domingo, 25 de dezembro de 2011

ROSÁRIO, de Vinícius de Moraes








E eu que era um menino puro

Não fui perder minha infância

No mangue daquela carne!

Dizia que era morena

Sabendo que era mulata

Dizia que era donzela

Nem isso não era ela

Era uma moça que dava.

Deixava... mesmo no mar

Onde se fazia em água

Onde de um peixe que era

Em mil se multiplicava

Onde suas mãos de alga

Sobre o meu corpo boiavam

Trazendo à tona águas-vivas

Onde antes não tinha nada.

Quanto meus olhos não viram

No céu da areia da praia

Duas estrelas escuras

Brilhando entre aquelas duas

Nebulosas desmanchadas

E não beberam meus beijos

Aqueles olhos noturnos

Luzindo de luz parada

Na imensa noite da ilha!

Era minha namorada

Primeiro nome de amada

Primeiro chamar de filha

Grande filha de uma vaca!

Como não me seduzia

Como não me alucinava

Como deixava, fingindo

Fingindo que não deixava!

Aquela noite entre todas

Que cica os cajus! travavam!

Como era quieto o sossego

Cheirando a jasmim-do-cabo!

Lembro que nem se mexia

O luar esverdeado.

Lembro que longe, nos longes

Um gramofone tocava,

Lembro dos seus anos vinte

Junto aos meus quinze deitados

Sob a luz verde da lua.

Ergueu a saia de um gesto

Por sobre a perna dobrada

Mordendo a carne da mão

Me olhando sem dizer nada

Enquanto jazente eu via

Como uma anêmona n'água

A coisa que se movia

Ao vento que a farfalhava.

Toquei-lhe a dura pevide

Entre o pêlo que a guardava

Beijando-lhe a coxa fria

Com gosto de cana-brava.

Senti, à pressão do dedo

Desfazer-se desmanchada

Como um dedal de segredo

A pequenina castanha

Gulosa de ser tocada.

Era uma dança morena

Era uma dança mulata

Era o cheiro de amarugem

Era a lua cor de prata

Mas foi só aquela noite!

Passava dando risada

Carregando os peitos loucos

Quem sabe pra quem, quem sabe!

Mas como me perseguia

A negra visão escrava

Daquele feixe de águas

Que sabia ela guardava

No fundo das coxas frias!

Mas como me desbragava

Na areia mole e macia!

A areia me recebia

E eu baixinho me entregava

Com medo que Deus ouvisse

Os gemidos que não dava!

Os gemidos que não dava

Por amor do que ela dava

Aos outros de mais idade

Que a carregaram da ilha

Para as ruas da cidade.

Meu grande sonho da infância

Angústia da mocidade.





(Ilustração: Gauguin – nevermore)


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