sexta-feira, 26 de dezembro de 2025

O BILHETE DO VIZINHO DO FBI, Miranda July

   


Desculpe incomodar você, mas tive a impressão de que alguém estava usando uma teleobjetiva para tirar fotos da sua casa pela janela. Se era alguém de seu conhecimento, perdão pelo mal-entendido, se não, tenho anotados marca/modelo/placa do veículo. Brian (o vizinho) e seu número de telefone

Não que fosse necessário usar uma teleobjetiva, já que nossas janelas da frente são enormes e sem cortinas. Às vezes, antes de entrar em casa, paro para olhar Harris e Sam inocentemente entretidos. Harris dando alguma explicação silenciosa para Sam ou segurando Sam bem no alto. Sinto muita ternura por eles. Tente memorizar esse sentimento, digo a mim mesma. De perto eles são exatamente as mesmas pessoas que você vê daqui.

De cara, descobrimos que tipo de vizinho Brian era. O vizinho do FBI. Se há algo que aprendemos com Brian é que ser do FBI não é tão secreto quanto ser da CIA. Ele usa seu colete (à prova de balas?) com a insígnia do FBI muito mais do que o necessário. É como se alguém do Dodgers regasse a grama de uniforme. Toda a vizinhança diria algo tipo, Já entendemos, cara, você joga no Dodgers.

Então a primeira coisa que Harris fez depois que li o bilhete em voz alta foi zombar que é claro que o vizinho do FBI havia “flagrado” alguém com uma “teleobjetiva”. Em seguida, não fez mais nada. Estava ocupado e achou que não devia se aprofundar.

— Mas é meio assustador, não acha?

— As pessoas tiram fotos de tudo hoje em dia — disse ele, saindo da sala.

— Você não acha que devo ligar pra ele?

Mas Harris não ouviu.

— Ligar pra quem? – perguntou Sam.

Fiquei ali segurando o bilhete com aquele sentimentozinho de abandono que a gente tem milhares de vezes por dia no convívio doméstico. Podia ter chorado, mas por qual motivo? Não que eu tivesse que fofocar com meu marido sobre qualquer coisinha; para isso servem os amigos. Harris e eu somos mais formais, como dois diplomatas que não podem afirmar se um envenenou a bebida do outro. Sempre sedentos mas desejando que o outro dê o primeiro gole.

Você primeiro.

Não, você primeiro!

De forma alguma, só depois de você.

Esse pisar em ovos pode soar estressante, mas eu tinha certeza de que nós dois riríamos por último. Quando todo mundo estivesse de saco cheio de nós, já estaríamos em outra, tendo uma lua de mel. Talvez aos sessenta anos.

Minha amiga Cassie diz Te amo! toda vez que termina uma ligação com o marido. Sempre que ouço morro de vergonha por ela.

Mas eu o amo, diz ela.

Você só estava dizendo o quão desolada e presa se sente.

Então ela dá uma risadinha que indica que não tem controle de nada. Eu não espero que ela seja honesta com o marido mas que no mínimo abra o jogo comigo! Os relacionamentos dos outros nunca fazem sentido. Uma vez consegui que Jordi, minha melhor amiga, gravasse uma conversa casual entre ela e sua esposa. Jordi é uma escultora brilhante que sabe teorizar de maneira convincente sobre qualquer assunto, mas nessa conversa mal conseguiu dizer uma só palavra enquanto sua esposa vociferava sobre a estupidez de um programa popular da TV. Vez ou outra Jordi murmurava uma pergunta; mas na maior parte do tempo ria das coisas que Mel dizia. Achei que podia estar envergonhada, mas não.

— Eu adoro que Mel é muito segura de si. Adoro pessoas teimosas. Você é assim.

Me senti tão lisonjeada que logo me habituei à dinâmica delas.

— Esse programa é tosco mesmo — respondi. — Mel tem razão.

Meus amigos estão sempre me presenteando com bobagens assim — capturas de tela de conversas sobre sacanagens, e-mails paras as mães — porque sempre quero saber como é ser outra pessoa. O que será que estávamos fazendo? Que diabos acontecia o tempo todo neste planeta? É claro que nenhum desses artefatos tinha qualquer significado; era como tentar segurar a fumaça pelo punho. Que punho?

Coloquei o bilhete do vizinho em cima da minha mesa. Também estava ocupada, mas sempre tenho tempo para me preocupar. A bem da verdade, é provável que já estivesse preocupada com alguém usando uma teleobjetiva para fotografar através das nossas janelas quando o bilhete chegou. Preocupar não é o verbo certo — esperar, talvez. Eu já esperava esse acontecimento e ele estava acontecendo desde o meu nascimento, ou algo por aí. Se não fosse esse homem do outro lado da janela, seria Deus, ou meus pais, ou meus verdadeiros pais, que na verdade são só os meus pais, ou meu verdadeiro eu, que há tempos esperava o momento certo para assumir o controle de tudo e me tirar da jogada. Tudo que peço é que seja alguém que realmente queira cuidar de mim. Demorei dois dias para ligar para meu vizinho Brian porque estava ocupada saboreando minha situação, aquele momento em que alguém de quem estou a fim finalmente responde à mensagem e você quer dominar a jogada por mais tempo.

Os relacionamentos dos outros nunca fazem sentido

— É engraçado ligar pra alguém que mora do lado — comentei. — Bastava eu abrir a janela.

— Não estou em casa agora.

— Beleza.

Ele disse que o homem havia estacionado perto da esquina e que não tinha fotografado outras casas.

— Talvez estivesse só admirando sua casa – sugeriu Brian.

Não gostei. Quer dizer, é uma casa bonita, mas peralá. Não passei esses dois dias ensaiando essa ligação à toa, só porque minha casa é bonita.

— Sou uma figura quase pública — respondi, exagerando um pouquinho na falsa modéstia. Falsa modéstia é uma coisa bem difícil de dosar, é como saber medir bem a quantidade de chantilly que a gente quer usar da lata. Ele disse que estava preocupado justamente por isso, por causa da minha notoriedade. Respondi humilde, “Ah, obrigada, que bom que você está de olho”.

— Meu trabalho é esse – respondeu Brian.

— Certo – respondi, caindo na real.

Eu não sou um nome conhecido. Não vou me aprofundar nos detalhes chatos das coisas que faço, mas imagine uma mulher que teve sucesso por muitos meios desde a juventude e seguiu assim com muita constância, sempre orbitando suas preocupações centrais numa espécie de estado de fuga extático, certa de que não havia outro caminho a seguir — sua vida toda seria essa única conversa com Deus. Deus talvez seja a palavra errada. O Universo. O Subjacente. Eu trabalho numa garagem adaptada. Uma das pernas da minha mesa é menor que as outras e todos os dias dos últimos quinze anos eu ensaiei colocar um calço, mas meu trabalho é cheio de urgências diárias — estou sempre num momento decisivo; tudo está sempre prestes a acontecer. Às cinco da tarde, antes de entrar em casa, tenho que começar a desacelerar a mente, como o astronauta Buzz Aldrin se preparando para esvaziar a máquina de lavar louça logo depois de voltar da Lua. Não fale sobre a Lua, digo para meus botões. Pergunte a todos como foi seu dia.

Brian, o vizinho, perguntou se eu conhecia alguém que queria comprar uma picape.

— É um F-150 modelo 2013. Estou de mudança e preciso me livrar de muitas coisas.

— Ah! Onde vai morar?

— Não posso divulgar meu novo endereço — disse Brian, e me desculpei pela pergunta.

Falsa modéstia é uma coisa bem difícil de dosar, é como saber medir bem a quantidade de chantilly que a gente quer usar da lata

— Imagino que muitos detalhes da sua vida sejam ultrassecretos.

— Pois é – respondeu, numa voz suave. — Mas adorei esse bairro. Todas as árvores e o jeito que os coiotes uivam à noite.

— Eu também adoro. São muitos coiotes! Dezenas, parece.

— Mais.

— Pois é.

Não falamos mais nada e eu não quis romper o silêncio — parecia que ele, sendo um agente do FBI, saberia a hora certa de fazer isso. Mas continuamos assim até que comecei a sorrir para mim mesma, fazendo uma careta sutil de constrangimento, e mesmo assim o silêncio permaneceu, mas o nervosismo foi embora e comecei a pensar no silêncio como algo que estávamos praticando juntos, como uma jam session, mas aí a sensação passou e fiquei completa e inexplicavelmente triste. Meus olhos se encheram de lágrimas e enfim o silêncio foi rompido porque funguei e ele disse Pois é mais uma vez, resignado. E aí, como se nada tivesse acontecido (e de fato nada tinha acontecido), ele voltou a falar do cara com a teleobjetiva.

— Por segurança, anotei a placa dele. Posso te mandar por mensagem quando chegar em casa.

— Com certeza — respondi. — Perfeito.

Eu sabia que não devia contar essa conversa para o Harris. Ele ia levantar as sobrancelhas e sorrir de cansaço. O quê?, Você fazendo a íntima com um estranho? Como assim?

Sempre tento ser a pessoa mais reservada possível. Em casa, tento fazer a roda da vida doméstica girar para que possamos levar uma vida tranquila e saudável, sem desastres e doenças. Isso exige um planejamento contínuo. Por exemplo, faço sete waffles para Sam todo fim de semana, recheio com ovos tipo extra, para que mantenha uma dieta rica em proteína a semana inteira. Mas planejar isso tudo dá trabalho, não é divertido — então tento equilibrar as coisas com espontaneidade, quiçá inventando uma brincadeira para o café da manhã ou uma cobertura nova para o waffle. Segundo Harris, eu só quero ter o controle de tudo. Quem tem razão? Nós dois temos, mas admiro o estoicismo velho-mundista de Harris. Ele inclusive se veste à moda antiga, como um pedreiro ou comerciante. Sal da terra é algo que se poderia dizer dele, mas ninguém jamais diria que eu sou o sal da terra. Não que eu seja uma pessoa ruim, mas entre nós dois eu com certeza sou pior. Estou o tempo todo mordendo a língua — literalmente pressionando gentilmente a língua entre os dentes — e contando até cinquenta. E aí a vontade de dizer algo desnecessário passa.



(De quatro; tradução de Bruna Beber)



(Ilustração: Edward Hopper - night windows, 1928)

terça-feira, 23 de dezembro de 2025

CANCIÓN DEL ESPOSO A SU AMADA /CANÇÃO DO ESPOSO PARA A AMADA, de Eunice Odio

 


1.     

Asomada a mi pecho

Tatuada en él como la edad

y el daño.

Como una suave grey de colinas

cuyo rumbo retorna con el alba,

Habla mi amada

con su amor que tiene

apenas pecho diurno y voz descalza.

A mi sombra

se bordearon de pulpa sus caderas.

Por mí arrea con sus pechos

el ganado del alba,

Y la tarde a su paso se quebranta,

como de junco herido

y laurel entornado.

Párpados transitados

de nieve y mediodía,

Pozo donde mi boca

desmedida resbala

como torrente de paloma

y sal humedecida.

– Sobre los muslos te pusieron

racimos de ira y vocación de besos.

Yo haré que de tus muslos

bajen manojos de agua,

y entrecortada espuma,

y rebaños secretos.

Ven,

Amada.

Los árboles

todos tienen tu cándida estatura,

y tu párpado caído,

y tu gesto mojado,

Edificio de alondras

habitado de climas

donde legisla el sol

sobre viñedos de oro.

A tu sombra

me encontrarán los pájaros salvajes.

Tu voz de aire caído

entre cuatro azucenas,

desfilará en mi oído

como acude la tarde.

Ven,

te probaré con alegría.

Tú soñarás conmigo

esta noche.

 

Tradução de Luiza Nilo Nunes:

 

Caída no meu peito

Tatuada no meu peito como a idade

e o desastre.

Como uma frágil irmandade de colinas

norteadas pela manhã,

Fala a minha amada

com seu amor que mal

tem peito diurno e voz descalça.

À minha sombra

as suas ancas rodearam-se de pomos.

Para mim ela aparelha com seus seios

o gado da manhã,

E quebra-se o poente à sua passagem,

como de junco ferido

e loureiro derrubado.

Pálpebras transitadas

de neve e meio-dia,

Tanque onde se afoga

a minha boca profunda

como correntes de pombas

e sal humedecido.

– Sobre as coxas puseram-te

cachos de cólera e vocação de beijos.

De tuas coxas farei

descer cardumes de água,

e espuma interrompida,

e secretos rebanhos.

Vem,

Amada.

Todas as árvores

têm tua cândida altura,

e tua pálpebra descida,

e teu gesto molhado,

Prédio de cotovias

habitado por febres

onde ministra o sol

sobre vinhedos de ouro.

À tua sombra

hão de encontrar-me os pássaros selvagens.

Tua voz de melancólico sopro

entre quatro açucenas,

soará em meus ouvidos

como o chamado da tarde.

Vem,

provar-te-ei com alegria.

Tu sonharás comigo

esta noite.

 

(Os elementos terrestres e outros poemas, 2020).

 

(Ilustração: Frida Castelli)



sábado, 20 de dezembro de 2025

PARA AGARRAR OS SONHOS E CAVALGAR O DORSO DOS TIGRES, Marcelo Mirisola





Querer dissimular o ódio dentro de si, sufocá-lo, é algo mais desgastante e, evidentemente, menos prazeroso do que simplesmente usufruir, sorvê-lo até o limite da sabotagem, da autocensura.

Em outras palavras, qualquer ódio é justificável. Imaginem uma hidroelétrica. Agora, imaginem o ódio como a força que movimenta as turbinas dessa Itaipu dentro de seu peito, qual o sentido da represa senão gerar movimento e energia? O problema todo é iluminar cemitérios (corre-se o risco), mas está valendo: pela simples ação de odiar, pelo fato de soltar as rédeas e deixar o ódio correr solto.

Eu odeio, mas não sei odiar. Bem, isso não interessa. Não estou aqui para falar dos meus cemitérios iluminados.

Voltando. O que eu quero dizer é que, uma vez que o ódio seja bem alimentado e bem distribuído, qualquer ódio será autossuficiente. Se embalado com rancor tanto melhor, e mais: qualquer pretexto é válido para odiar e justifica-se por si mesmo, tanto faz se as “razões” que brotam desse ódio são oceânicas ou microscópicas, legítimas ou ilegítimas. Portanto, o ódio não precisa nem de esclarecimentos nem de álibis. Sob esse ponto de vista, o ódio é amoroso e anfitrião. Independentemente da gravidade do ocorrido, o ódio não obedece a hierarquias, nem faz distinções de gravidade. Por exemplo, odiar a velhinha que fechou a porta do elevador na sua cara é a mesma coisa que odiar o político que trocou seu voto por um loft em Miami.

Qual a diferença da esposa que traiu o marido com o entregador de pizzas para o vizinho do 52, que acende incenso todo final de tarde? Em se tratando de ódio, nenhuma. Odeia-se e ponto final.

O ódio é um sentimento gratuito e democrático – e é recíproco e desproporcional. Por si só, não passa de nuvem, fútil e torpe, à guisa dos crimes que cometemos em seu nome. O ódio seria irrelevante se não o remoêssemos, e é aí que mora a besta: no apto. 52. O idiota metido a zen-budista, seria capaz de empalá-lo com as varetinhas de incenso, acredite nisso.

O remoer é o que mata, é o que ocupa o lugar da contemplação, do recreio merecido, daquilo que os místicos mais sádicos chamam de paz. E esse remoer pode ser experimentado, muito mais violentamente, através da busca de sentimentos que tenham como objetivo anular o ódio. A compaixão e o perdão são como gasolina na fogueira – e a culpa é a cereja em cima desse bolo explosivo. Se voce não consegue extrair tesão da culpa (isso é para profissionais), tente ao menos exercitar o amor: é o caminho mais fácil para se chegar ao ódio. Sabe por quê?

Porque o amor exige empenho, disciplina e trabalho. Ou não exige nada. Somente os CDFs e os autistas amam. Para o entregador de pizzas, e para o babaca do 52, e para os masoquistas em geral, o amor é o caminho mais fácil para se chegar ao ódio, porque a preguiça irá fatalmente aproximar esses dois sentimentos, isto é, uma vez estabelecida a preguiça e a negligência, odiamos com mais fé e propriedade, e – por exclusão – o amor se transforma numa caricatura. Daí a confusão entre amor e ódio, daí o apego àquilo que não tem, digamos, aderência. O umbigo, as vaidades, os pet shops e as novelas do SBT nascem desse amor caricato.

No jogo de tentativas e erros, erramos. O ódio sincero, aquele que brota do coração apaixonado, está ao alcance de poucos iluminados – é quase um gesto de amor, sobretudo se se voltar contra si mesmo.

Um parêntese. Quando falo em gesto de amor, não estou falando do amor-caricatura supracitado, mas falo do amor genuíno, do amor desprendido – porque o único amor que conta é o gratuito e o desprendido, o resto é troca de interesses, autismo, sadomasoquismo e disciplina. O resto é 100% da humanidade. Pois bem, fechado o parêntese, vos digo: esse amor, além de ser um sentimento quase angélico e, portanto, desumano, é praticamente irmão gêmeo do ódio sincero, com a diferença de que é muito mais seletivo, excludente e cruel do que o ódio, apesar da sinceridade. O amor não remói.

E mais uma coisa. Experimentar o ódio em toda a sua plenitude (consumi-lo na própria carne) não é uma garantia de libertação, tampouco um passaporte para o sublime, no sentido de que somente quem odeia é capaz de amar – o amor não está nem aí para o sublime, o amor é indiferente à glória e à transcendência humana, o amor é barra-pesadíssima, escarnece do homem e é impiedoso uma vez que não odeia. O amor que experimentamos, o amor caricato, só não acaba porque somos infantis e temos a capacidade de chafurdar e nos regozijar no ridículo que ele nos oferece. Daí vêm o ciúme, as chantagens, as oficinas de tapioca, as entrelinhas, os filhos. E, assim, o ódio permanece escravo do amor. O reinventa.

Foi a carga amorosa que derrubou Lúcifer. Foi o amor demais que incendiou suas asas e o precipitou entre nós. Alguém duvida disso?

Em outras palavras: o ódio é apenas um placebo dado por Deus ao diabo para distrai-lo de sua incapacidade de amar. Nós somos esse placebo, a imagem e a semelhança – feitos de barro misturado com estrume (para dar uma liga), ilusão e asas incendiadas. De modo que seria uma bobagem encarar o ódio – somente porque é eminentemente humano e diabólico – como uma espécie de fase que antecede o amor. O ódio, como eu disse acima, é escravo, é algo mais comezinho, mais fácil, mais tátil, menos hipócrita e, incomparavelmente, menos intenso que o amor, em que pesem o rancor, o ressentimento e a vingança fulgurantes e as obras que se intentam – Francis Bacon que o diga – a partir desses sentimentos, apesar disso, odiar é algo que reconcilia o homem com o pobre-coitado que ele é, odiar é cumprir a sentença que foi imposta como o pior dos castigos aos homens, qual seja: conhece-te a ti mesmo.

Bem, o leitor perguntaria: onde você quer chegar? No sacolão da esquina. Isto é: trato de mesquinharias e de milagres, estou falando da pequenez do ser humano, de vestir a carcaça sobre a alma doente, de viver sem amor e administrar os holocaustos de cada dia, falo dos cadarços do Bukowski. Trato do alvorecer da indiferença, de usufruir do ínfimo, e, mais ou menos como dizia Nietzsche, falo de “agarrar sonhos e cavalgar o dorso dos tigres”. Tô falando de seguir em frente apesar dos pesares, de ir ao sacolão e escolher os melhores tomates e, de repente, – por que não? –arriscar uma gentileza com um travo de amargura, estou falando de esgares e de uma receita para criar monstros: de amar o semelhante com todas as suas forças porque ele é capaz de odiá-lo com a mesma intensidade.



(Cult;11 de novembro de 2013)



(Ilustração: escultura de Matt Verginer)

quarta-feira, 17 de dezembro de 2025

FIVE O'CLOCK TEAR, de Emanuel Félix

 




Coisa tão triste aqui esta mulher

com seus dedos pousados no deserto dos joelhos

com seus olhos voando devagar sobre a mesa

para pousar no talher

Coisa mais triste o seu vaivém macio

p'ra não amachucar uma invisível flora

que cresce na penumbra

dos velhos corredores desta casa onde mora



Que triste o seu entrar de novo nesta sala

que triste a sua chávena

e o gesto de pegá-la



E que triste e que triste a cadeira amarela

de onde se ergue um sossego um sossego infinito

que é apenas de vê-la

e por isso esquisito



E que tristes de súbito os seus pés nos sapatos

seus seios seus cabelos o seu corpo inclinado

o álbum a mesinha as manchas dos retratos



E que infinitamente triste triste

o selo do silêncio

do silêncio colado ao papel das paredes

da sala digo cela

em que comigo a vedes



Mas que infinitamente ainda mais triste triste

a chávena pousada

e o olhar confortando uma flor já esquecida

do sol

do ar

lá de fora

(da vida)

numa jarra parada



(A Palavra O Açoite; 1977)



(Ilustração: Pieter Janssens Elinga; 1623-1682)

domingo, 14 de dezembro de 2025

LER, de Cesare Pavese

 


É verdade que não devemos nos cansar de conclamar os escritores à clareza, à simplicidade, à solicitude para com as massas que não escrevem, mas às vezes se instaura a dúvida de que nem todos saibam ler. Ler é tão fácil, dizem aqueles cujo hábito de ler acabou com qualquer respeito pela palavra escrita. Mas quem, pelo contrário, trata de homens ou de coisas mais do que de livros, e sai pela manhã e volta à noite, endurecido, quando por acaso ele se recolhe a uma página, dá-se conta de ter sob os olhos algo difícil e bizarro, esmorecido e ao mesmo tempo forte, que o agride e o encoraja. Seria inútil dizer que este último está mais perto da verdadeira leitura do que o outro.

Acontece com os livros assim como com as pessoas. São levados a sério. Mas justamente por isso devemos nos precaver de torná-los ídolos, isto é, instrumentos de nossa preguiça. O homem que não vive entre livros, e que deve fazer um esforço para abri-los, tem um capital de humildade, de força inconsciente – a única que vale – que lhe permite se aproximar das palavras com o respeito e a ansiedade com que se aproxima de uma pessoa querida. E isso vale muito mais do que a “cultura”; isso é, na verdade, a verdadeira cultura. Necessidade de compreender os outros, caridade para com os outros, que é afinal o único modo de compreender e amar a nós mesmos: a cultura começa aqui. Os livros não são os homens, são meios para alcançá-los; quem os ama e não ama os homens é um presunçoso ou um condenado.

Existe um obstáculo ao ler – e é sempre o mesmo, em todos os campos da vida –, a excessiva segurança de si, a falta de humildade, a recusa a acolher o outro, o diferente. Sempre nos fere a inaudita descoberta de que alguém viu não mais longe do que nós, mas diferentemente de nós. Somos feitos de hábitos mesquinhos. Amamos nos maravilhar, como crianças, mas não tanto assim. Quando o estupor nos impele a sair de nós mesmos, a perder o equilíbrio para reencontrar talvez um outro mais destemido, então enrugamos a boca, batemos o pé, voltamos realmente a ser criança. Mas das crianças nos falta a virgindade, que é a inocência. Nós temos ideias, temos gostos, já lemos livros: possuímos alguma coisa e, como todo possuidor, estremecemos por esta alguma coisa.

Todos nós, infelizmente, já lemos. E como acontece frequentemente de os pequenos burgueses se importarem mais com o falso decoro e os preconceitos de classe do que os ágeis aventureiros do grande mundo, assim o ignorante que leu alguma coisa se prende cegamente ao gosto, à banalidade, ao preconceito que o tomou, e a partir de então, se ocorre de ele ainda ler, ele julga e condena tudo de acordo com tal medida. É muito fácil aceitar a perspectiva mais banal e se apegar a ela, seguros do consenso da maioria. É muito cômodo supor que todo esforço já acabou e que se conhece a beleza, a verdade, a justiça. É cômodo e vil. É como acreditar que se está absolvido do eterno e temente dever de ter caridade com os homens simplesmente porque de vez em quando dá uma moeda ao pedinte. Nada faremos, nem mesmo aqui, sem o respeito e a humildade: a humildade que entreabre frestas em nós através da nossa substância de orgulho e preguiça, o respeito que nos persuade à dignidade dos outros, do diferente, do próximo enquanto tal.

Fala-se sobre livros. E sabe-se que livros, quanto mais ingênua e plana é a sua voz, mais dor e tensão eles custaram a quem os escreveu. É inútil, portanto, ter esperança de tateá-los sem pagar um preço pessoal por isso. Ler não é fácil. E acontece, como se costuma dizer, que quem estudou, quem se move agilmente no mundo do conhecimento e do gosto, quem tem o tempo e os meios para ler, muito frequentemente acaba sem alma, sem amor pelo homem, acaba encrostado e endurecido pelo egoísmo de casta. Enquanto quem aspiraria, como aspira à vida, a este mundo da fantasia e do pensamento, quase sempre se encontra ainda privado dos elementos iniciais: lhes falta o alfabeto de alguma linguagem, não lhes sobram nem tempo, nem forças, ou, pior, estão corrompidos por uma falsa preparação, quase uma propaganda, que lhes barra e deturpa os valores. Quem encara um tratado de física, um texto de contabilidade, a gramática de uma língua, sabe que existe uma preparação específica, um conjunto mínimo de noções indispensáveis para tirar algum proveito da nova leitura. Quantos se dão conta de que uma bagagem técnica análoga é necessária para se aproximar de um romance, um poema, um ensaio, uma reflexão? E, ainda, que essas noções técnicas são incomensuravelmente mais complexas, sutis e fugidias do que as outras, e não podem ser encontradas em nenhum manual, em nenhuma bíblia? Todos acham que um conto, um poema, será naturalmente acessível à atenção humana comum, por falar não ao físico, ao contabilista ou ao especialista, mas sim ao homem que existe em todos eles. E é este o erro. Outro é o homem, outros, os homens. No final das contas, é tola a lenda de que poetas, narradores e filósofos se referem ao homem em absoluto, ao homem abstrato, ao Homem. Eles falam ao indivíduo de uma determinada época e situação, ao indivíduo que tem determinados problemas e procura resolvê-los à sua maneira, inclusive e sobretudo quando lê romances. Será preciso então, para entender os romances, situar-se em sua época e propor-se os seus problemas; o que quer dizer, nesse campo, aprender antes de mais nada as linguagens, a necessidade das linguagens. Convencer-se de que, se um escritor escolhe certas palavras, certos tons e ares insólitos, ele tem pelo menos o direito de não ser subitamente condenado em nome de uma leitura precedente, na qual os ares e as palavras estavam mais organizados, eram mais fáceis ou apenas diferentes. Esse feito da linguagem é o mais vistoso, mas não o mais urgente. Claro, tudo é linguagem em um escritor, mas basta ter compreendido isso para se ver em um mundo mais vivo e complexo, onde a questão de uma palavra, de uma inflexão, de uma cadência, torna-se de repente um problema de costume, de moralidade. Ou até mesmo de política.

Isso basta então. A arte, como dizem, é uma coisa séria. É tão séria quanto a moral e a política. Mas se temos o dever de nos aproximar dessas duas últimas com uma modéstia que mira a clareza – caridade com os outros e dureza conosco –, não é possível compreender com que direito, diante de uma página escrita, nos esquecemos de sermos homens e de que com um homem estamos falando.

 

Referência bibliográfica

 PAVESE, Cesare. La letteratura americana e altri saggi. Livro digital. Turim: Einaudi, 2014, s/p.

 

(Tradução de Cláudia Alves)

 

(Ilustração : Alfred Stevens 1856 - jeune fille lisant)

quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

KA'BA / KASBAH, de Amiri Baraka(LeRoy Jones)

      




A closed window looks down

on a dirty courtyard, and Black people

call across or scream across or walk across

defying physics in the stream of their will.



Our world is full of sound

Our world is more lovely than anyone's

tho we suffer, and kill each other

and sometimes fail to walk the air.



We are beautiful people

With African imaginations

full of masks and dances and swelling chants

with African eyes, and noses, and arms

tho we sprawl in gray chains in a place

full of winters, when what we want is sun.



We have been captured,

and we labor to make our getaway, into

the ancient image; into a new



Correspondence with ourselves

and our Black family. We need magic

now we need the spells, to raise up

return, destroy,and create. What will be



the sacred word?





Tradução de Leonardo Morais:



Uma janela fechada baixa o olhar

Até um pátio sujo, e gente negra

Reclama e grita e caminha sempre contra

Desafiando a física com sua vontade.



Nosso mundo está cheio de sons

Nosso mundo é mais encantador que o de qualquer outro

Apesar de sofrermos, de nos matarmos uns aos outros

E às vezes fracassarmos em caminhar no ar.



Somos gente maravilhosa

Com imaginações Africanas

repleta de máscaras e danças e cantos portentosos

com olhos e narizes e braços Africanos

mesmo quando nos aniquilamos em cinzas cadeias

em um lugar cheio de invernos, quando o que desejávamos

era o Sol.



Fomos capturados

e trabalhamos duro para conseguir escapar

até a antiga imagem, até



uma nova correspondência com nós mesmos

e nossa família Negra. Precisamos da magia,

e precisamos dos encantamentos, para surgir,

retornar, destruir e criar. Qual será



a palavra sagrada?





Tradução de Helena Barbas :



Uma janela fechada sobranceira

olha um pátio sujo, e os negros

a cruzar apelos, gritos, atravessam-no

desafiando a física com a torrente da sua vontade



O nosso mundo está cheio de som

O nosso mundo é mais belo que qualquer outro

embora soframos, e nos matemos uns aos outros

e às vezes nos falhe andar no ar



Somos gente bela

com imaginações africanas

cheios de máscaras, danças e cantos empolgantes

com olhos africanos, e narizes, e braços,

que se abrem com grilhões cinzentos num lugar

cheio de Invernos, e só queremos o sol.



Fomos capturados,

irmãos. E labutamos

para ser livres, para transformar

a imagem antiga, numa nova



correspondência connosco próprios

e com a nossa família negra. Precisamos de magia

precisamos agora dos sortilégios, para nos erguermos

regressar, destruir e criar. Qual será



a palavra sagrada?




(Ilustração : Ernest Eugene Barnes Jr. - sugar shack)

segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

A MORTE DOS GIRASSÓIS, de Caio Fernando Abreu

 


Anoitecia, eu estava no jardim. Passou um vizinho e ficou me olhando, pálido demais até para o anoitecer. Tanto que cheguei a me virar para trás, quem sabe alguma coisa além de mim no jardim. Mas havia apenas os brincos-de-princesa, a enredadeira subindo lenta pelos cordões, rosas cor-de-rosa, gladíolos desgrenhados. Eu disse oi, ele ficou mais pálido. Perguntei que-que foi, e ele enfim suspirou: “Me disseram no Bonfim que você morreu na quinta-feira.” Eu disse ou pensei em dizer ou de tal forma deveria ter dito que foi como se dissesse: “É verdade, morri sim. Isso que você está vendo é uma aparição, voltei porque não consigo me libertar do jardim, vou ficar aqui vagando feito Egum até desabrochar aquela rosa amarela plantada no dia de Oxum. Quando passar por lá no Bonfim diz que sim, que morri mesmo, e já faz tempo, lá por agosto do ano passado. Aproveita e avisa o pessoal que é ótimo aqui do outro lado: enfim um lugar sem baixo-astral.”

Acho que ele foi embora, ainda mais pálido. Ou eu fui, não importa.

Mudando de assunto sem mudar propriamente, tenho aprendido muito com o jardim. Os girassóis, por exemplo, que vistos assim de fora parecem flores simples, fáceis, até um pouco brutas.

Pois não são. Girassol leva tempo se preparando, cresce devagar enfrentando mil inimigos, formigas vorazes, caracóis do mal, ventos destruidores. Depois de meses, um dia pá! Lá está o botãozinho todo catita, parece que já vai abrir.

Mas leva tempo, ele também, se produzindo. Eu cuidava, cuidava, e nada. Viajei por quase um mês no verão, quando voltei, a casa tinha sido pintada, muro inclusive, e vários girassóis estavam quebrados. Fiquei uma fera. Gritei com o pintor: “Mas o senhor não sabe que as plantas sentem dor que nem a gente?” O homem ficou me olhando tão pálido quanto aquele vizinho. Não, ele não sabe, entendi. E fui cuidar do que restava, que é sempre o que se deve fazer.

Porque tem outra coisa: girassol quando abre flor, geralmente despenca. O talo é frágil demais para a própria flor, compreende? Então, como se não suportasse a beleza que ele mesmo engendrou, cai por terra, exausto da própria criação esplêndida. Pois conheço poucas coisas mais esplêndidas, o adjetivo é esse, do que um girassol aberto.

Alguns amarrei com cordões em estacas, mas havia um tão quebrado que nem dei muita atenção, parecia não valer a pena. Só apoiei-o numa espada-de-são-jorge com jeito, e entreguei a Deus. Pois no dia seguinte, lá estava ele todo meio empinado de novo, tortíssimo, mas dispensando o apoio da espada. Foi crescendo assim precário, feinho, fragilíssimo. Quando parecia quase bom, crau! Veio uma chuva medonha e deitou-se por terra. Pela manhã estava todo enlameado, mas firme. Aí me veio a ideia: cortei-o com cuidado e coloquei-o aos pés do Buda chinês de mãos quebradas que herdei de Vicente Pereira. Estava tão mal que o talo pendia cheio dos ângulos das fraturas, a flor ficava assim meio de cabeça baixa e de costas para o Buda. Não havia como endireitá-lo.

Na manhã seguinte, juro, ele havia feito um giro completo sobre o próprio eixo e estava com a corola toda aberta, iluminada, voltada exatamente para o sorriso do Buda. Os dois pareciam sorrir um para o outro. Um com o talo torto, outro com as mãos quebradas. Durou pouco, girassol dura pouco, uns três dias. Então peguei e joguei-o pétala por pétala, depois o talo e a corola entre as alamandas da sacada, para que caíssem no canteiro lá embaixo e voltassem a ser pó, húmus misturado à terra, depois não sei ao certo, voltasse à tona fazendo parte de uma rosa, palma-de-santa-rita, lírio ou azaleia, vai saber que tramas armam as raízes lá embaixo no escuro, em segredo.

Ah, pede-se não enviar flores. Pois como eu ia dizendo, depois que comecei a cuidar do jardim aprendi tanta coisa, uma delas é que não se deve decretar a morte de um girassol antes do tempo, compreendeu? Algumas pessoas acho que nunca. Mas não é para essas que escrevo.



(Zero Hora, 18.3.1995)

Ilustração: Vincent van Gogh - Sunflowers;1888)

sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

DA FIDELIDADE, de Teresa Balté





ouve amor

ser-te-ei infiel por uma noite

ficas longe e o corpo vibra ainda

chama por outro corpo chama viva

e não por ti amor

nem outro amor



e porque não chamar amor

aos nossos corpos

apenas e supostos todavia

amor que não se cala

grita ou morre



ouve outro amor

não és paixão nem usufruto

consegue ver em mim somente amor

e ficaremos quites



ouve amor

ouve outro amor

o amor reparte-se e divide-se

como a luz ou o dia que se extingue

nada te dou ou tiro nada ofereço

aquilo que não tenhas não é teu

aquilo que não sejas não tem preço



(Poesia Quase Toda, 2005)



(Ilustração: Teresa Balté - sem título, 1986)

terça-feira, 2 de dezembro de 2025

COMO GANHEI O CONCURSO DE QUEM CONTAVA MELHOR UM FILME, de Hernán Rivera Letelier

 


“Somos feitos do mesmo material dos sonhos.”

Shakespeare

“Somos feitos do mesmo material dos filmes.”

Fada Docine [*]

Como em casa o dinheiro andava a cavalo e a gente andava a pé, quando chegava um filme no acampamento da Mina e meu pai – só pelo nome do ator ou da atriz principal – achava que parecia ser bom, as moedas eram juntadas uma a uma, o preço exato da entrada, e me mandavam assistir.

Depois, ao voltar do cinema, eu tinha de contar o filme para a família inteira reunida na sala. 

Era lindo, depois de ver o filme, encontrar meu pai e meus irmãos me esperando ansiosos em casa, sentados enfileirados que nem no cinema, penteadinhos e de roupa limpa, recém-mudada.

Meu pai, com uma manta boliviana cobrindo as pernas, ocupava a única poltrona que a gente tinha, e assim era a plateia lá de casa. No chão, do lado da poltrona, brilhava sua garrafa de vinho tinto e o único copo que havia sobrado em casa. A galeria era aquela bancada comprida, de madeira bruta, onde meus irmãos se acomodavam em ordem, do menor ao maior. Depois, quando alguns de seus amigos começaram a aparecer na janela, a janela virou o balcão.

Eu chegava do cinema, tomava rapidinho uma xícara de chá (que deixavam pronto me esperando) e começava a minha função. De pé na frente deles, de costas para a parede pintada a cal, branca feito a tela do cinema, começava a contar o filme “de a a z”, como dizia meu pai, tratando de não esquecer nenhum detalhe, nem da história, nem dos diálogos, nem dos personagens.

Aliás, devo esclarecer aqui que não me mandavam para o cinema só por ser a única mulher da família e eles – meu pai e meus irmãos – serem cavalheiros com as damas. Não senhor. Eles me mandavam porque eu era a melhor contando filmes. Assim mesmo, como se ouve: a melhor contadora de filmes da família. Depois, passei a ser a melhor da viela e em pouco tempo a melhor do povoado. Que eu saiba, não havia ninguém no povoado da Mina que ganhasse de mim na hora de contar filmes. Do tipo que fosse: de caubóis, de terror, de guerra, de marcianos, de amor. E, claro, os filmes mexicanos, que eram os que papai, como todo mundo que tinha vindo do sul, mais gostava.

E foi justamente com um filme mexicano, desses cheios de cantorias e muito choro, que ganhei meu título. Não foi nada fácil ganhar esse título.

Ou vocês acham que fui eleita só por causa da minha fina estampa?

Éramos cinco filhos na família. Quatro homens e eu. Nós cinco formávamos uma escadinha perfeita, em tamanho e idade. Eu era a menor. Vocês imaginam o que significa crescer numa casa só de irmãos homens? Nunca brinquei de boneca. Em compensação, era campeã em bolinhas de gude e no jogo de palitinhos. E na hora de matar lagartixas nas minas de cal ninguém ganhava de mim. Era eu botar o olho e paf, lagartixa morta.

Andava de pé no chão todo santo dia, fumava escondida, usava um boné de aba virada e tinha até aprendido a mijar de pé.

A gente mija de pé, a gente urina de cócoras.

E eu mijava em qualquer lugar do deserto de salitre, igual aos meus irmãos. Até nas competições de quem mijava mais longe às vezes eu ganhava. E contra o vento.

Quando fiz sete anos entrei na escola. Além do sacrifício de ter que usar saia, me custou um bocado acostumar a urinar como as senhoritas.

Custou mais do que aprender a ler.

Quando papai teve a ideia do concurso, eu tinha dez anos e estava no terceiro ano do primário. Sua ideia consistiu em mandar a gente, um por um, para o cinema, e depois nos fazer contar o filme. Quem contasse melhor iria toda vez que passasse um dos bons. Ou um mexicano. O mexicano podia ser bom ou ruim, para meu pai isso não importava. Desde, é claro, que houvesse dinheiro para a entrada.

Os outros iam ter de se conformar em ouvir, depois, o filme ser contado em casa. Nós todos gostamos da ideia; todos nós nos sentíamos capazes de ganhar. Não era em vão que, como todas as outras crianças do povoado, cada vez que íamos ao cinema saíamos imitando os mocinhos do filme em suas melhores cenas.

Meus irmãos sabiam imitar perfeitamente o caminhar cambaio e o olhar oblíquo de John Wayne, o gesto de desprezo de Humphrey Bogart e as incríveis caretas de Jerry Lewis.

Eu os matava de rir ao tratar de piscar as pestanas feito Marilyn Monroe, ou de imitar as boquinhas de menina inocente – voluptuosamente inocente – de Brigitte Bardot.

Alguns se perguntarão por que meu pai não ia, ele mesmo, ao cinema; pelo menos quando passassem um filme mexicano. Meu pai não conseguia andar. Tinha sofrido um acidente de trabalho que o deixou paralítico da cintura para baixo. Não trabalhava mais. Recebia uma pensão de invalidez que era uma miséria, mal dava para comer.

Nem preciso dizer que a gente não tinha nem para uma cadeira de rodas. Para levá-lo da sala para o quarto, ou do quarto para a porta da rua – onde ele gostava de beber sua garrafa de vinho tinto vendo passarem a tarde e seus amigos –, meus irmãos tinham adaptado as rodas de um velho triciclo na poltrona. O triciclo tinha sido o primeiro presente de páscoa do meu irmão mais velho e as rodas não aguentavam muito o peso do meu pai, dobravam, e era preciso ficar consertando tudo o tempo inteiro.

E a minha mãe? Bom, minha mãe, depois do acidente, abandonou meu pai. Abandonou meu pai e nos abandonou, os seus cinco filhos. Assim, num vupt! Por isso lá em casa meu pai tinha nos proibido de falar dela; da “sirigaita”, como a chamava com desdém.

“Não me falem dessa sirigaita” – dizia ele, quando algum de nós, sem querer, deixava escapar a palavra mamãe.

Depois, entrava no silêncio e a gente levava horas até conseguir tirá-lo de lá.

[...]

Devo confessar que nunca imaginei que seria a vencedora do concurso de quem contava melhor um filme. É que meu irmão Mirto, o segundo, apelidado de Pássaro, que em casa era o responsável pelas compras, era o favorito de todo mundo. Ele sempre foi alegre e falastrão e passava o dia contando coisas que aconteciam com ele; tinha muito senso de humor.

Já meu irmão Mariano, o mais velho, que por causa de sua gagueira era chamado de Caterpillar – ele se encarregava de cozinhar, apesar de ser o mais inteligente de todos, e “mais sério que cabo de polícia”, como dizia meu pai –, não tinha nenhuma possibilidade, por causa de sua fala quebrada. O coitado tinha começado a gaguejar quando nossa mãe foi-se embora.

Meu irmão Manuel, o terceiro (era quem cuidava da limpeza), nem gostava muito de cinema. Para ele, o que mais importava no mundo era o futebol; era um peladeiro impenitente; suas partidas duravam o dia inteiro, o primeiro tempo de manhã e o segundo de tarde, com um breve intervalo para o almoço. Por causa de seu hábito de fazer um montinho de terra cada vez que ia chutar a bola, foi apelidado de Morrinho.

No deserto, todo mundo exibia com orgulho a condecoração de um apelido; quem não tinha apelido era um nonato, um zé ninguém, não existia.

Meu quarto irmão, Marcelino, o Cabeça de Livro, tinha alma de artista. Gostava de desenhar e pintar com lápis de cor. Em casa era mais para o calado, gostava mais de ouvir que de falar. E sua única tarefa era tirar o lixo.

Depois vinha eu, e, por ser mulher, ninguém dava um tostão por mim. Eles achavam que as mulheres só prestavam para fazer as camas e lavar os pratos – daí que eu cuidava da casa – e por isso não tinha a menor chance. Acontece que havia três coisas que me davam vantagem em cima deles, embora nem eu mesma soubesse. A primeira é que eu devorava os quadrinhos de Hopalong Cassidy, de Gene Autry, de Kid Colt e todos os heróis do Velho Oeste, e eles não liam nada. A segunda é que eu era louca pelas novelas de rádio, uma paixão que tinha herdado da minha mãe, que, comigo nos braços, jamais perdia um capítulo de Esmeralda, a filha do rio. E a terceira era uma coisa que até papai ignorava: quando eu era muito pequena, minha mãe me fazia dormir contando para mim filmes românticos – os seus favoritos –, coisa que não fez com nenhum dos meus irmãos.

“Essas coisas são mais nossas, das mulheres”, dizia ao me dar uma piscada de cumplicidade que eu adorava. 

O primeiro a ir ao cinema foi meu irmão Mariano, o Caterpillar. Sua narração foi um desastre. Naquele dia passou um de guerra – alemães contra norte-americanos –, e a única coisa que se entendia e saía emendado da boca do pobrezinho era o matracar das metralhadoras. E a mímica. Sua mímica era genial. Eu acho que nos tempos do cinema mudo ele teria sido muito bom.

Na vez do meu irmão Mirto, o Pássaro, passaram um de índios, com Jack Palance. Sua narração foi extraordinária. O galope dos cavalos, os tiros, os gritos dos índios, os sinais de fumaça. A gente até achava que estava ouvindo o assovio das flechas passando sobre nossas cabeças, zuuuummm! A única coisa ruim era que Mirto contava tudo na base de “babaquices” e “cagadas”:

“Então, quando o babaca sacou do revólver e atirou na cabeça da babacona, deu uma tremenda cagada porque os outros babacas nem cagando iam deixar que cagassem neles daquele jeito…”.

Manuel, que até que contava direito, contou um filme de vampiros. Acontece que se perdeu por amor. Aos doze anos, estava apaixonado pela filha do dono da loja mais sortida da Mina – era o único dos irmãos que namorava –, e passou a hora e quarenta minutos que durou o filme abraçando a menina, que gemia de medo.

Já com meu irmão Marcelino aconteceu o cúmulo da má sorte. Calado por natureza – “desse menino, é preciso arrancar as palavras com um saca-rolhas”, dizia minha mãe quando morava com a gente –, na vez dele caiu O velho e o mar, um filme quase sem fala.

Sua narração só durou cinco minutos.

Duas semanas mais tarde chegou, enfim, a minha vez, a vez da irmã menor, Maria Margarita, M M, como às vezes meu pai me chamava. Embora eu não tivesse apelido oficial, sabia que pelas costas alguns meninos me chamavam de Maria Machona. O apelido, é verdade, não era muito refinado, mas se observarem bem verão que é composto por duas palavras que começam com a letra eme.

Durante essas duas semanas chegaram vários filmes bons, e alguns muito bons, mas não houve dinheiro para comprar a entrada. Eram meados do mês e mal dava para comer e para a garrafinha de vinho de meu pai.

“A gente tem que esperar o pagamento da pensão”, dizia ele. E aconteceu que justo no dia do pagamento apareceu no anúncio do cinema nada menos que Ben-Hur, o filme que todo mundo no povoado esperava com ansiedade.

Meus irmãos ficaram loucos.

Todos queriam ir ao cinema. Ou pelo menos que o Mirto fosse, já que até aquele momento tinha sido quem melhor havia contado um filme.

Mas meu pai, que era um homem justo, se negou.

“Agora é a vez de Maria Margarita e quem vai é a Maria Margarita.

E ponto final”.

O filme durou três horas. Chorei mais que Sara García, a veterana atriz do cinema mexicano. Eu nunca havia gostado tanto de um filme. Depois soube que, além de ser tão longo, tinha sido o filme mais caro da história. E que havia ganhado onze prêmios Oscar. E além de tudo, Charlton Heston era um dos atores de quem eu mais gostava.

Cheguei em casa com os olhos vermelhos. Todos me esperavam com grande expectativa. Tomei em silêncio a xícara de chá, me pus na frente deles, e sem que meus joelhos tremessem nem nada, comecei a minha narração.

Foi então que alguma coisa se apoderou de mim.

Enquanto contava o filme – gesticulando, dando braçadas, mudando a voz – ia como que me desdobrando, transformando, convertendo-me em cada um dos personagens. Naquela tarde fui Ben-Hur, o jovenzinho. Fui Messala, o malvado do filme. Fui as duas mulheres leprosas que Jesus curou.

Fui o mesmíssimo Jesus.

Eu não estava contando o filme, eu estava atuando o filme. Mais ainda: eu estava vivendo o filme. Meu pai e meus irmãos me ouviam e olhavam para mim de boca aberta.

“Essa menina é uma artista completa”, comentou meu pai quando, esgotada até a última gota, acabei de contar o filme.

Ele e meus irmãos pareciam estar flutuando.

E estavam com os olhos marejados.

Aquela narração, porém, não foi suficiente para me dar o título. Meu pai declarou empate: meu irmão Mirto e eu tínhamos sido os melhores. E como era um democrata convicto, disse que aquela questão ia ser resolvida através das urnas. E em votação secreta.

Mirto seria o candidato número 1.

Eu seria a candidata número 2.

Foram cortados quatro papeizinhos iguais, distribuídos entre os votantes (os candidatos não tinham direito a voto). Cada um escreveu o número do seu candidato e depois depositou o papelzinho num cone de papel.

E veio a contagem.

Dois votos para meu irmão e dois votos para mim (eu intuí que meu pai e Marcelino tinham votado em mim). Para desempatar, meu pai decidiu fazer o que era mais justo e razoável: nós dois iríamos, juntos, ver o próximo filme. E quem contasse melhor seria o vencedor.

Fomos então ver juntos um filme mexicano carregado de canções; se chamava Guitarras de medianoche e era com ninguém menos que Miguel Aceves Mejía e Lola Beltrán, duas das vozes que mais soavam nos bares do deserto. Meu irmão contou primeiro, e com a mesma graça de sempre. Principalmente quando imitava o sotaque mexicano.

Acontece que eu, que também dominava o tom da fala dos mexicanos (tantos tinham sido os filmes deles que eu tinha visto em minha curta vida), além de contar o filme descrevendo as paisagens e tudo, de repente desandei a cantar as canções interpretadas no filme (de tanto ouvir nos alto-falantes dos bares, sabia todas elas de cor). Eles, que nunca tinham me ouvido cantar, acharam estranho que eu cantasse. E que cantasse tão bem.

Até para mim foi uma surpresa.

Meu pai ficou deslumbrado. Principalmente quando cantei No soy monedita de oro, uma das suas canções favoritas. Foi quando o democrata se esqueceu de votos e plebiscitos e me declarou ganhadora absoluta.

“E ponto final!” rugiu ele quando Mirto quis insinuar um protesto. 

E assim me transformei oficialmente na contadora de filmes lá de casa.



Nota do blog:

[*] O nome da narradora é Maria Margarita, mas ela se deu o pseudônimo de Fada Docine, ao se tornar famosa na sua aldeia como contadora de filmes.



(A contadora de filmes; tradução de Éric Nepomuceno)


(Ilustração: cenas de Ben Hur - direção de William Wyler)