhe que de hoje em diante dê trela a esse peralvilho! Se me constar que ele anda a rodar-me a casa, ou que se corresponde com você, mando desancar-lhe os ossos pelo Benvindo (Benvindo era o cozinheiro do Comendador Ferreira) e a você, minha sirigaita... a você... Não lhe diga nada!


Três dias depois desse diálogo, Adosinda fugiu de casa em companhia de seu Borges, e o rapto foi auxiliado pelo próprio Benvindo, com quem o namorado dividiu um dinheiro ganho nas corridas do Derby. Até hoje ignora o comendador que o seu fiel cozinheiro contribuísse para tão lastimoso incidente.


O pai ficou possesso, mas não fez escândalo, não foi à polícia, não disse nada nem mesmo aos amigos íntimos; não se queixou, não desabafou, não deixou transparecer o seu profundo desgosto.


E teve razão, porque, passados quatro dias, Adosinda e o Borges vinham, à noite, ajoelhar-se aos seus pés e pedir-lhe a benção, como nos dramalhões e novelas sentimentais.


Para que o conto acabasse a contento da maioria dos meus leitores, o Comendador Ferreira deveria perdoar aos dois namorados, e tratar de casá-los sem perda de tempo; mas infelizmente as coisas não se passaram assim, e a moral, como vão ver, foi sacrificada ao egoísmo.


Com a resolução de quem longamente se preparara para o que desse e viesse, o comendador tirou do bolso um revólver e apontou-o contra o raptor de sua filha, vociferando:


- Seu biltre, ponha-se imediatamente no olho da rua, se não quer que lhe faça saltar os miolos!...


A esse argumento intempestivo e concludente, o namorado, que tinha muito amor à pele, fugiu como se o arrebatassem asas invisíveis.


O pai foi fechar a porta, guardou o revólver e, aproximando de Adosinda que encostada ao piano, tremia como varas verdes, abraçou-a, beijou-a com um carinho que nunca manifestava em ocasiões menos inoportunas.


A moça estava assombrada; esperava, pelo menos, a maldição paterna; era, desde pequenina, órfã de mãe e habituara-se às brutalidades do pai; aquele beijo e aquele abraço afetuosos encheram-na de confusão e de pasmo.


O comendador foi o primeiro a falar:


- Vês? - disse ele, apontando para a porta. - Vês? O homem por quem abandonaste teu pai é um covarde, um miserável, que foge diante do cano de um revólver! Não é um homem!...


- Isso é ele - murmurou Adosinda baixando os olhos, ao mesmo tempo que duas rosas lhe desfaziam a palidez do rosto.


O pai sentou-se no sofá, chamou a filha para perto de si, fê-la sentar-se nos seus joelhos e, num tom de voz meigo e untuoso, pediu-lhe que se esquecesse do homem que a raptara, um troca-tintas, um leguelhé que lhe queria o dote, e nada mais, pintou-lhe um futuro de vicissitudes e misérias, longe do pai que a desprezaria se semelhante casamento se realizasse, desse pai que tinha exterioridades de bruto, mas no fundo era o melhor, o mais carinhoso dos pais.


No fim dessa catequese, a moça parecia convencida de que nos braços do Borges não encontraria realmente toda a felicidade possível, mas...


- Mas agora... é tarde - balbuciou ela; e voltaram-lhe à face as purpurinas rosas de ainda há pouco.


- Não; não é tarde - disse o comendador. - Conheces o Manuel, o meu primeiro caixeiro do armazém?


- Conheço: é um enjoado.


- Qual enjoado! É um rapaz de muito futuro no comércio, um homem de conta, peso e medida! Não descobriu a pólvora, não faz versos, não é janota, mas tem um tino para o negócio, uma perspicácia que o levará longe, hás de ver!


E durante um quarto de hora o Comendador Ferreira gabou as excelências do seu caixeiro Manuel.


Adosinda ficou convencida.


A conferência terminou por estas palavras:


- Falo-lhe?


- Fale, papai.


No dia seguinte o comendador chamou o caixeiro ao escritório, e disse-lhe:


- Seu Manuel, estou muito contente com os seus serviços.


- Oh! Patrão!


- Você é um empregado zeloso, ativo e morigerado; é o modelo dos empregados.


- Oh! Patrão!


- Não sou ingrato. Do dia primeiro em diante você é interessado na minha casa: dou-lhe cinco por cento além do ordenado.


- Oh! Patrão! Isso não faz um pai ao filho!...


- Ainda não é tudo. Quero que você se case com minha filha. Doto-a em cinqüenta contos.


O pobre diabo sentiu-se engasgado pela comoção: não pôde articular uma palavra.


- Mas eu sou um homem sério - continuou o patrão; - a minha lealdade obriga-me a confessar-lhe que minha filha... não é virgem.


O noivo espalmou as mãos, inclinou a cabeça para a esquerda, baixou as pálpebras, ajustou os lábios em bico, e respondeu com um sorriso resignado e humilde:


- Oh! Patrão! Ainda mesmo que fosse, não fazia mal!




(Ilustração: Andrew Wyeth - Siri, virgin)


Um comentário:

  1. Extraordinário autor, Artur Azevedo!
    Excelente, claro, o texto!

    Obrigada, Sidney, pela partilha.
    Um abraço,
    da Lúcia

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