sábado, 15 de março de 2025

COMO GANHEI O CONCURSO DE QUEM CONTAVA MELHOR UM FILME, de Hernán Rivera Letelier

 




“Somos feitos do mesmo material dos sonhos.”

Shakespeare

“Somos feitos do mesmo material dos filmes.”

Fada Docine [*]

Como em casa o dinheiro andava a cavalo e a gente andava a pé, quando chegava um filme no acampamento da Mina e meu pai – só pelo nome do ator ou da atriz principal – achava que parecia ser bom, as moedas eram juntadas uma a uma, o preço exato da entrada, e me mandavam assistir.

Depois, ao voltar do cinema, eu tinha de contar o filme para a família inteira reunida na sala. 

Era lindo, depois de ver o filme, encontrar meu pai e meus irmãos me esperando ansiosos em casa, sentados enfileirados que nem no cinema, penteadinhos e de roupa limpa, recém-mudada.

Meu pai, com uma manta boliviana cobrindo as pernas, ocupava a única poltrona que a gente tinha, e assim era a plateia lá de casa. No chão, do lado da poltrona, brilhava sua garrafa de vinho tinto e o único copo que havia sobrado em casa. A galeria era aquela bancada comprida, de madeira bruta, onde meus irmãos se acomodavam em ordem, do menor ao maior. Depois, quando alguns de seus amigos começaram a aparecer na janela, a janela virou o balcão.

Eu chegava do cinema, tomava rapidinho uma xícara de chá (que deixavam pronto me esperando) e começava a minha função. De pé na frente deles, de costas para a parede pintada a cal, branca feito a tela do cinema, começava a contar o filme “de a a z”, como dizia meu pai, tratando de não esquecer nenhum detalhe, nem da história, nem dos diálogos, nem dos personagens.

Aliás, devo esclarecer aqui que não me mandavam para o cinema só por ser a única mulher da família e eles – meu pai e meus irmãos – serem cavalheiros com as damas. Não senhor. Eles me mandavam porque eu era a melhor contando filmes. Assim mesmo, como se ouve: a melhor contadora de filmes da família. Depois, passei a ser a melhor da viela e em pouco tempo a melhor do povoado. Que eu saiba, não havia ninguém no povoado da Mina que ganhasse de mim na hora de contar filmes. Do tipo que fosse: de caubóis, de terror, de guerra, de marcianos, de amor. E, claro, os filmes mexicanos, que eram os que papai, como todo mundo que tinha vindo do sul, mais gostava.

E foi justamente com um filme mexicano, desses cheios de cantorias e muito choro, que ganhei meu título. Não foi nada fácil ganhar esse título.

Ou vocês acham que fui eleita só por causa da minha fina estampa?

Éramos cinco filhos na família. Quatro homens e eu. Nós cinco formávamos uma escadinha perfeita, em tamanho e idade. Eu era a menor. Vocês imaginam o que significa crescer numa casa só de irmãos homens? Nunca brinquei de boneca. Em compensação, era campeã em bolinhas de gude e no jogo de palitinhos. E na hora de matar lagartixas nas minas de cal ninguém ganhava de mim. Era eu botar o olho e paf, lagartixa morta.

Andava de pé no chão todo santo dia, fumava escondida, usava um boné de aba virada e tinha até aprendido a mijar de pé.

A gente mija de pé, a gente urina de cócoras.

E eu mijava em qualquer lugar do deserto de salitre, igual aos meus irmãos. Até nas competições de quem mijava mais longe às vezes eu ganhava. E contra o vento.

Quando fiz sete anos entrei na escola. Além do sacrifício de ter que usar saia, me custou um bocado acostumar a urinar como as senhoritas.

Custou mais do que aprender a ler.

Quando papai teve a ideia do concurso, eu tinha dez anos e estava no terceiro ano do primário. Sua ideia consistiu em mandar a gente, um por um, para o cinema, e depois nos fazer contar o filme. Quem contasse melhor iria toda vez que passasse um dos bons. Ou um mexicano. O mexicano podia ser bom ou ruim, para meu pai isso não importava. Desde, é claro, que houvesse dinheiro para a entrada.

Os outros iam ter de se conformar em ouvir, depois, o filme ser contado em casa. Nós todos gostamos da ideia; todos nós nos sentíamos capazes de ganhar. Não era em vão que, como todas as outras crianças do povoado, cada vez que íamos ao cinema saíamos imitando os mocinhos do filme em suas melhores cenas.

Meus irmãos sabiam imitar perfeitamente o caminhar cambaio e o olhar oblíquo de John Wayne, o gesto de desprezo de Humphrey Bogart e as incríveis caretas de Jerry Lewis.

Eu os matava de rir ao tratar de piscar as pestanas feito Marilyn Monroe, ou de imitar as boquinhas de menina inocente – voluptuosamente inocente – de Brigitte Bardot.

Alguns se perguntarão por que meu pai não ia, ele mesmo, ao cinema; pelo menos quando passassem um filme mexicano. Meu pai não conseguia andar. Tinha sofrido um acidente de trabalho que o deixou paralítico da cintura para baixo. Não trabalhava mais. Recebia uma pensão de invalidez que era uma miséria, mal dava para comer.

Nem preciso dizer que a gente não tinha nem para uma cadeira de rodas. Para levá-lo da sala para o quarto, ou do quarto para a porta da rua – onde ele gostava de beber sua garrafa de vinho tinto vendo passarem a tarde e seus amigos –, meus irmãos tinham adaptado as rodas de um velho triciclo na poltrona. O triciclo tinha sido o primeiro presente de páscoa do meu irmão mais velho e as rodas não aguentavam muito o peso do meu pai, dobravam, e era preciso ficar consertando tudo o tempo inteiro.

E a minha mãe? Bom, minha mãe, depois do acidente, abandonou meu pai. Abandonou meu pai e nos abandonou, os seus cinco filhos. Assim, num vupt! Por isso lá em casa meu pai tinha nos proibido de falar dela; da “sirigaita”, como a chamava com desdém.

“Não me falem dessa sirigaita” – dizia ele, quando algum de nós, sem querer, deixava escapar a palavra mamãe.

Depois, entrava no silêncio e a gente levava horas até conseguir tirá-lo de lá.

[...]

Devo confessar que nunca imaginei que seria a vencedora do concurso de quem contava melhor um filme. É que meu irmão Mirto, o segundo, apelidado de Pássaro, que em casa era o responsável pelas compras, era o favorito de todo mundo. Ele sempre foi alegre e falastrão e passava o dia contando coisas que aconteciam com ele; tinha muito senso de humor.

Já meu irmão Mariano, o mais velho, que por causa de sua gagueira era chamado de Caterpillar – ele se encarregava de cozinhar, apesar de ser o mais inteligente de todos, e “mais sério que cabo de polícia”, como dizia meu pai –, não tinha nenhuma possibilidade, por causa de sua fala quebrada. O coitado tinha começado a gaguejar quando nossa mãe foi-se embora.

Meu irmão Manuel, o terceiro (era quem cuidava da limpeza), nem gostava muito de cinema. Para ele, o que mais importava no mundo era o futebol; era um peladeiro impenitente; suas partidas duravam o dia inteiro, o primeiro tempo de manhã e o segundo de tarde, com um breve intervalo para o almoço. Por causa de seu hábito de fazer um montinho de terra cada vez que ia chutar a bola, foi apelidado de Morrinho.

No deserto, todo mundo exibia com orgulho a condecoração de um apelido; quem não tinha apelido era um nonato, um zé ninguém, não existia.

Meu quarto irmão, Marcelino, o Cabeça de Livro, tinha alma de artista. Gostava de desenhar e pintar com lápis de cor. Em casa era mais para o calado, gostava mais de ouvir que de falar. E sua única tarefa era tirar o lixo.

Depois vinha eu, e, por ser mulher, ninguém dava um tostão por mim. Eles achavam que as mulheres só prestavam para fazer as camas e lavar os pratos – daí que eu cuidava da casa – e por isso não tinha a menor chance. Acontece que havia três coisas que me davam vantagem em cima deles, embora nem eu mesma soubesse. A primeira é que eu devorava os quadrinhos de Hopalong Cassidy, de Gene Autry, de Kid Colt e todos os heróis do Velho Oeste, e eles não liam nada. A segunda é que eu era louca pelas novelas de rádio, uma paixão que tinha herdado da minha mãe, que, comigo nos braços, jamais perdia um capítulo de Esmeralda, a filha do rio. E a terceira era uma coisa que até papai ignorava: quando eu era muito pequena, minha mãe me fazia dormir contando para mim filmes românticos – os seus favoritos –, coisa que não fez com nenhum dos meus irmãos.

“Essas coisas são mais nossas, das mulheres”, dizia ao me dar uma piscada de cumplicidade que eu adorava. 

O primeiro a ir ao cinema foi meu irmão Mariano, o Caterpillar. Sua narração foi um desastre. Naquele dia passou um de guerra – alemães contra norte-americanos –, e a única coisa que se entendia e saía emendado da boca do pobrezinho era o matracar das metralhadoras. E a mímica. Sua mímica era genial. Eu acho que nos tempos do cinema mudo ele teria sido muito bom.

Na vez do meu irmão Mirto, o Pássaro, passaram um de índios, com Jack Palance. Sua narração foi extraordinária. O galope dos cavalos, os tiros, os gritos dos índios, os sinais de fumaça. A gente até achava que estava ouvindo o assovio das flechas passando sobre nossas cabeças, zuuuummm! A única coisa ruim era que Mirto contava tudo na base de “babaquices” e “cagadas”:

“Então, quando o babaca sacou do revólver e atirou na cabeça da babacona, deu uma tremenda cagada porque os outros babacas nem cagando iam deixar que cagassem neles daquele jeito…”.

Manuel, que até que contava direito, contou um filme de vampiros. Acontece que se perdeu por amor. Aos doze anos, estava apaixonado pela filha do dono da loja mais sortida da Mina – era o único dos irmãos que namorava –, e passou a hora e quarenta minutos que durou o filme abraçando a menina, que gemia de medo.

Já com meu irmão Marcelino aconteceu o cúmulo da má sorte. Calado por natureza – “desse menino, é preciso arrancar as palavras com um saca-rolhas”, dizia minha mãe quando morava com a gente –, na vez dele caiu O velho e o mar, um filme quase sem fala.

Sua narração só durou cinco minutos.

Duas semanas mais tarde chegou, enfim, a minha vez, a vez da irmã menor, Maria Margarita, M M, como às vezes meu pai me chamava. Embora eu não tivesse apelido oficial, sabia que pelas costas alguns meninos me chamavam de Maria Machona. O apelido, é verdade, não era muito refinado, mas se observarem bem verão que é composto por duas palavras que começam com a letra eme.

Durante essas duas semanas chegaram vários filmes bons, e alguns muito bons, mas não houve dinheiro para comprar a entrada. Eram meados do mês e mal dava para comer e para a garrafinha de vinho de meu pai.

“A gente tem que esperar o pagamento da pensão”, dizia ele. E aconteceu que justo no dia do pagamento apareceu no anúncio do cinema nada menos que Ben-Hur, o filme que todo mundo no povoado esperava com ansiedade.

Meus irmãos ficaram loucos.

Todos queriam ir ao cinema. Ou pelo menos que o Mirto fosse, já que até aquele momento tinha sido quem melhor havia contado um filme.

Mas meu pai, que era um homem justo, se negou.

“Agora é a vez de Maria Margarita e quem vai é a Maria Margarita.

E ponto final”.

O filme durou três horas. Chorei mais que Sara García, a veterana atriz do cinema mexicano. Eu nunca havia gostado tanto de um filme. Depois soube que, além de ser tão longo, tinha sido o filme mais caro da história. E que havia ganhado onze prêmios Oscar. E além de tudo, Charlton Heston era um dos atores de quem eu mais gostava.

Cheguei em casa com os olhos vermelhos. Todos me esperavam com grande expectativa. Tomei em silêncio a xícara de chá, me pus na frente deles, e sem que meus joelhos tremessem nem nada, comecei a minha narração.

Foi então que alguma coisa se apoderou de mim.

Enquanto contava o filme – gesticulando, dando braçadas, mudando a voz – ia como que me desdobrando, transformando, convertendo-me em cada um dos personagens. Naquela tarde fui Ben-Hur, o jovenzinho. Fui Messala, o malvado do filme. Fui as duas mulheres leprosas que Jesus curou.

Fui o mesmíssimo Jesus.

Eu não estava contando o filme, eu estava atuando o filme. Mais ainda: eu estava vivendo o filme. Meu pai e meus irmãos me ouviam e olhavam para mim de boca aberta.

“Essa menina é uma artista completa”, comentou meu pai quando, esgotada até a última gota, acabei de contar o filme.

Ele e meus irmãos pareciam estar flutuando.

E estavam com os olhos marejados.

Aquela narração, porém, não foi suficiente para me dar o título. Meu pai declarou empate: meu irmão Mirto e eu tínhamos sido os melhores. E como era um democrata convicto, disse que aquela questão ia ser resolvida através das urnas. E em votação secreta.

Mirto seria o candidato número 1.

Eu seria a candidata número 2.

Foram cortados quatro papeizinhos iguais, distribuídos entre os votantes (os candidatos não tinham direito a voto). Cada um escreveu o número do seu candidato e depois depositou o papelzinho num cone de papel.

E veio a contagem.

Dois votos para meu irmão e dois votos para mim (eu intuí que meu pai e Marcelino tinham votado em mim). Para desempatar, meu pai decidiu fazer o que era mais justo e razoável: nós dois iríamos, juntos, ver o próximo filme. E quem contasse melhor seria o vencedor.

Fomos então ver juntos um filme mexicano carregado de canções; se chamava Guitarras de medianoche e era com ninguém menos que Miguel Aceves Mejía e Lola Beltrán, duas das vozes que mais soavam nos bares do deserto. Meu irmão contou primeiro, e com a mesma graça de sempre. Principalmente quando imitava o sotaque mexicano.

Acontece que eu, que também dominava o tom da fala dos mexicanos (tantos tinham sido os filmes deles que eu tinha visto em minha curta vida), além de contar o filme descrevendo as paisagens e tudo, de repente desandei a cantar as canções interpretadas no filme (de tanto ouvir nos alto-falantes dos bares, sabia todas elas de cor). Eles, que nunca tinham me ouvido cantar, acharam estranho que eu cantasse. E que cantasse tão bem.

Até para mim foi uma surpresa.

Meu pai ficou deslumbrado. Principalmente quando cantei No soy monedita de oro, uma das suas canções favoritas. Foi quando o democrata se esqueceu de votos e plebiscitos e me declarou ganhadora absoluta.

“E ponto final!” rugiu ele quando Mirto quis insinuar um protesto. 

E assim me transformei oficialmente na contadora de filmes lá de casa.



Nota do blog:

[*] O nome da narradora é Maria Margarita, mas ela se deu o pseudônimo de Fada Docine, ao se tornar famosa na sua aldeia como contadora de filmes.



(A contadora de filmes; tradução de Éric Nepomuceno)


(Ilustração: Alexander von Wagner (1838-1919) - The Chariot Race, c.1882)

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