sábado, 31 de dezembro de 2011

UM MODELO DE ATLETA, de Philip Roth





[...] aos vinte e três anos, ele era para todos nós a autoridade mais reverenciada e mais exemplar que conhecíamos, um jovem com convicções, simpático, cortês, justo, zeloso, estável, gentil, vigoroso, muscular – ao mesmo tempo líder e companheiro. E uma figura ainda mais gloriosa naquela tarde em fins de junho – antes de a epidemia de 1944 efetivamente dominar a cidade, antes que, para um bom número de nós, nossos corpos e nossas vidas fossem drasticamente deformados –, quando marchamos todos atrás dele para o grande e sujo campo a que se chegava após cruzarmos a rua nos fundos do pátio e descermos um pequeno declive. Era lá que treinava o time de futebol do ginásio e onde ele nos mostraria como arremessar o dardo. Usava o calção curto e acetinado apropriado para as competições de atletismo, bem como camiseta sem mangas e sapatilhas com travas. Caminhando à frente do grupo, levava o dardo despreocupadamente na mão direita.

Ao chegarmos, o campo estava vazio e o Sr. Cantor nos reuniu na extremidade próxima à avenida Chancellor, onde cada um pôde examinar e sopesar o dardo, uma fina haste de metal pesando pouco menos de novecentos gramas e medindo cerca de dois metros e sessenta centímetros. Mostrou-nos as várias empunhaduras que podiam ser usadas na parte envolta em tecido grosso, entre elas sua favorita. Fez uma breve explanação histórica sobre como a lança fora utilizada na caça pelas sociedades primitivas antes da invenção do arco e flecha, e como o dardo já constava na primeira Olimpíada na Grécia do século VII a. C. O primeiro arremessador de dardos teria sido Hércules, o grande guerreiro e exterminador de monstros, que, segundo o Sr. Cantor, era o filho gigantesco do supremo deus grego, Zeus, e o homem mais forte da Terra. Terminada a aula, disse que faria os exercícios de aquecimento, e durante uns vinte minutos o observamos executar flexões, alguns meninos na margem do campo se esforçando para imitar seus movimentos. Sentado no chão com as pernas esticadas para cada lado do corpo, disse que era importante alongar sempre os músculos do ventre, muito suscetíveis aos estiramentos. Usou o dardo como um bastão em vários exercícios, contorcendo-se e virando-se para trás com a haste acomodada como uma canga sobre os ombros enquanto se ajoelhava, se acocorava e saltava para a frente, além de dobrar e girar o torso. Mais tarde, pôs-se de cabeça para baixo e percorreu um amplo círculo apoiado nas mãos, coisa que alguns garotos tentaram fazer. Com a boca alguns centímetros acima do solo, informou que estava executando tais manobras por não haver ali uma barra fixa a fim de alongar os músculos da parte superior do corpo. Terminou dobrando o corpo para a frente e para trás, quando então mantinha os calcanhares plantados no chão e empurrava os quadris para cima, conseguindo curvar as costas de forma excepcional. Quando anunciou que ia dar duas voltas correndo em torno do campo, todos o seguimos, mal conseguindo nos manter em seus calcanhares mas fingindo que nós é que estávamos nos aquecendo para o lançamento. Depois disso, durante alguns minutos treinou a corrida ao longo de uma linha reta sem completar o arremesso, carregando, com o braço erguido, o dardo apontado para a frente e paralelo ao chão.

Quando estava pronto para começar, disse-nos o que devíamos observar, desde a corrida de aproximação até a última passada e o arremesso. Sem o dardo, demonstrou todos os estágios em câmara lenta, descrevendo-os à medida que ia executando cada gesto. “Não é mágica, meninos, e também não é nenhuma brincadeirinha. Mas, se vocês trabalharem para valer e treinarem com afinco – se, primeiro, capricharem nos exercícios de equilibro; segundo, nos exercícios de mobilidade; e, terceiro, nos exercícios de flexibilidade –, se seguirem rigorosamente o programa de levantamento de peso e se o arremesso de dardo for importante para vocês, garanto que vão obter um bom resultado. Em matéria de esporte, tudo exige determinação. Os três D: determinação, dedicação e disciplina – e isso é mais que metade do caminho andado.”

Precavido como de hábito, insistiu em que, por questões de segurança, ninguém poderia correr para dentro do campo em nenhum momento. Tínhamos de assistir a tudo de onde estávamos. Falou isso duas vezes. Não podia ter sido mais sério, já que a seriedade era a melhor demonstração de seu compromisso com a função que exercia.

Enfim arremessou o dardo. Dava para ver cada um de seus músculos retesados quando o lançou no ar. Emitiu um grito estrangulado de esforço (que todos nós imitamos durante muitos dias), um ruído que expressava sua essência – um brado de guerra autêntico na luta pela excelência. No instante que o dardo se desprendeu de sua mão, ele começou a dançar para recobrar o equilíbrio e não ultrapassar a linha de falta que traçara no chão com as travas da sapatilha. Enquanto isso, observava a trajetória do dardo, o alto e longo arco traçado bem acima do campo. Nenhum de nós nunca assistira a um ato atlético tão lindamente executado diante de nossos olhos. O dardo ultrapassou a linha de cinquenta jardas, se aproximou da marca de trinta jardas no campo oposto e, ao aterrissar, a haste vibrou quando a ponta de metal penetrou diagonalmente no solo graças à força adquirida em pleno voo.

Soltamos urros de aprovação e começamos a pular de alegria. Toda a trajetória do dardo tivera origem nos músculos elásticos do Sr. Cantor. Ele era o corpo – pés, pernas, nádegas, torso, braços, ombros e até o curto e grosso pescoço taurino – que, com todas as suas partes agindo em uníssono, havia potencializado o arremesso. Como se o fiscal de nosso pátio houvesse se transformado num homem primitivo caçando alimento nas planícies onde buscava provisões, dominando as regiões bravias com a potência de seus braços. Nunca ninguém nos impressionou tanto. Por meio dele, havíamos escapado à pequena história de nossa vizinhança para entrar na saga milenar de nossos ancestrais.

Ele lançou o dardo várias vezes naquela tarde, cada arremesso finamente coordenado e poderoso, cada arremesso acompanhado por aquela mescla ecoante de grito e grunhido, e cada qual, para nosso deleite, aterrissando vários metros mais longe que o anterior. Correndo com o dardo acima da cabeça, esticando o braço do arremesso para trás do corpo, trazendo-o à frente para soltar o dardo bem acima do ombro e enfim o impelindo num gesto explosivo, ele nos pareceu a própria imagem da invencibilidade.





(Nêmesis; tradução de Jorio Dauster)





(Ilustração: Hércules Hércules do Fóro Boário", em bronze, com a maçã das Hespérides; romano, século II a.C. - Museus Capitolinos, Roma).












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