terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

A CELA MISTERIOSA, de Aluísio Azevedo





No ano de mil e setecentos e ... , Paris então muito governada pela Pompadour e um pouco por Luís XV, palpitava de entusiasmo com um escândalo original. Por um instante, a grande cidade libertina distraía-se dos seus desregramentos habituais e esquecia a ordem dos Aphrodites e dos Hermaphrodites, e esquecia as picantes palhaçadas de Taconnet.

Era o caso que o famoso pregador La Rose tinha, como todos os anos, de pregar o seu sermão da quinta-feira santa na capela real, e fora acometido por um formidável ataque de asma, justamente na véspera desse dia. Escreveu logo ao vigário-geral, seu amigo particular, dando-lhe parte do fato e pedindo-lhe que, sem perda de tempo, tratasse de descobrir alguém que o substituísse.

Ora, o caso era deveras apertado! Quem teria a coragem de ir, à última hora substituir La Rose no púlpito da capela real, num dos sermões mais importantes da quaresma?...

Substituir La Rose!... La Rose, "o segundo Bossuet", como lhe chamavam seus inúmeros admiradores! La Rose, o amimado pregador da corte, o protegido de Antoinette Poison, o querido tanto por parte dos Molinistas como por parte dos Jansenistas, o aclamado por todo o alto e baixo público de Paris! La Rose, o indispensável! La Rose, o insubstituível!

E era preciso que ele com efeito estivesse deveras doente, para faltar ao sermão de quinta-feira santa, porque La Rose prezava muito aos seus triunfos na tribuna sacra, e não esperdiçaria facilmente uma boa ocasião de orar perante o rei e toda sua corte de fidalgos e toda a sua corte de letrados.

Entretanto, sabia-se também que La Rose, desde que sentisse a menor alteração na voz, não seria capaz de falar em público, nem à mão de Deus Padre, porque era precisamente na maneira especial de jogar com a sua bela e sedutora voz, que consistia o grande segredo dos seus incomparáveis triunfos.

É inútil dizer que, por melhores esforços empregados, nenhum pregador se descobriu, bom ou mau, que quisesse ir tomar o lugar do querido mestre.

O rei aborreceu-se e chegou a franzir as sobrancelhas. Luís XV, se era folgazão, era também devoto. E se era devoto era também homem de gosto exigente; não compreendia uma quinta-feira santa sem La Rose. Além disso, tinha na véspera abusado da sua suntuosa adega, e a melhor água de Selters para as suas ressacas era ainda La Rose.

Que diabo! O caso era sério.

Empregaram-se os últimos recursos para descobrir alguém que, sem grande escândalo, fosse capaz de improvisar um sermão digno da real ressaca; ofereceram-se bonitas somas, fizeram-se as mais lindas promessas. O cabido inteiro agitou-se, remexeu-se, sorveu consecutivas pitadas, esfregou mil vezes o lenço encarnado no nariz, mas ninguém teve coragem para aceitar a espinhosa missão.

E, no entanto, o tempo fugia e era preciso tomar uma resolução.

O arcebispo, já desesperado, ia estender o braço para tomar ao acaso o primeiro dos seus sufragâneos, e ordenar-lhe que subisse ao púlpito e despejasse - com um milhão de raios! - um sermão qualquer, quando de improviso rasgou-se o reposteiro da sala, em que ele se achava entre uma negra nuvem de batinas, e viu-se surgir a veneranda figura de frei Ozéas, com as suas grandes barbas brancas e a sua enorme calva de profeta.

Encaminhou-se diretamente para o arcebispo e disse-lhe, depois das reverencias do estilo:

- Comprometo-me, se mo permitirem, a apresentar hoje no púlpito da capela real alguém que irá dignamente substituir o padre La Rose.

Fez-se em torno destas simples palavras um profundo silêncio de pasmo e de desabafo.

Bastava só, porém, a presença do frei Ozéas naquela sala do paço arcebispal para levantar a surpresa do cabido inteiro. Todos lhe conheciam a vida obscura e solitária, e todos sabiam que era muito e muito raro vê-lo fora do seu modesto convento a não ser para algum ato de caridade.

Frei Ozéas era um homem singularíssimo, como mais adiante apreciará o leitor. Havia vinte e tantos anos que em torno dele se formara de dia para dia a mais sólida reputação de virtude e santidade.

De quem disporia o singular frade para fazer substituir La Rose?...

E começou logo o sussurro dos comentários.

O arcebispo, entretanto, tomara-o avidamente pelo braço, e desaparecera com ele pela porta que conduzia ao interior do palácio.

Pouco depois, descia frei Ozéas as escadas do paço, metia-se no carro que o esperava à entrada do jardim, dizia ao cocheiro que tocasse depressa para o convento de S. Francisco de Paulo, e daí a meia hora, atravessava o longo pátio ladrilhado de pedra e subia a pesada escada do claustro, em que ele se havia condenado a viver para sempre em dura penitência.

Apesar do tremor dos seus setenta anos, venceu ligeiro os extensos corredores abobadados, galgou uma estreita escada que conduzia a um sombrio mirante e, tendo várias vezes volvido os olhos para trás, como se temesse ser acompanhado por alguém, chegou-se a uma pequena porta inteiriça e bateu três pancadas secas com as falanges dos seus dedos ossudos e pálidos.

A porta abriu-se sem ruído. Ele entrou e a porta fechou-se de novo, silenciosamente.

O lugar em que o venerando religioso acabava de penetrar era uma triste cela, sombria e espaçosa, com uma janela gradeada e fechada, e apenas frouxamente esclarecida por uma claraboia do teto. As paredes, nuas de alto a baixo, tinham uma cor sinistra de osso velho. Em uma delas havia um grande nicho com a imagem da Virgem da Conceição, quase de tamanho natural; a um dos cantos, uma negra estante toscamente feita, pejada de grossos alfarrábios amarelecidos pelo tempo; no centro, uma mesa de madeira escura com um breviário em cima, ao lado de uma candeia de azeite, um pedaço de pão duro e um cilício cru; junto à mesa, um banco de pau.

Ozéas fora recebido à porta por um mancebo de uns vinte anos, muito pálido, ainda imberbe, vestido com uma esfarrapada batina de seminarista.

Não havia mais ninguém na cela.

O mancebo beijou-lhe a mão. Ozéas abraçou-o e disse-lhe depois, tocando-lhe carinhosamente no ombro:

- Meu filho, vais hoje pela primeira vez atravessar as ruas de Paris e entrar na capela real.

- Para que, meu pai?

- Para pregar o sermão de quinta-feira santa.

- Eu? Mas o que vou dizer?...

- Vais dizer pura e simplesmente o que sabes e o que sentes a respeito da paixão de Jesus Cristo... Não te preocupes com a multidão que lá encontrares, não te preocupes com o que vires. Fecha-te contigo mesmo e fala como se conversasses com o teu anjo da guarda. Abre o teu coração, quando abrires os teus lábios, e deixa dele sair, imperturbável e cristalina, a tua alma de bem-aventurado.

- Bem, meu pai.

- Daqui a pouco virá a roupa com que tens de ir. Dentro de uma hora virei buscar-te.

- Estarei pronto e às suas ordens, meu pai.

- Reza a Nossa Senhora enquanto me esperas. Adeus.

- Sua benção, meu pai.

- Deus te abençoe.

E frei Ozéas tornou a sair, fechando-se de novo sobre ele a porta, silenciosamente.






(A Mortalha de Alzira)




(Ilustração: Giovanni Battista Tiepolo)



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