sexta-feira, 26 de dezembro de 2025
O BILHETE DO VIZINHO DO FBI, Miranda July
Desculpe incomodar você, mas tive a impressão de que alguém estava usando uma teleobjetiva para tirar fotos da sua casa pela janela. Se era alguém de seu conhecimento, perdão pelo mal-entendido, se não, tenho anotados marca/modelo/placa do veículo. Brian (o vizinho) e seu número de telefone
Não que fosse necessário usar uma teleobjetiva, já que nossas janelas da frente são enormes e sem cortinas. Às vezes, antes de entrar em casa, paro para olhar Harris e Sam inocentemente entretidos. Harris dando alguma explicação silenciosa para Sam ou segurando Sam bem no alto. Sinto muita ternura por eles. Tente memorizar esse sentimento, digo a mim mesma. De perto eles são exatamente as mesmas pessoas que você vê daqui.
De cara, descobrimos que tipo de vizinho Brian era. O vizinho do FBI. Se há algo que aprendemos com Brian é que ser do FBI não é tão secreto quanto ser da CIA. Ele usa seu colete (à prova de balas?) com a insígnia do FBI muito mais do que o necessário. É como se alguém do Dodgers regasse a grama de uniforme. Toda a vizinhança diria algo tipo, Já entendemos, cara, você joga no Dodgers.
Então a primeira coisa que Harris fez depois que li o bilhete em voz alta foi zombar que é claro que o vizinho do FBI havia “flagrado” alguém com uma “teleobjetiva”. Em seguida, não fez mais nada. Estava ocupado e achou que não devia se aprofundar.
— Mas é meio assustador, não acha?
— As pessoas tiram fotos de tudo hoje em dia — disse ele, saindo da sala.
— Você não acha que devo ligar pra ele?
Mas Harris não ouviu.
— Ligar pra quem? – perguntou Sam.
Fiquei ali segurando o bilhete com aquele sentimentozinho de abandono que a gente tem milhares de vezes por dia no convívio doméstico. Podia ter chorado, mas por qual motivo? Não que eu tivesse que fofocar com meu marido sobre qualquer coisinha; para isso servem os amigos. Harris e eu somos mais formais, como dois diplomatas que não podem afirmar se um envenenou a bebida do outro. Sempre sedentos mas desejando que o outro dê o primeiro gole.
Você primeiro.
Não, você primeiro!
De forma alguma, só depois de você.
Esse pisar em ovos pode soar estressante, mas eu tinha certeza de que nós dois riríamos por último. Quando todo mundo estivesse de saco cheio de nós, já estaríamos em outra, tendo uma lua de mel. Talvez aos sessenta anos.
Minha amiga Cassie diz Te amo! toda vez que termina uma ligação com o marido. Sempre que ouço morro de vergonha por ela.
Mas eu o amo, diz ela.
Você só estava dizendo o quão desolada e presa se sente.
Então ela dá uma risadinha que indica que não tem controle de nada. Eu não espero que ela seja honesta com o marido mas que no mínimo abra o jogo comigo! Os relacionamentos dos outros nunca fazem sentido. Uma vez consegui que Jordi, minha melhor amiga, gravasse uma conversa casual entre ela e sua esposa. Jordi é uma escultora brilhante que sabe teorizar de maneira convincente sobre qualquer assunto, mas nessa conversa mal conseguiu dizer uma só palavra enquanto sua esposa vociferava sobre a estupidez de um programa popular da TV. Vez ou outra Jordi murmurava uma pergunta; mas na maior parte do tempo ria das coisas que Mel dizia. Achei que podia estar envergonhada, mas não.
— Eu adoro que Mel é muito segura de si. Adoro pessoas teimosas. Você é assim.
Me senti tão lisonjeada que logo me habituei à dinâmica delas.
— Esse programa é tosco mesmo — respondi. — Mel tem razão.
Meus amigos estão sempre me presenteando com bobagens assim — capturas de tela de conversas sobre sacanagens, e-mails paras as mães — porque sempre quero saber como é ser outra pessoa. O que será que estávamos fazendo? Que diabos acontecia o tempo todo neste planeta? É claro que nenhum desses artefatos tinha qualquer significado; era como tentar segurar a fumaça pelo punho. Que punho?
Coloquei o bilhete do vizinho em cima da minha mesa. Também estava ocupada, mas sempre tenho tempo para me preocupar. A bem da verdade, é provável que já estivesse preocupada com alguém usando uma teleobjetiva para fotografar através das nossas janelas quando o bilhete chegou. Preocupar não é o verbo certo — esperar, talvez. Eu já esperava esse acontecimento e ele estava acontecendo desde o meu nascimento, ou algo por aí. Se não fosse esse homem do outro lado da janela, seria Deus, ou meus pais, ou meus verdadeiros pais, que na verdade são só os meus pais, ou meu verdadeiro eu, que há tempos esperava o momento certo para assumir o controle de tudo e me tirar da jogada. Tudo que peço é que seja alguém que realmente queira cuidar de mim. Demorei dois dias para ligar para meu vizinho Brian porque estava ocupada saboreando minha situação, aquele momento em que alguém de quem estou a fim finalmente responde à mensagem e você quer dominar a jogada por mais tempo.
Os relacionamentos dos outros nunca fazem sentido
— É engraçado ligar pra alguém que mora do lado — comentei. — Bastava eu abrir a janela.
— Não estou em casa agora.
— Beleza.
Ele disse que o homem havia estacionado perto da esquina e que não tinha fotografado outras casas.
— Talvez estivesse só admirando sua casa – sugeriu Brian.
Não gostei. Quer dizer, é uma casa bonita, mas peralá. Não passei esses dois dias ensaiando essa ligação à toa, só porque minha casa é bonita.
— Sou uma figura quase pública — respondi, exagerando um pouquinho na falsa modéstia. Falsa modéstia é uma coisa bem difícil de dosar, é como saber medir bem a quantidade de chantilly que a gente quer usar da lata. Ele disse que estava preocupado justamente por isso, por causa da minha notoriedade. Respondi humilde, “Ah, obrigada, que bom que você está de olho”.
— Meu trabalho é esse – respondeu Brian.
— Certo – respondi, caindo na real.
Eu não sou um nome conhecido. Não vou me aprofundar nos detalhes chatos das coisas que faço, mas imagine uma mulher que teve sucesso por muitos meios desde a juventude e seguiu assim com muita constância, sempre orbitando suas preocupações centrais numa espécie de estado de fuga extático, certa de que não havia outro caminho a seguir — sua vida toda seria essa única conversa com Deus. Deus talvez seja a palavra errada. O Universo. O Subjacente. Eu trabalho numa garagem adaptada. Uma das pernas da minha mesa é menor que as outras e todos os dias dos últimos quinze anos eu ensaiei colocar um calço, mas meu trabalho é cheio de urgências diárias — estou sempre num momento decisivo; tudo está sempre prestes a acontecer. Às cinco da tarde, antes de entrar em casa, tenho que começar a desacelerar a mente, como o astronauta Buzz Aldrin se preparando para esvaziar a máquina de lavar louça logo depois de voltar da Lua. Não fale sobre a Lua, digo para meus botões. Pergunte a todos como foi seu dia.
Brian, o vizinho, perguntou se eu conhecia alguém que queria comprar uma picape.
— É um F-150 modelo 2013. Estou de mudança e preciso me livrar de muitas coisas.
— Ah! Onde vai morar?
— Não posso divulgar meu novo endereço — disse Brian, e me desculpei pela pergunta.
Falsa modéstia é uma coisa bem difícil de dosar, é como saber medir bem a quantidade de chantilly que a gente quer usar da lata
— Imagino que muitos detalhes da sua vida sejam ultrassecretos.
— Pois é – respondeu, numa voz suave. — Mas adorei esse bairro. Todas as árvores e o jeito que os coiotes uivam à noite.
— Eu também adoro. São muitos coiotes! Dezenas, parece.
— Mais.
— Pois é.
Não falamos mais nada e eu não quis romper o silêncio — parecia que ele, sendo um agente do FBI, saberia a hora certa de fazer isso. Mas continuamos assim até que comecei a sorrir para mim mesma, fazendo uma careta sutil de constrangimento, e mesmo assim o silêncio permaneceu, mas o nervosismo foi embora e comecei a pensar no silêncio como algo que estávamos praticando juntos, como uma jam session, mas aí a sensação passou e fiquei completa e inexplicavelmente triste. Meus olhos se encheram de lágrimas e enfim o silêncio foi rompido porque funguei e ele disse Pois é mais uma vez, resignado. E aí, como se nada tivesse acontecido (e de fato nada tinha acontecido), ele voltou a falar do cara com a teleobjetiva.
— Por segurança, anotei a placa dele. Posso te mandar por mensagem quando chegar em casa.
— Com certeza — respondi. — Perfeito.
Eu sabia que não devia contar essa conversa para o Harris. Ele ia levantar as sobrancelhas e sorrir de cansaço. O quê?, Você fazendo a íntima com um estranho? Como assim?
Sempre tento ser a pessoa mais reservada possível. Em casa, tento fazer a roda da vida doméstica girar para que possamos levar uma vida tranquila e saudável, sem desastres e doenças. Isso exige um planejamento contínuo. Por exemplo, faço sete waffles para Sam todo fim de semana, recheio com ovos tipo extra, para que mantenha uma dieta rica em proteína a semana inteira. Mas planejar isso tudo dá trabalho, não é divertido — então tento equilibrar as coisas com espontaneidade, quiçá inventando uma brincadeira para o café da manhã ou uma cobertura nova para o waffle. Segundo Harris, eu só quero ter o controle de tudo. Quem tem razão? Nós dois temos, mas admiro o estoicismo velho-mundista de Harris. Ele inclusive se veste à moda antiga, como um pedreiro ou comerciante. Sal da terra é algo que se poderia dizer dele, mas ninguém jamais diria que eu sou o sal da terra. Não que eu seja uma pessoa ruim, mas entre nós dois eu com certeza sou pior. Estou o tempo todo mordendo a língua — literalmente pressionando gentilmente a língua entre os dentes — e contando até cinquenta. E aí a vontade de dizer algo desnecessário passa.
(De quatro; tradução de Bruna Beber)
(Ilustração: Edward Hopper - night windows, 1928)
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