quinta-feira, 31 de julho de 2025

AQUELA, de Darcy Ribeiro

 



Minha amada é de carne, de pele e pelo.

Ora é negra, ora é loura, ora é vermelha.

Minha amada é três. É trinta e três.

Minha amada é lisa, é crespa, é salgada, é doce.



Ela é flor, é fruto, é folha, é tronco.

Também é pão, é sal e manga-rosa.

Minha amada é cidade de ruas e pontes.

É jardim de arrancar flores pelo talo.



Ela é boazuda e é bela como uma fera.

Minha amada é lúbrica, é casta, é catinguenta.

Minha amada tem bocas e bocas de sorver,

de sugar, de espremer, de comer.



Minha amada é funda, latifúndia.

Minha amada é ela, aquela que não vem.

Ainda não veio, nunca veio, ainda não.

Mas virá, ora se virá. A diaba me virá.



(Eros e tanatos)



(Ilustração: escultura de Giovanni Strazza - a virgem velada, 1854)

segunda-feira, 28 de julho de 2025

A PORTA ABANDONADA, de Julio Cortázar

 


Petrônio gostou do hotel Cervantes, por motivos que haviam desagradado a outras pessoas. Era um hotel escuro, tranquilo, quase deserto. Recomendou-lhe um conhecido, quando cruzava o rio num barco de corrida [*], dizendo-lhe que ficava na zona central de Montevidéu. Petrônio aceitou um quarto com banheiro no segundo andar que dava diretamente para a recepção. O quadro de chaves na portaria fez-lhe supor que havia poucos hóspedes no hotel; as chaves estavam presas a pesados discos de bronze com o número do apartamento, inocente artimanha da gerência para impedir que os clientes as esquecessem no bolso.

O elevador ficava logo em frente, onde havia um balcão com os jornais do dia e a lista telefônica. Bastava-lhe dar uns poucos passos para alcançar o quarto. A água saía quente e isso compensava a ausência de sol e de ar puro. No quarto havia uma pequena janela que dava para o telhado do cinema próximo; às vezes uma pomba passeava por ali. O banheiro tinha uma janela maior, que se abria tristemente para um muro e para um distante pedaço de céu, quase inútil. A mobília era de boa qualidade, havia muitas gavetas e prateleiras. E muitos cabides, coisa estranha.

O gerente era um homem alto e magro, completamente calvo. Usava óculos de armação dourada e falava com a voz forte e sonora dos uruguaios. Disse a Petrônio que o segundo andar era muito silencioso, e que no único quarto contíguo ao seu vivia uma senhora solitária, que trabalhava em algum lugar e voltava ao hotel somente à noite. Petrônio encontrou-a no dia seguinte no elevador. Soube que era ela pelo número da chave que levava na palma da mão, como se fosse uma enorme moeda de ouro. O porteiro pegou-lhe a chave e a de Petrônio para pendurá-las no quadro, e ficou conversando com a mulher sobre umas cartas. Petrônio teve tempo de ver que era ainda jovem, insignificante, e que se vestia mal como todas as orientais,

O contrato com os fabricantes de mosaicos levaria cerca de uma semana. À tarde Petrônio guardou a roupa no armário, ordenou seus papéis na mesa, e depois de tomar banho saiu para percorrer o centro, enquanto fazia hora de ir ao escritório dos sócios. O dia se consumiu em conversas, interrompidas por um drink em Pocitos e um jantar na casa do sócio principal. Quando o deixaram no hotel, era mais de uma hora. Cansado, se deitou e dormiu em seguida. Quando acordou, eram quase nove, e nesses primeiros minutos em que ainda ficam restos da noite e dos sonhos, pensou que em algum momento lhe irritara o choro de uma criança.

Antes de sair, conversou com o atendente da recepção que falava com sotaque alemão. Enquanto se informava sobre linhas de ônibus e nomes de ruas, olhava distraído a enorme sala em cujo extremo estavam a porta de seu quarto e a da senhora solitária. Entre as portas, havia um pedestal com uma horrenda réplica da Vênus de Milo. Outra porta, na parede lateral, dava para um corredor com as inevitáveis poltronas e revistas. Quando o funcionário e Petrônio se calaram, o silêncio do hotel parecia solidificar-se e cair como cinzas sobre os móveis e os azulejos. O ruído do elevador era quase tão estridente quanto o barulho das folhas de um jornal ou o raspar de um fósforo.

As reuniões terminaram no começo da noite e Petrônio deu uma volta pela 18 de Júlio [**], antes de entrar para jantar em uma das tavernas da praça Independência. Tudo ia bem, e talvez pudesse voltar a Buenos Aires antes do programado. Comprou um jornal argentino, um maço de cigarrilhas e caminhou calmamente até hotel. No cinema ao lado, passavam dois filmes a que já havia assistido, mas realmente não tinha vontade nenhuma de ir a qualquer lugar. O gerente o cumprimentou, ao passar, e perguntou-lhe se precisava de mais roupa de cama. Conversaram por instantes, fumando um cigarro e se despediram.

Antes de deitar-se, Petrônio pôs em ordem a papelada do dia e leu o jornal sem muito interesse. O silêncio do hotel era quase excessivo, e o ruído de um ou outro bonde que descia a rua Soriano não fazia mais que pausá-lo, o que o fortalecia para um novo intervalo. Despreocupado, mas impaciente, jogou o jornal no lixo e se despiu enquanto se olhava distraído no espelho do armário. Era um armário velho encostado numa porta que dava para um quarto contíguo. Petrônio ficou surpreso ao perceber a porta que não tinha visto em sua primeira inspeção do quarto. Inicialmente supusera que o edifício fora construído para ser um hotel, mas agora percebia o que costuma acontecer a muitos hotéis modestos, instalados em antigas casas de escritório ou de família. Pensando bem, em quase todos os hotéis que havia conhecido em sua vida – e eram muitos – os quartos tinham alguma porta abandonada, às vezes visível, mas quase sempre com um guarda-roupas, uma mesa ou um cabideiro na frente que, como neste caso, lhes dava uma certa ambiguidade, um envergonhado desejo de dissimular sua existência, como uma mulher que acredita cobrir-se pondo as mãos no ventre ou nos seios. A porta estava ali, sem dúvida, aparecendo acima do armário. Um dia, alguém teria entrado e saído por ela, batendo nela, empurrando-a, dando-lhe uma vida que ainda estava presente em sua madeira muito diferente das paredes. Petrônio imaginou que do outro lado haveria também um guarda-roupa e que a dona do quarto pensaria o mesmo da porta.

Não estava cansado, mas pegou logo no sono. Passaram-se três ou quatro horas, quando lhe despertou uma sensação de incômodo, como se tivesse acontecido alguma coisa, alguma coisa desagradável e irritante. Acendeu o abajur, viu que eram duas e meia, apagou outra vez. Então, ouviu, vindo da sala ao lado, o choro de uma criança.

De imediato, não percebeu bem o que era. Seu primeiro pensamento foi de satisfação; então, era verdade que na noite anterior um menino não o deixara descansar. Tudo explicado, era mais fácil voltar a dormir. Então, logo depois lembrou-se do outro e se sentou lentamente na cama, sem acender a luz, escutando. Não era engano, o pranto vinha do quarto ao lado. Ouvia-se o som através da porta abandonada, proveniente daquele lugar do quarto que correspondia aos pés da cama. Mas não era possível que no quarto ao lado houvesse uma criança; o gerente havia dito claramente que a senhora vivia sozinha, que passava quase todo o dia no emprego. Por um segundo, ocorreu a Petrônio que talvez nesta noite estivesse cuidando da criança de alguma parente ou amiga. Pensou na noite anterior. Agora estava certo de que já havia ouvido o choro, porque não era um choro fácil de confundir, porém uma série irregular de gemidos muito fracos, de soluços doloridos seguidos de um chorinho breve, inconsistente, mínimo, como se a criança estivesse muito doente. Devia ser um bebê de poucos meses, ainda que não chorasse com a estridência e os repentinos soluços e engasgos de um recém-nascido. Petrônio imaginou um menino – um varão, sem saber por quê – fraco e doentio, rosto exaurido e movimentos lentos. Por isso, resmungava à noite, chorando timidamente, sem chamar muita atenção. Se não estivesse ali a porta abandonada, o choro no lograria vencer as grossas paredes e ninguém iria saber que no quarto ao lado estava chorando uma criança.

De manhã, Petrônio ficou matutando por um instante, enquanto tomava o desjejum e fumava um cigarro. Uma noite mal dormida era bem ruim para o seu dia de trabalho. Havia despertado duas vezes durante a noite, e as duas vezes por causa do choro. A segunda vez foi ainda pior, porque além do choro se ouvia a voz da mulher tentando acalmar a criança. A voz era muito baixa, mas tinha um tom de ansiedade que lhe dava uma certa dramaticidade, um sussurro que atravessava a porta com tanta clareza como se fossem gritos. A criança cessava, às vezes, por alguns momentos o arrulho; mas logo voltava ao gemido entrecortado, numa tristeza sem fim. E de novo a mulher murmurava palavras incompreensíveis, sortilégios da mãe para silenciar o filho atormentado por seu corpo ou sua alma, por estar vivo ou ameaçado de morte.

“Está tudo muito bem, mas o gerente mentiu para mim”, pensava Petrônio ao sair do quarto. Incomodava-o a mentira e ele não disfarçou isso. O gerente ficou olhando para ele.

- Uma criança? Você deve ter-se enganado. Não há crianças pequenas neste andar. Ao lado de seu quarto vive uma senhora solitária, acho que lhe disse isso.

Petrônio hesitou antes de falar. Ou o cara mentia estupidamente, ou a acústica do hotel estava lhe pregando uma peça. O gerente olhava-o um pouco de lado, como se estivesse irritado com a reclamação. “Talvez ele pense que sou tímido e estou procurando motivo para me mandar mudar”, pensou. Era difícil e um tanto absurdo insistir diante de uma negativa tão categórica. Deu de ombros e pediu o jornal.

- Devo ter sonhado – disse, chateado por ter que dizer isso, ou qualquer outra coisa.

O cabaré era mortalmente chato e seus anfitriões não eram lá muito entusiasmados, assim foi fácil a Petrônio alegar cansaço do dia e ser levado para o hotel. Combinaram assinar os contratos no dia seguinte, à tarde; o negócio estava praticamente encerrado.

O silêncio na recepção do hotel era tão grande, que Petrônio se pegou andando na ponta dos pés. Haviam deixado um jornal da tarde ao lado da cama; havia também uma carta de Buenos Aires. Reconheceu a letra de sua mulher.

Antes de ir para a cama olhou para o armário e para a parte saliente da porta. Talvez se colocasse as duas malas sobre o armário, bloqueando a porta, os ruídos do quarto ao lado diminuíssem. Como sempre, nessa hora, não se ouvia nada. O hotel dormia, as coisas e as pessoas dormiam. Mas ocorreu a Petrônio, já de mau humor, que era o contrário e que tudo estava acordado, avidamente acordado no centro do silêncio. Sua ansiedade inconfessada devia estar se comunicando com a casa, com as pessoas da casa, conferindo-lhes uma qualidade de perseguição, de vigilância atemorizada.

Bobagens.

Quase não acreditou quando o choro do menino o acordou de novo às três da madrugada. Sentando-se na cama, perguntou a si mesmo se não seria o caso de chamar o vigia noturno para ter uma testemunha de que não se conseguia dormir neste quarto. A criança chorava tão debilmente, que às vezes nem se conseguia escutá-lo, embora Petrônio sentisse que o choro estava ali, contínuo, e que logo aumentaria outra vez. Passaram dez ou vinte lentíssimos segundos; então lhe chegou um soluço breve, um gemido quase imperceptível que se prolongava docemente até se transformar no verdadeiro choro.

Acendendo um cigarro, pensou se não deveria dar umas batidas discretas na parede, para que a mulher silenciasse a criança. Só quando pensou nos dois, na mulher e no menino, é que se lembrou de que não acreditava neles, de que absurdamente não acreditava que o gerente tivesse mentido para ele. Agora ouvia-se a voz da mulher, encobrindo completamente o choro da criança com seu arrebatador - embora muito discreto - conforto. A mulher estava acalentando a criança, consolando-a, e Petrônio a imaginou sentada ao pé da cama, balançando seu berço ou segurando-a nos braços. Porém, por mais que se esforçasse, não conseguia imaginar a criança, como se as palavras do gerente do hotel fossem mais verdadeiras do que essa realidade que ele ouvia. Pouco a pouco, à medida que o tempo passava e os fracos gemidos se alternavam ou cresciam entre os murmúrios de consolo, Petrônio começou a supeitar que aquilo era uma farsa, um jogo ridículo e monstruoso que ele não conseguia entender. Pensou em histórias antigas de mulheres sem filhos, organizando secretamente um culto a bonecas, numa maternidade inventada e secreta, mil vezes pior do que mimar cães ou gatos ou sobrinhos. A mulher estava imitando o pranto de seu filho frustrado, consolando o ar com suas mãos vazias, talvez com o rosto molhado de lágrimas, porque o pranto que fingia era possivelmente seu verdadeiro choro, a caricatura de sua dor na solidão de um quarto de hotel, protegida pela indiferença e pela madrugada.

Acendendo o abajur, incapaz de voltar a dormir, Petrônio perguntava a si mesmo o que devia fazer. Seu mau humor era maligno, contagiava-se desse ambiente onde, de repente, tudo parecia enganador, vazio, falso: o silêncio, o choro, o arrulhar, a única realidade desse momento entre a noite e o dia e que o enganava com sua mentira insuportável. Bater na parede lhe pareceu muito pouco. Não estava totalmente acordado, embora fosse impossível dormir; sem saber como, viu-se movendo pouco a pouco o armário até deixar à vista a porta empoeirada e suja. De pijama e descalço, agarrou-se a ela como uma centopéia e, aproximando a boca das tábuas de pinho, começou a imitar em falsete, imperceptivelmente, um gemido como o que vinha do outro lado. Subiu de tom, gemeu, soluçou. Do outro lado se fez um silêncio que devia durar toda a noite; mas no instante seguinte, Petrônio pôde ouvir o barulho dos chinelos da mulher correndo pelo quarto, soltando um grito agudo e breve,

Petrone ouviu o ruído dos chinelos da mulher atravessando a sala correndo, , soltando um grito agudo e repentino, o início de um uivo como o de uma corda esticada subitamente rompida.

Quando passou pelo balcão da gerência, eram mais de dez horas. Em seus sonhos, depois das oito, ele ouviu a voz do empregado e a de uma mulher. Alguém havia estado no quarto ao lado movendo coisas. Viu um baú e duas malas grandes perto do elevador. O gerente tinha um ar que lhe pareceu ser de perplexidade.

- Dormiu bem à noite? – perguntou-lhe com o tom profissional que apenas disfarçava a indiferença. Petrônio deu de ombros. Não queria insistir, quando apenas lhe restava passar só mais uma noite no hotel.

- De qualquer jeito, agora vai ficar mais tranquilo – disse o gerente, olhando para a malas – A senhora vai nos deixar ao meio-dia.

Esperava um comentário e Petrônio incentivou-o com os olhos.

- Estava aqui há muito tempo, e vai embora assim de repente. Nunca se sabe com as mulheres.

- Não – disse Petrônio -. Nunca se sabe.

Na rua sentiu-se tonto, uma tontura que não era física. Engolindo um café amargo, começou a pensar no assunto, esquecendo-se do negócio, indiferente ao sol esplêndido. Foi sua a culpa que aquela mulher tenha ido embora do hotel, louca de medo, de vergonha ou de raiva. Ela estava lá há muito tempo... Estava doente, talvez, mas inofensiva. Não era ela, mas ele quem deveria ter deixado o Cervantes. Tinha a obrigação de falar com ela, de desculpar-se e pedir-lhe que ficasse, jurando discrição. Deu alguns passos de volta e parou na metade do caminho. Tinha medo do ridículo, de que a mulher reagisse de alguma forma inesperada. Já estava na hora de encontrar-se com os dois sócios e ele não queria deixá-los esperando. Bem, que se lasque. Ela não passava de uma histérica, logo encontraria outro hotel onde cuidar do filho imaginário.

Mas à noite voltou a sentiu-se mal, e o silêncio do quarto pareceu-lhe ainda mais denso. Ao entrar no hotel não pôde deixar de notar o quadro de chaves, onde já estava faltando a chave do quarto ao lado. Trocou algumas palavras com o funcionário, que bocejava aguardando a hora de ir embora, e entrou em seu quarto com poucas esperanças de conseguir dormir. Levava os jornais da tarde e um romance policial. Entreteve-se arrumando as malas, organizando a papelada. Estava quente e ele abriu de par em par a pequena janela. A cama estava bem feita, mas ele a achou desconfortável e dura. Finalmente teve todo o silêncio de que precisava para dormir profundamente, e isso pesou sobre ele. Virando-se várias vezes na cama, sentiu-se vencido por esse silêncio que habilmente reivindicara e que lhe era agora devolvido inteiro e vingativo. Ironicamente pensou que podia estar sentindo falta do choro da criança, que essa calma perfeita não lhe bastava nem para dormir nem para ficar acordado. Sentia falta do choro da criança e, quando bem mais tarde, o ouviu, fraco mas inconfundível através da porta abandonada, além do medo, além da fuga em plena noite soube que estava bem e que a mulher não mentira, nem mentira para si mesma ao acalentar a criança, ao querer que a criança se calasse para que eles pudessem dormir.



(La puerta condenada; tradução de Isaias Edson Sidney)



Notas do tradutor:


[*] Vapor de corrida: assim se denominam os barcos que fazem a ligação entre Buenos Aires e Montevidéu.Têm esse nome porque, no começo, as empresas apostavam corrida para ver quem fazia a viagem mais rápida, com muitos acidentes e mortes. (Nota do tradutor)


[**] Famosa avenida de Montevidéu.




(Ilustração: el viejo Hotel Cervantes, de Montevideo)

sexta-feira, 25 de julho de 2025

À RECONQUISTA, de Agostinho Neto

 




Não te voltes demasiado para ti mesma

Não te feches no castelo das lucubrações infinitas

Das recordações e sonhos que podias ter vivido



Vem comigo África de calças de fantasia

desçamos à rua

e dancemos a dança fatigante dos homens

o batuque simples das lavadeiras

ouçamos o tam-tam angustioso

enquanto os corvos vigiam os vivos

esperando que se tornem cadáveres



vem comigo África dos palcos acidentais

descobrir o mundo real

onde os milhões se irmanam na mesma miséria

atrás das fachadas de democracia de cristianismo de igualdade



Vem comigo África de colchões de molas

e reentremos na casinha de latas esquecidas no musseque da Boavista

até onde já nos empurram

ao nos quebrarem as casas de meia água de Cayette

e à volta de fogo consolador das nossas aspirações mais justas

examinaremos a injustiça inoculada no sistema vivo em que giramos.



Vem comigo África de colchões de esmola

regressemos à nossa África

onde temos um pedaço da nossa carne calcado sob as botas dos magala

- a nossa África



Vem comigo África do jitterburg

até a terra até o homem até o fundo de nós

ver quando de ti e de mim faltou

quanto da África esqueceu

e morreu na nossa pele mal coberta sob o fato emprestado

pelo mais miserável dos ex-fidalgos



Não chores África dos que partiram

olhemos claros para os ombros encurvados do povo que desce a calçada

negro negro de miséria negro de frustração negro de ânsia



e dêmos-lhes o coração

entreguemo-nos



através da fome da prostituição das cubatas esfuracadas

das chanfalhadas dos cipaios

através dos muros das prisões através da Grande Injustiça



Ninguém nos fará calar

Ninguém nos poderá impedir

O sorriso dos nossos lábios não é agradecimento pela morte

com quem nos matam.



Vamos com toda a Humanidade

Conquistar o nosso mundo e a nossa Paz.





(Sagrada esperança, 1953)



(Ilustração:
África - povo Hadza, foto de Martin Schoeller )

terça-feira, 22 de julho de 2025

A MUSA MALVADA, Rosa Montero

 

Acredite, os artistas geralmente são uns viciados. Podem até se controlar (eu tento), mas o temperamento aditivo está ali (por exemplo, fumei três maços de cigarro por dia durante vinte anos). Os artistas se drogam para manter o fogo interior, a energia que devora a si mesma. E para desinibir ainda mais aquele córtex préfrontal por si só já desinibido, como dizia Dierssen. Para facilitar a associação de ideias; para estimular as emoções. Para silenciar o eu consciente, o maior obstáculo que existe contra a criatividade, um maldito inimigo íntimo que sussurra palavras venenosas no seu ouvido: você não pode, não sabe, não vale nada, não vai conseguir, todos os outros são melhores, você é uma impostora, vai fazer um papel ridículo, renda-se de uma vez à adversidade. Na verdade, criar é como fazer amor, ou como dançar a dois; eu, que sou da geração hippie, nunca aprendi a dançar agarrado e sou péssima nisso. Mas às vezes estou tentando com alguém e acontece um prodígio: de repente, percebo que estou há um bom tempo sem pisar no pé dele, movendo-me em uníssono com meu parceiro na leveza ondulante das algas embaladas pela maré. Porém, no momento em que tomo consciência disso, perco o ritmo, tropeço, acaba-se a dança milagrosa. O mesmo ocorre com o sexo: para que seja bom, é o corpo que deve mandar (agora que penso nisso, pode-se extrair um grande conselho desses dois exemplos: desligue a cabeça quando abraçar alguém). O fato é que, no processo criativo, acontece a mesma coisa. Para dançar, para fazer amor e para escrever bem é preciso anestesiar o eu controlador. E as drogas ajudam.

Sim, ajudam no início, mas depois destroem e matam. A história da arte em geral e da literatura em particular está cheia de alcoólatras, opiômanos, cocainômanos e viciados em todo tipo de porcaria. E o processo é sempre semelhante: a musa química primeiro acaba com a obra e, então, com o autor. “Naquele tempo, estive bêbado por muitos anos e depois morri”, Scott Fitzgerald deixou escrito num caderno.

Curiosamente, uma droga que teve seu momento entre os criadores foi o café: Voltaire tomava cinquenta xícaras por dia; Balzac, quarenta; e Flaubert intercalava dezenas delas com copos de água gelada. Nietzsche era viciado em cloral, um sedativo à base de clorofórmio; Freud e Robert Louis Stevenson, em cocaína; Valle-Inclán pegou pesado no haxixe, como fizera antes, na década de 1840, Baudelaire, que o usava no Club des Hashischins junto com Balzac, o pintor Delacroix, Théophile Gautier e Gérard de Nerval. O ópio, em especial, sempre teve grandes seguidores: “De todas as drogas, o ópio é a droga”, dizia Jean Cocteau. E também: “O ópio permite a quem o usa dar forma ao disforme”. E não é isso que todos nós, artistas, perseguimos? Entre os que usavam ópio estavam Shelley, Wordsworth, Byron, Keats, Flaubert, Rimbaud. 

De Quincey dizia, empolgado, que o ópio descortinava os véus “entre nossa consciência presente e as inscrições secretas do espírito”. Aliás, o viciadão do De Quincey acabou muito mal, com uma grave dissociação e pesadelos horríveis. Para não falar do opiômano talvez mais famoso da literatura, Samuel Coleridge, que viu seu célebre poema “Kubla Khan” num sonho induzido pela droga (levantou e anotou os versos correndo, mas só lembrou uma parte). Mesmo alguém como Octavio Paz, que era um grande escritor mas que parecia um senhor muito formal e muito sério, disse o seguinte: “As drogas suscitam as faculdades da analogia, põem os objetos em movimento, fazem do mundo um imenso poema de versos rimados e de ritmos”.

Quanto à cocaína, ela começou a ser extraída das plantas de coca em 1860 e imediatamente foi considerada uma substância extraordinária: o mercado foi inundado de pastilhas, xaropes e elixires de coca. Na opinião de Julio Verne, era “um tônico maravilhoso”. O jovem e empreendedor Mark Twain pensou em montar um negócio que consistia em ir ao Amazonas para colher coca “e comercializá-la no mundo todo”. Passou meses matutando sobre o projeto, e até pegou a estrada rumo ao Peru com uma nota de cinquenta dólares que achou na rua, mas só chegou a New Orleans. Essa história genial é contada por Sadie Plant no fascinante livro Writing on Drugs [Escrevendo sobre drogas]. Ela também diz que, segundo alguns escritores, as visões de santa Teresa d'Ávila e de outros místicos poderiam ter sido facilitadas por substâncias psicoativas, como a cravagem ou esporão-do-centeio. A cravagem é um fungo que ataca os cereais. Comer a farinha contaminada provoca uma doença chamada Fogo de Santo Antônio, bastante comum na Idade Média e que causa sintomas terríveis: convulsões, demência e infecções gangrenosas mortais. Porém, se consumida em pouca quantidade, o que ela causa são alucinações. A cravagem tem um alcaloide, a ergotina, a partir da qual foi sintetizado o LSD em 1938. Antes já havia sido extraída dela a ergotamina, um remédio para enxaqueca que tomei em altas doses durante toda a minha vida (isso não tem nada a ver com a história, é só que fiquei pasma). Eu já tinha lido em outros autores sobre a provável influência do esporão-do-centeio em pintores como Bosch (aquele delírio caótico), mas desconhecia a história dos místicos. E Sadie Plant conta algo ainda mais impactante: parece que existe um autor, John Man, que menciona a coincidência de alguns eventos históricos com momentos climáticos favoráveis para a proliferação do esporão, o que talvez tenha causado uma espécie de alucinação coletiva. E cita a perseguição às bruxas em Massachusetts na década de 1690 (as famosas bruxas de Salem) e o período do Terror da Revolução Francesa.

Ainda falta mencionarmos as outras drogas, os barbitúricos de Truman Capote, as balinhas de Philip K. Dick… Embora, mais que dos artistas, as anfetaminas tenham sido a droga favorita dos políticos: Kennedy, Churchill, o primeiro-ministro britânico Anthony Eden… E Hitler, que se injetava metanfetamina oito vezes por dia. Outros escritores provaram mescalina, como JeanPaul Sartre, que passou anos vendo crustáceos que o perseguiam; ou peiote e, principalmente, LSD, a droga de Timothy Leary e seus pirados, mas que também fascinou Aldous Huxley, o qual defendia que precisava se injetar “para poder ter acesso à vida inconsciente” (justamente o que dizíamos), e que fez algo que sempre me horrorizou: ele estava agonizando de um câncer de laringe e pediu à esposa — por escrito, pois já não podia falar — que lhe injetasse LSD nos momentos finais. E foi o que ela fez. Ou seja, Huxley morreu no meio de uma viagem de ácido. Negou-se a usar morfina, pois dizia que queria falecer com a maior clareza mental possível. Embora, filha como sou da era lisérgica, não sei se dá para chamar isso exatamente de clareza mental.

Mas a rainha dos artistas, e muito especialmente dos escritores, é o álcool. “A bebida realça a sensibilidade. Quando bebo, minhas emoções se intensificam e as coloco em um conto. Os contos que escrevo quando estou sóbrio são idiotas. Tudo aparece muito racionalizado, sem nenhum sentido”, disse Scott Fitzgerald a uma amiga no início da sua descida aos infernos. Aliás, acho maravilhoso o oxímoro da última frase de Scott: quando mais se usa a razão na arte, menos sentido tem tudo. É o que dizíamos antes sobre anestesiar o eu.

O álcool é a desgraça maior dos escritores, sobretudo durante o século XX. Dos nove prêmios Nobel de literatura norte-americanos nascidos nos Estados Unidos, cinco foram alcoólatras desesperados: Sinclair Lewis, Eugene O'Neill, William Faulkner, Ernest Hemingway e John Steinbeck. Aos quais é preciso acrescentar dezenas de outros autores, entre eles Jack London, Dashiell Hammett, Dorothy Parker, Djuna Barnes, Tennessee Williams, Carson McCullers, John Cheever, Raymond Carver, Robert Lowell, Edgar Allan Poe, Charles Bukowski, Jack Kerouac, Patricia Highsmith, Stephen King, Malcolm Lowry… Os estadunidenses têm um talento incrível para beber até morrer, mas não são os únicos, é claro. Aí também estão Dylan Thomas, Jean Rhys, Marguerite Duras, Oscar Wilde, Ian Fleming, Françoise Sagan… E não estamos falando de encher a cara de vez em quando, mas de verdadeiras hecatombes pessoais, delirium tremens, destruições em massa da vida. O norueguês Knut Hamsun, que ganhou o Nobel em 1920, chegou à cerimônia de entrega tão escandalosamente bêbado que deu batidinhas no corselete da autora sueca Selma Lagerlöf (também prêmio Nobel) e, depois de arrotar, gritou: “Eu sabia, eu sabia que soava como um sino!”. O brilhante poeta britânico Dylan Thomas, que morreu aos 39 anos por causa da bebida, disse à esposa, já bem perto do fim: “Tomei dezoito uísques seguidos. Acho que é um bom recorde”. Aos 37 anos, Faulkner tomava no café da manhã duas aspirinas e meio copo de gim para firmar o pulso e poder tomar banho e fazer a barba. Tinha bebedeiras que duravam uma semana, ao longo das quais vagava nu pelos corredores dos hotéis e sumia. Numa dessas ausências alcoólicas, desmaiou de cueca em cima da torneira de água quente e ficou ali até que o concierge derrubou a porta. Na época, ficou com uma queimadura de terceiro grau nas costas. O alcoolismo de Faulkner fez com que o hospitalizassem várias vezes e o submetessem a uma série de eletrochoques. Em Hemingway, que chegou a tomar dezesseis daiquiris de uma tacada só, também aplicaram cerca de uma dúzia de choques elétricos.

Alguns autores conseguiram largar a bebida antes de se matar, como o Nobel O'Neill, que se aposentou do álcool aos 38 anos, ou como Stephen King, depois de ter provado de tudo na década de 1980. “Eu tomava 24 ou 25 latas de cerveja por dia, e tudo o mais que se possa imaginar: cocaína, Valium, Xanax, alvejante, xarope para tosse…” E Bukowski repete diversas vezes com horror no seu livro autobiográfico, Escrever para não enlouquecer, que, depois de passar sete ou oito anos “apenas bebendo”, foi internado na ala para indigentes do hospital geral, com o estômago perfurado e vomitando sangue. Esteve à beira da morte, mas o que mais o assustava era o fato de ter acabado na ala de indigentes: sem dúvida considerava essa a maior decadência da sua vida. Depois daquilo, bebeu apenas cervejas, recurso típico dos alcoólatras, com as quais também tinha seus pileques, porém menos graves. No seu livro de contos autobiográficos, Manual da faxineira, a norte-americana Lucia Berlin retrata de um jeito maravilhoso e chocante, como nunca vi em nenhum outro lugar, o que é ser uma alcoólatra.

Curiosamente, no mundo anglo-saxão esses problemas com a bebida sempre foram reconhecidos mais abertamente. Talvez porque durante muito tempo foram inclusive mistificados, como se as bebedeiras fizessem de você um escritor melhor. Algo assim também aconteceu na Espanha na geração anterior à minha, dos escritores que tinham 45 ou cinquenta anos quando eu tinha vinte: vi-os beber com grande entusiasmo e alardear sobre a irmandade do álcool e o talento criativo. Mas na nossa cultura essas coisas se escondem debaixo do tapete, como se não devessem ser nomeadas. Há um ensaio intitulado Alcohol y literatura, publicado em 2017, no qual o autor, Javier Barreiro, se atreve a dar nomes espanhóis e latino-americanos. Casos que, por outro lado, todos que nos dedicamos a isso já conhecemos: Juan Benet, Caballero Bonald, Dámaso Alonso, Alfonso Grosso, Fernando Quiñones, Gil de Biedma, Carlos Barral ou a grande Ana María Matute, que teve uns anos ruins mas depois se recuperou. E entre os do outro lado do oceano, Juan Carlos Onetti, Alfredo Bryce Echenique, Juan Rulfo, José Donoso, Pablo Neruda ou Guillermo Cabrera Infante.

Eu me lembro de uma entrevista que fiz com o poeta espanhol Leopoldo María Panero enquanto estava internado num hospital psiquiátrico, acho que em Ciempozuelos. Deixaram que ele saísse do lugar e passamos algumas horas conversando num bar do vilarejo enquanto ele bebia sem parar, com uma avidez chocante, um monte de cervejas sem álcool uma atrás da outra, sorvendo desesperadamente aquele 0,5% alcoólico que tinham todas as cervejas zero da época.

Em The Thirsty Muse: Alcohol and the American Writer [A musa sedenta: Álcool e o escritor americano], de Tom Dardis, o autor escreve: “Ao longo dos anos, muitos de nossos melhores artistas aceitaram a relação [entre arte e álcool]. De fato, vários declararam que não tinham escolha a não ser beber, e beber muito, se quisessem trabalhar sua arte ao máximo”. Isto é o mais chocante: que, mesmo tendo absoluta consciência dos estragos que a bebida causava na sua vida, muitos deles não tenham percebido que, à medida que avançavam no vício, suas obras iam ficando cada vez piores, chegando por vezes a emudecer completamente. Entendo o que os levava ao álcool, já dissemos no início: ele aumenta a emotividade, potencializa a desinibição, amordaça o eu controlador. Nem Hemingway nem Fitzgerald podiam escrever sem estar bêbados, por exemplo. Mas a bebida é uma musa maligna e traiçoeira, uma assassina que, antes de te matar, te embrutece, te humilha e te arranca a palavra. Como dizia o veterano escaldado Charles Bukowski, “beber ajuda a criar, embora eu não recomende”.



(O perigo de estar lúcida; tradução de Mariana Sanchez)



(Ilustração: William Hogarth - Gin Lane – 1751


sábado, 19 de julho de 2025

(IN)TE(N)SÃO VS INTENÇÃO, de Hélder Simbad

 




Com a arte dos olhos

arrancar o vestido

Depois de desnudo

massajar o corpo trémulo e aceso

com a lentidão de uma lesma



No porto dos ouvidos

atracar a imoralidade dos verbos

pequenas canoas de volúpia



Hasteada a retesada bandeira

examinar a beijos a obra de um deus

e sobre as gigantescas ondas do mar

surfar com a língua prancha



E só depois de ébrio de prazer

colher lambifoneticamene

nos umbigos de poço

o gozo da última gota de champanhe

ou levar a língua de abelha

a extrair o néctar da rosa de fogo

que me acena por entre o triângulo do vestido



E já depois do insalivar processo

irrompendo a infinita castidade das siameses coxas

qual camelo a passar pelo buraco dagulha

umaldeia antes dos países de baixo

levantar voo em direcção ao mistério



(Agris Magazine: Tundavala)



(Ilustração : Hans Bellmer - door of perception)

domingo, 13 de julho de 2025

O GATO PRETO, de Edgard Allan Poe

 


Não espero nem peço que acreditem nesta história sumamente extraordinária e, no entanto, bastante doméstica que vou narrar. Louco seria eu se esperasse tal coisa, tratando-se de um caso que os meus próprios sentidos se negam a aceitar. Não obstante, não estou louco e, com toda a certeza, não sonho. Mas amanhã posso morrer e, por isso, gostaria, hoje, de aliviar o meu espírito. Meu propósito imediato é apresentar ao mundo, clara e sucintamente, mas sem comentários, uma série de simples acontecimentos domésticos. Devido a suas consequências, tais acontecimentos me aterrorizaram, torturaram e destruíram. No entanto, não tentarei esclarecê-los. Em mim, quase não produziram outra coisa senão horror – mas, em muitas pessoas, talvez lhes pareçam menos terríveis que grotescos. Talvez, mais tarde, haja alguma inteligência que reduza o meu fantasma a algo comum – uma inteligência mais serena, mais lógica e muito menos excitável do que a minha, que perceba, nas circunstâncias a que me refiro com terror, nada mais do que uma sucessão comum de causas e efeitos muito naturais.

Desde a infância, tornaram-se patentes a docilidade e o sentido humano de meu caráter. A ternura de meu coração era tão evidente, que me tornava alvo dos gracejos de meus companheiros. Gostava, especialmente, de animais, e meus pais me permitiam possuir grande variedade deles. Passava com eles quase todo o meu tempo, e jamais me sentia tão feliz como quando lhes dava de comer ou os acariciava. Com os anos, aumentou esta peculiaridade de meu caráter e, quando me tornei adulto, fiz dela uma das minhas principais fontes de prazer. Aos que já sentiram afeto por um cão fiel e sagaz, não preciso dar-me ao trabalho de explicar a natureza ou a intensidade da satisfação que se pode ter com isso. Há algo, no amor desinteressado, e capaz de sacrifícios, de um animal, que toca diretamente o coração daqueles que tiveram ocasiões frequentes de comprovar a amizade mesquinha e a frágil fidelidade de um simples homem.

Casei cedo, e tive a sorte de encontrar em minha mulher disposição semelhante à minha. Notando o meu amor pelos animais domésticos, não perdia a oportunidade de arranjar as espécies mais agradáveis de bichos. Tínhamos pássaros, peixes dourados, um cão, coelhos, um macaquinho e um gato.

Este último era um animal extraordinariamente grande e belo, todo negro e de espantosa sagacidade. Ao referir-se à sua inteligência, minha mulher, que, no íntimo de seu coração, era um tanto supersticiosa, fazia frequentes alusões à antiga crença popular de que todos os gatos pretos são feiticeiras disfarçadas. Não que ela se referisse seriamente a isso: menciono o fato apenas porque aconteceu lembrar-me disso neste momento.

Pluto – assim se chamava o gato – era o meu preferido, com o qual eu mais me distraía. Só eu o alimentava, e ele me seguia sempre pela casa. Tinha dificuldade, mesmo, em impedir que me acompanhasse pela rua.

Nossa amizade durou, desse modo, vários anos, durante os quais não só o meu caráter como o meu temperamento – enrubesço ao confessá-lo – sofreram, devido ao demônio da intemperança, uma modificação radical para pior. Tornava-me, dia a dia, mais taciturno, mais irritadiço, mais indiferente aos sentimentos dos outros. Sofria ao empregar linguagem desabrida ao dirigir-me à minha mulher. No fim, cheguei mesmo a tratá-la com violência. Meus animais, certamente, sentiam a mudança operada em meu caráter. Não apenas não lhes dava atenção alguma, como, ainda, os maltratava. Quanto a Pluto, porém, ainda despertava em mim consideração suficiente que me impedia de maltratá-lo, ao passo que não sentia escrúpulo algum em maltratar os coelhos, o macaco e mesmo o cão, quando, por acaso ou afeto, cruzavam em meu caminho. Meu mal, porém, ia tomando conta de mim – que outro mal pode se comparar ao álcool? – e, no fim, até Pluto, que começava agora a envelhecer e, por conseguinte, se tornara um tanto rabugento, até mesmo Pluto começou a sentir os efeitos de meu mau humor.

Certa noite, ao voltar a casa, muito embriagado, de uma de minhas andanças pela cidade, tive a impressão de que o gato evitava a minha presença. Apanhei-o, e ele, assustado ante a minha violência, me feriu a mão, levemente, com os dentes. Uma fúria demoníaca apoderou-se, instantaneamente, de mim. Já não sabia mais o que estava fazendo. Dir-se-ia que, súbito, minha alma abandonara o corpo, e uma perversidade mais do que diabólica, causada pela genebra, fez vibrar todas as fibras de meu ser. Tirei do bolso um canivete, abri-o, agarrei o pobre animal pela garganta e, friamente, arranquei de sua órbita um dos olhos! Enrubesço, estremeço, abraso-me de vergonha, ao referir-me, aqui, a essa abominável atrocidade.

Quando, com a chegada da manhã, voltei à razão – dissipados já os vapores de minha orgia noturna –, experimentei, pelo crime que praticara, um sentimento que era um misto de horror e remorso; mas não passou de um sentimento superficial e equívoco, pois minha alma permaneceu impassível. Mergulhei novamente em excessos, afogando logo no vinho a lembrança do que acontecera.

Entrementes, o gato se restabeleceu, lentamente. A órbita do olho perdido apresentava, é certo, um aspecto horrendo, mas não parecia mais sofrer qualquer dor. Passeava pela casa como de costume, mas, como bem se poderia esperar, fugia, tomado de extremo terror, à minha aproximação. Restava-me ainda o bastante de meu antigo coração para que, a princípio, sofresse com aquela evidente aversão por parte de um animal que, antes, me amara tanto. Mas esse sentimento logo se transformou em irritação. E, então, como para perder-me final e irremissivelmente, surgiu o espírito da perversidade. Desse espírito, a filosofia não toma conhecimento. Não obstante, tão certo como existe minha alma, creio que a perversidade é um dos impulsos primitivos do coração humano – uma das faculdades, ou sentimentos primários, que dirigem o caráter do homem.

Quem não se viu, centenas de vezes, a cometer ações vis ou estúpidas, pela única razão de que sabia que não devia cometê-las? Acaso não sentimos uma inclinação constante, mesmo quando estamos no melhor de nosso juízo, para violar aquilo que é Lei, simplesmente porque a compreendemos como tal? Esse espírito de perversidade, digo eu, foi a causa de minha queda final. O vivo e insondável desejo da alma de atormentar-se a si mesma, de violentar sua própria natureza, de fazer o mal pelo próprio mal, foi o que me levou a continuar e, afinal, a levar a cabo o suplício que infligira ao inofensivo animal.

Uma manhã, a sangue frio, meti-lhe um nó corredio em torno do pescoço e enforquei-o no galho de uma árvore. Fi-lo com os olhos cheios de lágrimas, com o coração transbordante do mais amargo remorso. Enforquei-o porque sabia que ele me amara, e porque reconhecia que não me dera motivo algum para que me voltasse contra ele. Enforquei-o porque sabia que estava cometendo um pecado – um pecado mortal que comprometia a minha alma imortal, afastando-a, se é que isso era possível, da misericórdia infinita de um Deus infinitamente misericordioso e infinitamente terrível.

Na noite do dia em que foi cometida essa ação tão cruel, fui despertado pelo grito de “fogo!”. As cortinas de minha cama estavam em chamas. Toda a casa ardia. Foi com grande dificuldade que minha mulher, uma criada e eu conseguimos escapar do incêndio. A destruição foi completa. Todos os meus bens terrenos foram tragados pelo fogo, e, desde então, me entreguei ao desespero.

Não pretendo estabelecer relação alguma entre causa e efeito – entre o desastre e a atrocidade por mim cometida. Mas estou descrevendo uma sequência de fatos, e não desejo omitir nenhum dos elos dessa cadeia de acontecimentos. No dia seguinte ao do incêndio, visitei as ruínas. As paredes, com exceção de uma apenas, tinham desmoronado. Essa única exceção era constituída por um fino tabique interior, situado no meio da casa, junto ao qual se achava a cabeceira de minha cama. O reboco havia, aí, em grande parte, resistido à ação do fogo – coisa que atribuí ao fato de ter sido ele construído recentemente. Densa multidão se reunira em torno dessa parede, e muita pessoas examinavam, com particular atenção e minuciosidade, uma parte dela. As palavras “estranho!”, “singular!”, bem como outras expressões semelhantes, despertaram-me a curiosidade. Aproximei-me e vi, como se gravada em baixo-relevo sobre a superfície branca, a figura de um gato gigantesco. A imagem era de uma exatidão verdadeiramente maravilhosa. Havia uma corda em torno do pescoço do animal.

Logo que vi tal aparição – pois não poderia considerar aquilo como sendo outra coisa –, o assombro e terror que se me apoderaram foram extremos. Mas, finalmente, a reflexão veio em meu auxílio. O gato, lembrei-me, fora enforcado num jardim existente junto à casa. Aos gritos de alarma, o jardim fora imediatamente invadido pela multidão. Alguém deve ter retirado o animal da árvore, lançando-o, através de uma janela aberta, para dentro do meu quarto. Isso foi feito, provavelmente, com a intenção de despertar-me. A queda das outras paredes havia comprimido a vítima de minha crueldade no gesso recentemente colocado sobre a parede que permanecera de pé. A cal do muro, com as chamas e o amoníaco desprendido da carcaça produzira a imagem tal qual eu agora a via.

Embora isso satisfizesse prontamente minha razão, não conseguia fazer o mesmo, de maneira completa, com minha consciência, pois o surpreendente fato que acabo de descrever não deixou de causar-me, apesar de tudo, profunda impressão. Durante meses, não pude livrar-me do fantasma do gato e, nesse espaço de tempo, nasceu em meu espírito uma espécie de sentimento que parecia remorso, embora não o fosse. Cheguei, mesmo, a lamentar a perda do animal e a procurar, nos sórdidos lugares que então frequentava, outro bichano da mesma espécie e de aparência semelhante que pudesse substituí-lo.

Uma noite, em que me achava sentado, meio aturdido, num antro mais do que infame, tive a atenção despertada, subitamente, por um objeto negro que jazia no alto de um dos enormes barris, de genebra ou rum, que constituíam quase que o único mobiliário do recinto. Fazia já alguns minutos que olhava fixamente o alto do barril, e o que então me surpreendeu foi não ter visto antes o que havia sobre o mesmo. Aproximei-me e toquei-o com a mão. Era um gato preto, enorme – tão grande quanto Pluto – e que, sob todos os aspectos, salvo um, se assemelhava a ele. Pluto não tinha um único pelo branco em todo o corpo – e o bichano que ali estava possuía uma mancha larga e branca, embora de forma indefinida, a cobrir-lhe quase toda a região do peito.

Ao acariciar-lhe o dorso, ergueu-se imediatamente, ronronando com força e esfregando-se em minha mão, como se a minha atenção lhe causasse prazer. Era, pois, o animal que eu procurava. Apressei-me em propor ao dono a sua aquisição, mas este não manifestou interesse algum pelo felino. Não o conhecia; jamais o vira antes.

Continuei a acariciá-lo e, quando me dispunha a voltar para casa, o animal demonstrou disposição de acompanhar-me. Permiti que o fizesse – detendo-me, de vez em quando, no caminho, para acariciá-lo. Ao chegar, sentiu-se imediatamente à vontade, como se pertencesse a casa, tornando-se logo, um dos bichanos preferidos de minha mulher.

De minha parte, passei a sentir logo aversão por ele. Acontecia, pois, justamente o contrário do que eu esperava. Mas a verdade é que – não sei como nem por quê – seu evidente amor por mim me desgostava e aborrecia. Lentamente, tais sentimentos de desgosto e fastio se converteram no mais amargo ódio. Evitava o animal. Uma sensação de vergonha, bem como a lembrança da crueldade que praticara, impediam-me de maltratá-lo fisicamente. Durante algumas semanas, não lhe bati nem pratiquei contra ele qualquer violência; mas, aos poucos – muito gradativamente –, passei a sentir por ele inenarrável horror, fugindo, em silêncio, de sua odiosa presença, como fugisse de uma peste.

Sem dúvida, o que aumentou o meu horror pelo animal foi a descoberta, na manhã do dia seguinte ao que o levei para casa, que, como Pluto, também havia sido privado de um dos olhos. Tal circunstância, porém, apenas contribuiu para que minha mulher sentisse por ele maior carinho, pois, como já disse, era dotada, em alto grau, dessa ternura de sentimentos que constituíra, em outros tempos, um de meus traços principais, bem como fonte de muitos de meus prazeres mais simples e puros.

No entanto, a preferência que o animal demonstrava pela minha pessoa parecia aumentar em razão direta da aversão que sentia por ele. Seguia-me os passos com uma pertinácia que dificilmente poderia fazer com que o leitor compreendesse. Sempre que me sentava, enrodilhava-se embaixo de minha cadeira, ou me saltava ao colo, cobrindo-me com suas odiosas carícias. Se me levantava para andar, metia-se-me entre as pernas e quase me derrubava, ou então, cravando suas longas e afiadas garras em minha roupa, subia por ela até o meu peito. Nessas ocasiões, embora tivesse ímpetos de matá-lo de um golpe, abstinha-me de fazê-lo devido, em parte, à lembrança de meu crime anterior, mas, sobretudo – apresso-me a confessá-lo –, pelo pavor extremo que o animal me despertava.

Esse pavor não era exatamente um pavor de mal físico e, contudo, não saberia defini-lo de outra maneira. Quase me envergonha confessar – sim, mesmo nesta cela de criminoso –, quase me envergonha confessar que o terror e o pânico que o animal me inspirava eram aumentados por uma das mais puras fantasias que se possa imaginar. Minha mulher, mais de uma vez, me chamara a atenção para o aspecto da mancha branca a que já me referi, e que constituía a única diferença visível entre aquele estranho animal e o outro, que eu enforcara. O leitor, decerto, se lembrará de que aquele sinal, embora grande, tinha, a princípio, uma forma bastante indefinida. Mas, lentamente, de maneira quase imperceptível – que a minha imaginação, durante muito tempo, lutou por rejeitar como fantasiosa –, adquirira, por fim, uma nitidez rigorosa de contornos. Era, agora, a imagem de um objeto cuja menção me faz tremer… e, sobretudo por isso, eu o encarava como a um monstro de horror e repugnância, da qual eu, se tivesse coragem, me teria livrado. Era agora, confesso, a imagem de uma coisa odiosa, abominável: a imagem da forca! Oh, lúgubre e terrível máquina de horror e de crime, de agonia e de morte!

Na verdade, naquele momento eu era um miserável – um ser que ia além da própria miséria da humanidade. Era uma besta-fera, cujo irmão fora por mim desdenhosamente destruído… uma besta-fera que se engendrara em mim, insuportável infortúnio! Ai de mim! Nem de dia, nem de noite, conheceria jamais a bênção do descanso! Durante o dia, o animal não me deixava a sós um único momento; e, à noite, despertava de hora em hora, tomado do indescritível terror de sentir o hálito quente da coisa sobre o meu rosto, e o seu enorme peso – encarnação de um pesadelo que não podia afastar de mim – pousado eternamente sobre o meu coração!

Sob a pressão de tais tormentos, sucumbiu o pouco que restava em mim de bom. Pensamentos maus converteram-se em meus únicos companheiros – os mais sombrios e os mais perversos dos pensamentos. Minha rabugice habitual se transformou em ódio por todas as coisas e por toda a humanidade – e, enquanto eu, agora, me entregava cegamente a súbitos, frequentes e irreprimíveis acesso de cólera, minha mulher – pobre dela! – não se queixava nunca, convertendo-se na mais paciente e sofredora das vítimas.

Um dia, acompanhou-me, para ajudar-me numa das tarefas domésticas, até o porão do velho edifício em que nossa pobreza nos obrigava a morar. O gato seguiu-nos e, quase fazendo-me rolar escada abaixo, me exasperou a ponto de perder o juízo. Apanhando uma machadinha e esquecendo o terror pueril que até então contivera minha mão, dirigi ao animal um golpe que teria sido mortal, se atingisse o alvo. Mas minha mulher segurou-me o braço, detendo o golpe. Tomado, então, de fúria demoníaca, livrei o braço do obstáculo que o detinha e cravei-lhe a machadinha no cérebro. Minha mulher caiu morta instantaneamente, sem lançar um gemido.

Realizado o terrível assassínio, procurei, movido por súbita resolução, esconder o corpo. Sabia que não poderia retirá-lo da casa, nem de dia nem de noite, sem correr o risco de ser visto pelos vizinhos. Ocorreram-me vários planos. Pensei, por um instante, em cortar o corpo em pequenos pedaços e destruí-los por meio do fogo. Resolvi, depois, cavar uma fossa no chão da adega. Em seguida, pensei em atirá-lo ao poço do quintal. Mudei de ideia e decidi mantê-lo num caixote, como se fosse uma mercadoria, na forma habitual, fazendo com que um carregador o retirasse da casa. Finalmente, tive uma ideia que me pareceu muito mais prática: resolvi emparedá-lo na adega, como faziam os monges da Idade Média com as suas vítimas.

Aquela adega se prestava muito bem para tal propósito. As paredes não haviam sido construídas com muito cuidado e, pouco antes, haviam sido cobertas, em toda a sua extensão, com um reboco que a umidade impedira de endurecer. Ademais, havia uma saliência numa das paredes, produzida por alguma chaminé ou lareira, que fora tapada para que se assemelhasse ao resto da adega. Não duvidei de que poderia facilmente retirar os tijolos naquele lugar, introduzir o corpo e recolocá-los do mesmo modo, sem que nenhum olhar pudesse descobrir nada que despertasse suspeita.

E não me enganei em meus cálculos. Por meio de uma alavanca, desloquei facilmente os tijolos e, tendo depositado o corpo, com cuidado, de encontro à parede interior, segurei-o nesta posição, até poder recolocar, sem grande esforço, os tijolos em seu lugar, tal como estavam anteriormente. Arranjei cimento, cal e areia e, com toda a precaução possível, preparei uma argamassa que não se poderia distinguir da anterior, cobrindo com ela, escrupulosamente, a nova parede. Ao terminar, senti-me satisfeito, pois tudo correra bem. A parede não apresentava o menor sinal de ter sido rebocada. Limpei o chão com o maior cuidado e, lançando o olhar em torno, disse, de mim para comigo: “Pelo menos aqui, o meu trabalho não foi em vão”.

O passo seguinte foi procurar o animal que havia sido a causa de tão grande desgraça, pois resolvera, finalmente, matá-lo. Se, naquele momento, tivesse podido encontrá-lo, não haveria dúvida quanto à sua sorte: mas parece que o esperto animal se alarmara ante a violência de minha cólera, e procurava não aparecer diante de mim enquanto me encontrasse naquele estado de espírito. Impossível descrever ou imaginar o profundo e abençoado alívio que me causava a ausência de tão detestável felino. Não apareceu também durante a noite – e, assim, pela primeira vez, desde sua entrada em casa, consegui dormir tranquilo e profundamente. Sim, dormi mesmo com o peso daquele assassínio sobre a minha alma.

Transcorreram o segundo e o terceiro dia – e o meu algoz não apareceu. Pude respirar, novamente, como homem livre. O monstro, aterrorizado fugira para sempre de casa. Não tornaria a vê-lo! Minha felicidade era infinita! A culpa de minha tenebrosa ação pouco me inquietava. Foram feitas algumas investigações, mas respondi prontamente a todas as perguntas. Procedeu-se, também, a uma vistoria em minha casa, mas, naturalmente, nada podia ser descoberto. Eu considerava já como coisa certa a minha felicidade futura.

No quarto dia após o assassinato, uma caravana policial chegou, inesperadamente, a casa, e realizou, de novo, rigorosa investigação. Seguro, no entanto, de que ninguém descobriria jamais o lugar em que eu ocultara o cadáver, não experimentei a menor perturbação. Os policiais pediram-me que os acompanhasse em sua busca. Não deixaram de esquadrinhar um canto sequer da casa. Por fim, pela terceira ou quarta vez, desceram novamente ao porão. Não me alterei o mínimo que fosse. Meu coração batia calmamente, como o de um inocente. Andei por todo o porão, de ponta a ponta. Com os braços cruzados sobre o peito, caminhava, calmamente, de um lado para outro. A polícia estava inteiramente satisfeita e preparava-se para sair. O júbilo que me inundava o coração era forte demais para que pudesse contê-lo. Ardia de desejo de dizer uma palavra, uma única palavra, à guisa de triunfo, e também para tornar duplamente evidente a minha inocência.

– Senhores – disse, por fim, quando os policiais já subiam a escada –, é para mim motivo de grande satisfação haver desfeito qualquer suspeita. Desejo a todos os senhores ótima saúde e um pouco mais de cortesia. Diga-se de passagem, senhores, que esta é uma casa muito bem construída… (quase não sabia o que dizia, em meu insopitável desejo de falar com naturalidade.) Poderia, mesmo, dizer que é uma casa excelentemente construída. Estas paredes – os senhores já se vão? –, estas paredes são de grande solidez.

Nessa altura, movido por pura e frenética fanfarronada, bati com força, com a bengala que tinha na mão, justamente na parte da parede atrás da qual se achava o corpo da esposa de meu coração.

Que Deus me guarde e livre das garras de Satanás! Mal o eco das batidas mergulhou no silêncio, uma voz me respondeu do fundo da tumba, primeiro com um choro entrecortado e abafado, como os soluços de uma criança; depois, de repente, com um grito prolongado, estridente, contínuo, completamente anormal e inumano. Um uivo, um grito agudo, metade de horror, metade de triunfo, como somente poderia ter surgido do inferno, da garganta dos condenados, em sua agonia, e dos demônios exultantes com a sua condenação.

Quanto aos meus pensamentos, é loucura falar. Sentindo-me desfalecer, cambaleei até a parede oposta. Durante um instante, o grupo de policiais deteve-se na escada, imobilizado pelo terror. Decorrido um momento, doze braços vigorosos atacaram a parede, que caiu por terra. O cadáver, já em adiantado estado de decomposição, e coberto de sangue coagulado, apareceu, ereto, aos olhos dos presentes. Sobre sua cabeça, com a boca vermelha dilatada e o único olho chamejante, achava-se pousado o animal odioso, cuja astúcia me levou ao assassínio e cuja voz reveladora me entregava ao carrasco. Eu havia emparedado o monstro dentro da tumba!



(Histórias Extraordinárias; tradução de Breno Silveira.)



(Ilustração: Pavel Petrov - The Cat)

sexta-feira, 11 de julho de 2025

NOTÍCIA, de Thaise Monteiro

 





Menino

menino fuzilado nunca foi

nem nunca será um poema

não será poema toda a barbárie

que voa

atravessa a rua

quebra a vidraça

e descansa sobre a pena de poetas

palavras mortas de dicionário



Serão notícias não poemas

notícias amareladas presas entre os dentes

ruminadas dia após dia



Menino

menino fuzilado

e o choro irregular de suas negras mães

descem feito enxurrada

pelos becos pelos guetos

contidos impedidos enterrados

e fatalmente esquecidos





(Ilustração: Odette Dalpé)

segunda-feira, 7 de julho de 2025

QUEM PODE FALAR?, de Grada Kilomba


Todo semestre, no primeiro dia do meu curso, direciono algumas questões à turma. Primeiro nós contamos quantas pessoas temos na sala para ver quantas serão capazes de responder. Quando eu começo a fazer questionamentos simples como: o que foi a conferência de Berlim em 1884–5? Quais países africanos foram colonizados pela Alemanha? A colonização alemã no continente africano durou quanto tempo, no fim das contas? Então concluo com questionamentos mais específicos, tais como: quem foi a rainha Nzinga? Quem escreveu Peles negras, máscaras brancas? Ou: quem foi May Ayim?

Não surpreende que a maioria das/os estudantes brancas/os não consigam responder às questões, enquanto estudantes negras/os respondem corretamente a maioria delas. Repentinamente, aqueles cujo conhecimento tem sido escondido se tornam visíveis, enquanto aqueles que são sempre visíveis se tornam invisíveis. Aqueles que costumam se calar começam a falar, enquanto aqueles que sempre falam se tornam silentes. Silentes não porque não são capazes de articular suas vozes ou idiomas, mas, para além disso: eles não possuem aquele conhecimento. Quem sabe o quê? Quem não sabe? E por quê?

Esse exercício nos leva a entender como os conceitos de conhecimento, escolaridade e ciência são intrinsecamente relacionados ao poder e à autoridade racial. O que é conhecimento? Que conhecimento é reconhecido como tal? E qual conhecimento não é reconhecido? Que conhecimento é esse? Quem é autorizado a ter conhecimento? E quem não é? Que conhecimento tem sido parte das agendas acadêmicas? Quais conhecimentos não fazem parte? Que conhecimento é esse? Quem está autorizado a ter esse conhecimento? Quem não está? Quem pode ensinar esse conhecimento? Quem não pode? Quem habita a academia? Quem está às margens? E, finalmente: quem pode falar?

Essas questões precisam ser feitas porque a academia não é um espaço neutro. É sim um espaço branco onde o privilégio de falar tem sido negado às pessoas negras e não-brancas. Historicamente, esse espaço vem construindo teorias cujos discursos têm nos construído como inferiores, ou seja: "outros" - localizando africanos/as em subordinação absoluta ao sujeito branco. Aqui nós temos sido descritas, explicadas, categorizadas, relatadas, expostas e desumanizadas.

Em meio a essas salas, nós temos sido construídas/os como objetos, mas nós raramente temos sido sujeitos. Nesse sentido, a academia não é nem um espaço neutro nem simplesmente um espaço de conhecimento e inteligência, de ciência e compreensão; a academia é também um espaço de V-I-O-L-Ê-N-C-I-A.

A posição de objetificação, que é normalmente ocupado por nós, o lugar de Outridade, não indica uma falta de resistência ou de interesse, como geralmente acreditam, é muito mais falta de acesso à representação de negrxs e não-brancxs por si mesmxs. Não é que nós não temos falado, mas as nossas vozes - graças ao racismo como sistema -, temos sido sistematicamente desqualificadxs pelo que a academia entende como conhecimento válido. E mais: nós temos sido representadxs por brancos, que, ironicamente, se tornam "especialistas" em [nossa cultura] e nós mesmxs. De ambas as formas, estamos encarceradxs numa hierarquia colonial violentíssima.

Assim como uma acadêmica, eu tenho ouvido com frequência que o meu trabalho a respeito do racismo diário é muito interessante, mas não científico, uma observação que ilustra essa ordem colonial que se coloca como lugar de quem é negro, negra ou, simplesmente, não branco/a: "Você tem uma perspectiva subjetiva"; "muito pessoal"; "muito emocional"; "muito específico"; "são fatos objetivos?". Tais comentários funcionam como uma máscara que silencia nossas vozes tão logo falamos. Eles localizam os discursos produzidos por pessoas negras e não brancas de volta às margens, como conhecimento desviante, enquanto os discursos brancos são reiterados como centro, como a norma.

Quando eles falam é científico. Quando falamos é não científico.

universal/específico

objetivo/subjetivo

racional/emocional

imparcial/parcial

Eles têm fatos, nós temos opiniões

Eles têm conhecimento, nós temos experiências.

Essas não são apenas categorizações semânticas; elas possuem a dimensão de poder que mantém as posições hierarquizadas. Nós não tratamos aqui, simplesmente, duma semântica, mas duma hierarquia violenta que define quem pode falar.

Deste muito tempo atrás, pessoas negras/não brancas acadêmicas e escritoras têm falado e produzido conhecimento independente, mas, assim como são grupos cujo poder é desigual, eles também têm acesso desigual aos recursos necessários para projetar suas próprias vozes (COLLINS, 2000). Devido a nossa falta de poder ante tais estruturas, a articulação de nossa própria perspectiva fora do grupo se torna demasiadamente difícil, se não impossível. Como resultado, o trabalho de acadêmicos/as e escritoras/es negros/as é excluído das ementas e agendas, assim como aquelas questões evidenciaram. O que nós sabemos? E por quê?

Não há nada de acidental lá, eles são localizados nas margens pelo regime dominante que regula os parâmetros do que é ou não acadêmico de verdade. As estruturas de validação do conhecimento, que definem o que é conhecimento "verdadeiro" e "válido", são controladas por acadêmicos brancos - tanto homens quanto mulheres - que declaram suas perspectivas como pressupostos universais e objetivos. Desse modo, as posições de autoridade e comando, na academia, têm sido negadas ao povo negro e não branco. Desse modo, a ideia do que é ciência e conhecimento acadêmico - óbvio - permanece intacta - isso coloca o conhecimento acadêmico e a própria academia em si como uma "propriedade" exclusiva da branquidade.

Assim, não é uma verdade objetiva e científica que nós encontramos na academia, mas o resultado relações desiguais das poderosas relações "raciais".

Qualquer acadêmico que não seja conivente com a ordem acadêmica dominante tem sido rejeitado continuamente e encarcerado no lugar do que não se constitui como ciência "crível". Assim como esse fato revela a inadequação dos acadêmicos dominantes em relação, não apenas aos sujeitos marginalizados, mas também das nossas experiências, discurso e teorizações. Ciência é, nesse sentido, não apenas um estudo apolítico da verdade, mas a reprodução de relações de poder racializadas que definem quem conta como verdade e em quem devemos acreditar.

Os temas, paradigmas e metodologias do academicismo tradicional - reunidos sob o conceito de Epistemologia - refletem simplesmente os interesses políticos da sociedade branca.

Epistemologia deriva do grego "episteme", que significa conhecimento, e logos, que significa ciência, portanto, é a ciência da aquisição do conhecimento. Ela determina quais questões merecem ser questionadas (temas), o modo de analisar e explicar um fenômeno (paradigmas) e como conduzir pesquisa de modo a produzir conhecimento (métodos) e, nesse sentido, a epistemologia define, não apenas o que é conhecimento válido, mas em que devemos acreditar e em quem confiar.

É evidente que as minhas questões, sendo uma mulher Negra, devem diferir das questões das colegas brancas. Os temas, os paradigmas e metodologias usadas para explicar minha realidade podem diferir desde os temas, paradigmas e metodologias do grupo dominante. Por outro lado, isso não significa que eu sou incapaz de produzir conhecimento, mas que o conhecimento que eu produzo transgride o academicismo tradicional. Quando eu escrevo, eu descolonizo a academia, transformo as configurações de conhecimento e poder. Cada sentença e cada palavra abre um novo espaço para discursos alternativos e políticas do conhecimento. Isso é a descolonização do conhecimento.

Interessante que eles dizem: mas é subjetivo, mas é pessoal, mas é emocional, mas é parcial. "Você está sobre interpretando", disse uma colega, "você está pensando que é a rainha da interpretação". Tais observações revelam a incessante necessidade de controlar a voz do sujeito negro, bem como o desejo de governar como nós abordaremos e interpretaremos nossa realidade. Através desses comentários, o sujeito branco se investe do senso de poder e autoridade contra o outro grupo, que ele classifica como incapaz de produzir conhecimento válido, menos apto aquela experiência.

O último comentário, em particular, tem dois momentos poderosos. O primeiro momento é a forma como ameaça, que descreve o ponto de vista da mulher Negra como uma distorção da verdade, ideia manifestada na escolha lexical de "sobre interpretação". As colegas estavam me advertindo quando disseram que eu estava excedendo, lendo além das normas determinadas pela epistemologia tradicional, e, desse modo, alertaram sobre eu estar produzindo conhecimento inválido. Parece-me que essa ideia de "sobre interpretação" aborda o pensamento de pessoas oprimidas sempre que acadêmicos dominantes são levados (pelas nossas teorias) a avistar "algo" que não poderia estar à vista, e ouvir "algo" que não deveria ser dito. "Algo" que deveria ser mantido quieto, calado, como um segredo - isto é, como segredos do colonialismo que as rodadas de perguntas não desejam ver reveladas.

Curiosamente, é comum o discurso feminista ser atacado por tentativas (dos homens) de irracionalizar os pensamentos das mulheres, como se as interpretações feministas não fossem nada mais que fabricação da realidade, uma ilusão, possivelmente uma alucinação feminina. Em meio a essa constelação, no entanto, são as mulheres brancas que irracionalizam meu próprio pensamento e, ao fazer isso, elas definem para uma mulher Negra o que é um pensamento acadêmico "real" e como ele poderia ser expressado. Isso revela a complexidade da interseção entre gênero, "raça" e poder.

No segundo momento, ela fala de espaços hierarquizados, de uma rainha que ela fantasia que desejo ser, mas que não posso me tornar. A rainha é uma metáfora interessante. É uma metáfora para designar poder. Também traz a ideia de que cada corpo pertence a espaços predeterminados: uma rainha pertence, naturalmente ao palácio ("do conhecimento"), diferente das plebeias, que são marcadas, fechadas e encarceradas em seus corpos subordinados.

Assim como a hierarquia introduz dinâmica em que Negritude significa "estar fora do lugar" ela se refere ao fato de que branquitude significa "estar no lugar". Foi dito a mim que eu estava fora do lugar, já que na fantasia dela eu só poderia ser a plebeia. Meu corpo é visto como impróprio. Em meio ao racismo, corpos negros são construídos como corpos impróprios, como corpos "fora do lugar" e, além disso: corpos que jamais poderão pertencer a algum lugar. Corpos brancos, ao contrário, são corpos sempre próprios, são sempre corpos em casa, "no lugar", corpos que sempre pertencem ao lugar. Através daqueles comentários, acadêmicos/as e escritores/as negros/as são persistentemente convidados/as a voltarem ao "seu lugar", isso é, "fora" da academia, nas margens, onde seus corpos podem ser vistos como "próprios" e "em casa".

Essas palavras agressivas são frutíferas performances de poder, controle e intimidação, que, muitas vezes, me levou ao silêncio. Tais palavras foram tão fecundas que eu me lembro de ter parado de escrever por cerca de um mês. Eu me tornei temporariamente sem voz. Fui claramente excluída [white-out] e estive esperando ser escuramente incluída [black-in].

É evidente que falar sobre essas posições de marginalidade evoca dor, desapontamento e raiva. Elas são reminiscências dos lugares que nós "dificilmente podemos entrar", "os lugares em que nem podemos chegar" assim como "não podemos permanecer"

Essas realidades podem ser faladas e teorizadas. Elas devem ter lugar no discurso, porque nós não tratamos aqui de "informações privadas". Assim, o que parece "informação privada" não é privada de tudo. Não existem histórias pessoais ou reclamações íntimas, mas consequências do racismo. Essas narrativas refletem a realidade das "relações sociais" em meio aos espaços acadêmicos, o que deve ser articulado tanto à teoria quanto à metodologia.

Portanto, eu chamo para uma epistemologia que inclua a subjetividade e o pessoal como parte do discurso acadêmico, para que possamos todos juntos falar de um espaço, lugar e tempo específico, de uma realidade e história específica (HALL, 1990), não há discursos neutros. Quando acadêmicos brancos reivindicam um discurso neutro e objetivo, eles não reconhecem o fato de que eles também escrevem de um lugar específico que, certamente, não é neutro, nem objetivo, nem universal, mas dominante. É um lugar de poder.

Então, se meus escritos incluem emoções e subjetividade como parte do discurso teórico, eles, então, relembram que teoria é sempre localizada em algum lugar [porque] sempre é escrita por alguém.



Referências:

Patricia Hill Collins, Black Feminist Thought: Knowledge, Consciousness, and the Politics of Empowerment, Routledge, New York, 2000.

Stuart Hall, “Cultural Identity and Diaspora” in: Identity: Community, Culture, Difference, Jonathan Rutherford, ed., Lawrence & Wishart Limited., London, 1990,

bell hooks, Yearning: Race, Gender and Cultural Politics, South End Press, Boston, 1990.



(Who can speak? Tradução livre de Anne Caroline Quiangala do texto originalmente publicado em inglês na página oficial da autora. Excerto do livro: Plantation Memories.)



(Ilustração: Odette Dalpé - retratos)