quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

MELANCIA – COCO VERDE, de João Simões Lopes Neto






- Vancê pare um bocadinho; componha os seus arreios, que a cincha está muito pra virilha. E vá pitando um cigarro enquanto eu dou dois dedos de prosa àquele andante… que me parece que estou conhecendo… e conheço mesmo!... É o índio Reduzo, que foi posteiro dos Costas, na estância do Ibicui.

- Vancê desculpe a demora: mas quando se encontra um conhecido do outro tempo - e então do tope deste! - a gente até sente uma frescura na alma!… Coitado, está meio acalcanhado… mas, bonzão, ainda! - Pois aquele cuerudo que vancê está vendo, teve grito d’armas!... Vou contar-lhe uma alarifagem em que ele andou metido, e que só depois se soube, pelo miúdo, e isso mesmo porque a própria gente do caso é que contava.

O Reduzo foi nascido e criado em casa dos Costas, ainda no tempo do velho, o Costa lunanco, um que foi alferes dos dragões do Rio Pardo. Este Costa lunanco era um pente-fino, que naquele tempo arranjou tirar para ele e para os filhos - miudagem, ainda - como quatro sesmarias de campo, sobre o lbicui, pegadas umas nas outras, e com umas divisas largas... como goela de gringo!...

O chiru criou-se junto com os meninos, e desde ninhar e armar urupucas, até botar as vacas, irem aos araçás e pegar mulitas, tudo faziam juntos. Quando eram já taluditos o velho começou a encostá-los no serviço, também sempre de companheiros; e assim foram aprendendo a campeirear, domando, capando... até saberem apartar boi gordo e tocar uma tropa.

Neste entrementes rebentou outra vez uma gangolina com os castelhanos.

Um dos moços, que era um quebra largado, nomeado por Costinha, esse, foi dos primeiros a se apresentarem ao comandante das armas, pra servir. E tais cantigas cantou ao velho Costa, que este deixou o Reduzo ir com ele, de companheiro e ordenança, porque o rapaz era cadete, com estrela, e tinha direito.

O chiru ficou todo ganjento; imagine vancê que colhera, daqueles dois aruás!...

Neste passo porém deu-se uma cousa em que o Costinha nem tinha pensado.
É rabo-de-saia, já se vê...

O cadete tinha uma paixão braba por uma moça lindaça - a sia Talapa, - filha dum tal Severo, também fazendeiro dali pertinho, obra de cinco léguas. O moço Costinha de vez em quando aparecia por lá, matava as saudades; fazia umas agachadas, e vinha-se embora trazendo nos olhos o encantamento dos olhos da namorada.

O velho Severo parece que não queria o casamento dos dois, nem por nada; teimava e berrava que ela havia de casar-se com o sobrinho dele, primo dela, um que tinha uma casa de negócio na Vila. Esse tal era um ilhéu, mui comedor de verduras, e que para montar a cavalo havia de ser em petiço e isso mesmo o petiço havia de ser podre de manso... e até maceta... e nambi... e porongudo!...

A moça chorava que se secava, quando caçoavam-na com o primo e o casório.
Era mesmo uma pena, lhe digo... casar uma brasileira mimosa com um pé-de-chumbo, como aquele desgraçado daquele ilhéu… só porque ele tinha um boliche em ponto grande!...

O caso é que o Costinha gostava da moça e a moça gostava dele: tem, é que não atavam nem desatavam... e o velho Severo puxava a pêra, torcendo as ventas...

O ilhéu às vezes vinha à estância do tio, em carretinha...; veja vancê como ele era ordinário, que nem se avexava de aparecer de carretinha, diante da moça!... E era só cama com lençóis de crivo, para o primo; fazia-se sopa de verdura para o meco; e até bacalhau aparecia, só pra ele!...

Que isto das nossas comidas, um churrasco escorrendo sangue e gordura e salmoura… uma tripa grossa assada nas brasas… uma cabeça de vaquilhona... uma paleta de ovelha; e mogango e canjica e coalhada... e uns beijus e umas manampanças... e um trago de cana e um chimarrão por cima… e para rebater tudo, umas tragadas dum baio, de naco bem cochado e forte... tudo isso, que é do bom e do melhor, para o ilhéu não valia nem um sabugo!... Tuuh! diabo!... Até me cuspo todo, quando me lembro daquele excomungado!...

- Vancê está se rindo e fazendo pouco?... E por que vancê não é daquele tempo… quando rompeu a independência lá na Corte do Rio de Janeiro… e depois tivemos que ir pra coxilha fazer a guerra dos Farrapos, com seu general Bento Gonçalves, que foi meu comandante, sim senhor, graças a Deus... e mais os outros torenas!...

Galego, naquele tempo, era gente, vancê creia! Estância, era dele; negócio, era dele; oficial, era só ele; era arrematante das sisas, ele; surgião, ele; padre-vigário, ele; e pra botar a milicada em cima dos continentistas… era ele!…

E cada presilha!...

Gente da terra não valia nada!...

- Que é que vancê está dizendo?... O que nós somos hoje a eles devemos? Qual! É verdade que uns inventaram plantação de trigo… isso enfim, era bom...; sempre era uma fartura; noutras casas plantavam e fiavam linho… também não era mau, isso; noutras cardavam lã... Algum mais vivaracho botava tenda e vendia mechiflarias ou prendas de ouro... Nalguns trocava-se uns quantos couros por um pão de açúcar, e pipote de cana por qualquer meia dúzia de vacas. E sempre corria alguma dobla, de salário, e algum cruzado pela peonada de ajuste.

Mas, como quera... eram mui entonados, os reinóis. Onde é mesmo que eu estava? Ah!... O Costinha e sia Talapa tinham juramento entre eles, de se casarem, ainda que ela saísse de casa na garupa do namorado, se o carrança do velho Severo não consentisse. Com o ilhéu é que nunca!

Pois foi por estas alturas que os castelhanos bandearam a fronteira e o Costinha assanhou-se.

Foi uma despedida de arrebentar a alma! Ele deixou-lhe de lembrança uma memória e ela deu-lhe um negalho de cabelo. E combinaram que pra qualquer recado ou carta ou aviso, ela teria o nome de Melancia e ele de Coco verde. Só eles, ninguém mais saberia; que era para despistar algum xereta.

E como a despedida foi de noite, e ela veio acompanhá-lo até a porta... até a ramada, onde ele montou a cavalo… e como ventava forte, e a vela que um crioulo trazia apagou-se… parece que houve a roubada de uma boquinha... porque ele tocou a trotezito, calado, e ela, ficou como entecada, no mesmo lugar, calada... Quem não soubesse jurava que se despediam enfunados, quando a verdade é que se despediam chorando nos olhos mas tocando música no coração... por causa daquela bicota arreglada no escuro, mas que valeu como um clarão!... Ninguém viu… só o Reduzo.

Nessa madrugada o cadete marchou.

O velho Severo deixou passar um mês ou mais; quando teve notícia de que as forças andavam bem longe, e trançadas com o inimigo, e que ninguém de lá podia sair assim a dois tirões... sem falar nos balázios e nos lançaços - que isso era a boche! -, quando inteirou-se de tudo, mandou à Vila o capataz para vir acompanhando o sobrinho, a quem escreveu uma carta grande, fechada com mais obreias do que tragos de vinho tem um copo de missa, de padre gordo!...

Oral... daí a uns dias o ilhéu batia na estância, de carretinha e com um carregamento de cousas. E já começaram a aferventar o casamento. Imagine vancê o cerco em que se viu a pobre da sia Talapa! Eram os pais dela; a parentalha; vizinhos velhos; cancheiros da estância... tudo a dizer, a gabar, a achar até bonito o ilhéu...

E já foram alinhavando papéis, e preparos de vestidos e doçarias, perus na engorda, leitões no chiqueiro, terneiras pros churrascos.

Uma negra que havia lhe dado de mamar era a única criatura que chorava com a moça… mas chorava escondido, a pobre, por medo do laço... De noite, fechadas no quarto as duas abraçavam-se, rezavam e só diziam, no consolo duma esperança:

- Mãe santíssima... valei-me!...

- Nossa Senhora!… manda nhô Costinha aparecer!...

Afinal chegou o dia marcado. Veio o vigário com o sancristão e gentama de toda parte; não digo bem: o velho Costa lunanco nem a família não foram convidados.

Mas assunte vancê como se passaram as cousas.

Pela Vila tinha justamente passado a meia rédea um chasque para as forças em que servia o cadete. O chasque era rapaz novo, alegre, mui relacionado por aqueles meios; enquanto mudava de cavalo tinha ido tomar um refresco no negócio do ilhéu, e aí, pela gente da casa soube a nova do casamento, do dia certo, dos preparos da jantarola, enfim, de tudo, tudo, pelo miúdo. E mal que apertou os pelegos, montou, - e se foi - que o rei manda marchar, não manda chover.

Quando bateu no acampamento e entregou os ofícios que levava, procurou a rapaziada conhecida e, portanto, o Costinha, para dar a novidade do casório da sia Talapa com o primo.

Como touro de banhado laçado a meia espalda, assim ficou o moço. Amassou o sombreiro sobre a orelha, afivelou a espada e gritou:

- Me vou, e é já! Reduzo!

- Pronto!

- Encilha os nossos cavalos! Já! Vamos embora!... Deserto!... Hei de lonquear aquele galego ordinário!... Deserto... Deserto... acabou-se!

- Encilho? - reperguntou o chiru.

- Sim, coos diabos! - berrou o desesperado.

Neste momento o clarim deu toque de alarma… e como pra acoquinar o pobre, um cabo veio a toda pressa chamar o Costinha, de ordem do comandante... Veja vancê que entaladela!

Pelos altos das coxilhas avistava-se uma partida do inimigo. O comandante então deu ao Costinha uma prova de confiança, pois encarregou-o de uma carga sobre um flanco dos atacantes...

- E agora?!...

- Filho de tigre é pintado!…

Diante do dever o moço engoliu a tristeza, e mesmo não quis se desmoralizar desertando justamente naquela hora de peleia.

Mas coriscou-lhe um pensamento... e logo montou, formou a gente, tomou a testa do piquete e disse ao Reduzo.

- Procura-me, que te preciso!...

Desembainhou a espada, deu um viva a Sua Majestade! - e despencou-se, firme nos estribos, com o chapéu caído pra trás, sobre um ombro, preso pelo barbicacho. E a gauchada, reboleando as lanças, carregou, a gritos, fazendo tremer a terra e o ar.

O Reduzo, de pura pabulagem, atou a cola do pingo e logo riscou, escaramuçando, na culatra dos companheiros.

E foi mesmo no meio da carga, entre gritos, juras, palavrões, tiros, pontaços de espadas e coriscos de lanças, pechadas de cavalos, foi nesse berzabum do entrevero que o Costinha industriou o chiru;

- Tu, sai já; vai direito lá em casa, mas não chegues. A Talapa, depois d’amanhã, de noite, se casa, à força, com o ilhéu… Tu, mata cavalos, boleia e monta os que precisares… arrebenta-te, mas chega antes do casamento... Não digas a ninguém, nem lá em casa, que me viste, nem que sabes de mim... Mas vai ao velho Severo, mete-te lá, custe o que custar e acha jeito de dizer, que ela ouça, que o coco verde manda novas à melancia... Ela entende. Compreendes?... Eu sou o Coco Verde, ela é a Melancia... Só nós sabemos isso... e tu, agora. Vai. Tu vais adiante; logo mais eu sigo, se não morrer neste revira. Vai, Reduzo!... Coco verde... Melancia... Não esqueças... Abaixa-te!... abai!...

E enquanto o chiru se deitava no pescoço do cavalo e uma lança de três pontas escorregava-lhe por cima do espinhaço, o Costinha, com um tiro de pistola derrubava um gadelhudo lanceador… e continuava o sermão:

- Olha, não brigues… pra não perder tempo... Olha… é depois d’amanhã... Se dormires, se comeres no caminho, não chegas a tempo!... Sempre a meia rédea, Reduzo! Eu não posso desertar agora... Senão, eu ia... Vou logo… amanhã. Tu, agora!... já sabes:

- Coco verde manda novas a Melancia... Diz como quem não quer... Só ela entende… O que é preciso é que ela ouça...

- Acuda aquele, patrãozinho, que eu tempero estes!…

Isso disse o chiru e esporeando o flete atirou-o contra dois desalmados que iam degolar um ferido… emborcou-os a patadas e logo gritou ao moço:

- Já sei tudo! Deus ajude! Lá te espero!...

E riscou campo fora, rumo da querência, ainda batendo na boca, num pouco caso dos castelhanos!

E bateu na marca!... Boleou e mudou cavalos alheios, pediu outros no caminho, tomou um, à força, largou os arreios porque rebentou-se-lhe o travessão e não tinha tempo para remendá-lo, mas com duas braças de sol, na tarde do casamento, veio dar no velho Severo, em pêlo - pelego, e freio -, as boleadeiras na cintura, o facão atravessado no cinto, e sem mais nada; moído, entransilhado, estrompado, varado de fome, com sono, com frio, mas ainda de olho vivo e língua pronta, contando uma rodela mui deslavada..., que vinha de casa, andava campeando umas tambeiras... e uma vaca mocha, que não apareciam no gado manso, havia dois dias!...

O velho Severo pasmou...

- Uê! chiru!... Pois tu não tinhas ido com o seu Costinha?

- Eu?... Não senhor, patrão! Fui só levar uns cavalos até o meio do caminho e dei volta. Diz que lá bala é como chuva… e lança, como roseta!... Não vê!... E dele mesmo, nem notícia nenhuma, té agora... Vancê dá licença de campear os alimais?

- Deixa isso pra amanhã. Hoje estamos de festa. Fica aí, pra tomares um copo de vinho e comeres uns doces à saúde do noivado... Vai pra o galpão...

- Sim, senhor patrão: Deus lhe pague. Eu hei de fazer uma saúde, sim senhor...

- Pois sim, pois sim; vai!

O sorro entrou no galinheiro...

Quando apeou-se, o chiru estava de pernas duras; agüentou-se como um tigre, pra não dormir.

Daí a pouco pegaram a jantarola. O casamento ia ser de noite, depois da comida; depois, baile. Havia uns quantos cantadores, e violas; dava pra dançar a tirana, o anu e a mancada na casa-grande e no terreiro.

O Reduzo foi se fazendo de sancho rengo... e foi se encostando pra janela da sala de jantar..., e por ali foi comendo e bebendo, como soldado estradeiro, que não se aperta...

A noiva estava como um defunto: branca, esverdeada, de olhos fundos e chorando sem alívio; a negra ama, atrás dela, muito retinta, só mexia o branco dos olhos, parecia uma alma penada, do purgatório...

O ilhéu é que estava solto!...

Parecia que tinha bicho-carpinteiro, o desgraçado!...

Só estava era meio vendido com o jeito da noiva, mas fingia não se dar por achado, o velhaco...

Um convidado levantou-se e fez uma saúde; depois outro, e outro e outro; cada um fazia o seu verso. Havia risadas, o noivo agradecia..., a noiva chorava.

Os convidados aplaudiam; moças também botaram versos; os rapazes respondiam; foi se virando tudo numa alegria geral.

Nisto o capataz da estância chegou à porta e pediu licença pra oferecer um verso à saúde do noivado, e botou uma décima bem bonita. Outros, posteiros e agregados, também.

Nesse entrementes o velho Severo perguntou:

- Que é do Reduzo? Oh! Chiru?...

- Pronto, patrão, respondeu o caboclo.

- Então?… e a saúde prometida?

- Já vai, sim senhor!

E amontoando-se para a mesa, bem junto dos que estavam sentados, frente a frente dos noivos, olhando pra sia Talapa o chiru levantou o copo e disse:

“Eu venho de lá bem longe,

Da banda do Pau Fincado:
Melancia, Coco Verde
Te manda muito recado!”

E enquanto todos se riram e batiam palmas, enquanto o ilhéu se arreganhava numa gargalhada gostosa, e o velho Severo, mui jocoso, gritava - gostei, chiru! outra vez! - e enquanto se fazia uma paradita no barulho, a noiva se punha em pé como uma mola, e com uma mão grudada no braço da ama, já não chorava, tinha um cobreado no rosto e os olhos luziam como duas estrelas pretas!… Lindaça ficou, como uma Nossa Senhora! O Reduzo aproveitou o soflagrante e soltou outro verso:

“Na polvadeira da estrada

O teu amor vem da guerra...
Melancia desbotada!...
Coco Verde está na terra!…”

Amigo! Nem lhe sei contar o resto!... A noiva atirou-se pra trás e pegou aos gritos.

A gente da mesa levantou-se toda; o mulherio correu, pra acudir... O padre-vigário benzia pra os lados...

O ilhéu olhou para o Reduzo, viu-lhe o facão atravessado… e tomado dum mau espírito, gritou furioso e escarlate:

- Foi esse negro, com tanta arma, que estarreceu a menina!

Um que estava perto do chiru gritou-lhe na cara:

- Que desaforo é este?...

O Reduzo - cuê-pucha! índio dente-seco! - largou-lhe os cinco mandamentos, de em cheio!

Porém caíram-lhe em cima; foi uma desgraceira!

O ilhéu, do outro lado da mesa sampou-lhe com uma botija de bebida, que acertou bem entre o queixo e o ouvido do chiru...

Fechou o salseiro, nem se sabia bem com quem.

Nessa inferneira o Reduzo mergulhou por baixo da mesa e quando surdiu, foi para arriar o braço, dar uma volta na traíra e reiunar o ilhéu…

E antes que o picassem - que o picavam! - pulou por uma janela e se foi ao galpão onde montou no primeiro matungo que encontrou e abriu os panos!…

O resto é simples: passados dois dias chegava o Costinha, como bagual com couro na cola; e apresentou-se ao velho Severo, pedindo a mão da moça. O velho teve de desembuchar, contar o compromisso em que estava e que até havia se demorado o casamento por causa dum estropício mui bruto, que tinha havido... O Costinha não quis saber de nada… armou banzé...; veio a moça à fala...

Vancê imagina: rebentou o laço pra mais de quatro...

Pra não afrontar o velho Severo, o Reduzo teve de andar escondido. Tempos depois do Costinha já casado, então o chiru tomou conta dum posto; depois passou a capataz.

Era o confiança da casa.

Veja vancê que artes de namorados: Melancia… Coco Verde!…




(Ilustração: Iberê Camargo)


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