terça-feira, 8 de abril de 2025

DO VALE DA MORTE, de Olga Tokarczuk

 


Com a minha idade e nas minhas condições atuais, deveria sempre lavar bem os pés antes de dormir, caso uma ambulância precise vir me buscar à noite.

Se tivesse examinado nas Efemérides o que acontecia no céu naquela noite, nem me deitaria para dormir. Entretanto, caí num sono muito profundo; recorri ao chá de lúpulo e tomei ainda dois comprimidos de valeriana. Por isso, quando fui acordada no meio da noite pelo som — violento, excessivo, e por isso agourento — de alguém batendo na minha porta, não consegui me recompor. Levantei às pressas e fiquei em pé junto da cama, vacilando, pois o corpo sonolento, trêmulo, não conseguia dar o salto da inocência do sono para a vigília. Desfaleci e cambaleei, como se estivesse prestes a perder a consciência. Isso tem me acontecido ultimamente, e está relacionado com as minhas moléstias. Precisei me sentar e repetir algumas vezes para mim mesma: estou em casa, é noite, alguém está batendo na porta, e só então é que consegui controlar os nervos. Enquanto procurava os chinelos no escuro, podia ouvir que aquele que tinha batido agora circundava a casa, murmurando. No térreo, na caixa do relógio de luz, guardo gás de pimenta que ganhei de Dionísio por causa dos caçadores ilegais. Foi justamente nele que pensei agora. Consegui achar na escuridão o formato frio e familiar do aerossol e, assim armada, acendi a luz do lado de fora. Olhava para o alpendre pela janela lateral.

A neve rangeu e apareceu no meu campo de visão o vizinho que costumo chamar de Esquisito. Estava enrolado numa velha samarra, com a qual às vezes o via quando trabalhava do lado de fora de casa. Debaixo dela podia ver seu pijama listrado e suas botas pesadas para caminhar nas montanhas.

— Abra — disse.

Com um espanto evidente olhou para o meu terno de linho (durmo vestida com as peças que o Professor e sua esposa quiseram jogar fora no verão, e que me lembram da moda antiga e da minha juventude. Assim, combino o útil com o sentimental) e entrou sem pedir licença.

— Vista-se, por favor. Pé Grande morreu.

Por um instante perdi a fala e, em silêncio, calcei as botas de cano alto e vesti o primeiro casaco de frio que encontrei no cabideiro. Lá fora, a neve, na mancha de luz jogada pelo abajur no alpendre, virava uma ducha vagarosa e sonolenta. Esquisito estava do meu lado, calado, alto, esbelto e ossudo como uma silhueta esboçada com alguns riscos a lápis. A neve caía do seu corpo ao mínimo movimento, como se fosse um cavaquinho polvilhado com açúcar de confeiteiro.

— Como assim “está morto”? — perguntei, por fim, ao abrir a porta, com a garganta apertada, mas ele não me respondeu.

De modo geral, ele fala pouco. Deve ter Mercúrio num signo silencioso, acho que em Capricórnio ou em conjunção, quadratura, ou talvez em oposição a Saturno. Podia ser, também, um Mercúrio retrógrado — que, nesse caso, acarretava discrição.

Saímos de casa e, imediatamente, nos envolveu esse ar muito familiar — frio e úmido — que nos relembra todos os invernos que o mundo não fora criado para a humanidade, e durante pelo menos a metade do ano nos demonstra a sua hostilidade. O frio atacou brutalmente as nossas bochechas, e emergiram nuvens brancas de vapor de nossas bocas. A luz no alpendre se apagou automaticamente e caminhamos pela neve crepitante na escuridão completa, a não ser pela lanterna de cabeça de Esquisito que penetrava as trevas num único ponto oscilante logo à sua frente. Eu andava na penumbra, saltitando às suas costas.

— Não tem lanterna? — perguntou.

Claro que tinha, mas conseguiria achá-la apenas de manhã, à luz do dia. Com as lanternas é sempre assim: são visíveis só durante o dia.

A casa de Pé Grande ficava um pouco afastada, acima das demais. Era uma das poucas habitadas durante o ano inteiro. Apenas ele, Esquisito e eu vivíamos aqui sem temer o inverno; os outros moradores fechavam a casa já em outubro; esvaziavam os canos de água e voltavam para a cidade.

Desviamos então levemente da estrada, desobstruída, que passa pelo nosso vilarejo e se ramifica em trilhas que levam às respectivas casas. Um caminho pela neve profunda, tão estreito que nos obrigava a pisar colocando um pé atrás do outro, alternadamente, enquanto tentávamos manter o equilíbrio, nos guiava até Pé Grande.

— Não vai ser uma imagem nada agradável — avisou Esquisito, virando-se para mim e, por um átimo, me cegando completamente. Não esperava nada de diferente. Silenciou por um instante e, em seguida, disse, como se quisesse se desculpar:

— Fiquei preocupado com a luz acesa na cozinha e o latido desesperado da cadela. Você não ouviu nada?

Não, não ouvi. Estava dormindo, entorpecida pelo lúpulo e pela valeriana.

— Onde ela está agora, essa cadela?

— Levei embora, está na minha casa. Eu a alimentei e ela pareceu se acalmar. Mais um instante de silêncio. — Ele sempre ia dormir cedo e apagava as luzes para economizar, e dessa vez a luz ficou acesa o tempo todo. Uma faixa brilhante de luz sobre a neve, visível da janela do meu quarto. Foi por isso que decidi ir até lá. Pensei que ele poderia estar bêbado, ou que estivesse implicando com o cão, para que latisse daquele jeito.

Passamos por um estábulo arruinado e, logo em seguida, a lanterna de Esquisito caçou na escuridão dois pares de olhos reluzentes, esverdeados, fluorescentes.

— Olha só, corças — eu disse num sussurro excitado e agarrei a manga de sua samarra. — Chegaram muito perto da casa. Não têm medo?

As corças estavam com as patas imersas na neve até a altura da barriga. Olhavam para nós com calma, como se as tivéssemos apanhado no meio de um ritual cujo sentido não conseguimos entender. Estava escuro, portanto não sabia reconhecer se eram as mesmas jovens que vieram da República Tcheca no outono. Ou será que eram outras, novas? E por que, essencialmente, havia apenas duas? Aquelas eram no mínimo quatro.

— Voltem para casa — eu disse, espantando-as com as mãos. Estremeceram, mas não se moveram. Elas calmamente nos acompanharam com o olhar até a porta. Senti calafrios.

Enquanto isso, Esquisito limpava os sapatos, batendo os pés contra o solo diante da porta de uma casa descuidada. As pequenas janelas haviam sido calafetadas com papéis de vedação e plástico. Feltro betumado cobria as portas de madeira.

Pedaços de lenha de diversos tamanhos recobriam as paredes do vestíbulo. Era, de fato, um interior desagradável, sujo e descuidado. Sentia-se o cheiro de mofo, madeira e terra — molhada e voraz. O odor de fumaça, de longa data, envolveu as paredes com uma camada de gordura.

A porta da cozinha estava entreaberta. Assim, de imediato avistei o corpo de Pé Grande prostrado no chão. Meu olhar roçou nele fugazmente, para logo recuar. Demorou um bocado antes que eu conseguisse olhar para lá outra vez. Era uma cena horrível.

Estava deitado, retorcido numa posição estranha, com as mãos junto do pescoço como se quisesse afrouxar a gola apertada. Ia me aproximando aos poucos, como que hipnotizada. Vi os seus olhos abertos fixados em algum ponto debaixo da mesa. A camiseta suja estava rasgada na altura da garganta. Parecia que o seu corpo tinha travado uma luta consigo mesmo, foi derrotado e se entregou. Fiquei com frio de tanto horror, meu sangue gelou nas veias e senti como se tivesse cedido para o próprio fundo do meu corpo. Ainda ontem havia visto esse corpo vivo.

— Meu Deus — balbuciei. — O que aconteceu?

Esquisito deu de ombros.

— Não consigo ligar para a polícia, o sinal da operadora tcheca deu interferência outra vez.

Tirei meu celular do bolso e digitei o número que conhecia da televisão — 997 — e, em seguida, uma voz tcheca automática ressoou no aparelho. Aqui é assim. O sinal vagueia, sem se importar com as fronteiras nacionais. Às vezes, a fronteira entre as operadoras ficava por um tempo na minha cozinha. Outras, se fixava durante alguns dias junto à casa de Esquisito ou no terraço. No entanto, era difícil prever o seu caráter quimérico.

— Você devia ter subido a colina — o aconselhei tardiamente.

— O corpo vai enrijecer por completo antes que eles cheguem — disse Esquisito num tom que eu não gostava, particularmente no seu caso: era um tom sabichão. Tirou a samarra e a pendurou no encosto da cadeira. — Não podemos permitir que fique assim. Está com um aspecto repugnante, mas, enfim, era nosso vizinho.

Olhava para o pobre e retorcido corpo de Pé Grande e me custava entender que ainda ontem tinha medo desse homem. Não gostava dele. Talvez não gostar fosse até um eufemismo. Deveria, aliás, dizer: ele me parecia repugnante, horrível. De fato, nem sequer o considerava um ser humano. Agora estava prostrado no chão manchado usando uma cueca suja, pequeno e magro, impotente e inofensivo. Ora, um fragmento de matéria que, em consequência de transformações difíceis de ser imaginadas, virou um ser frágil, isolado de tudo. Fiquei triste, extremamente triste, pois mesmo uma pessoa tão desagradável não merecia morrer. Aliás, quem mesmo merece morrer? Eu também compartilharei o mesmo destino, assim como Esquisito e aquelas corças lá fora; todos nós seremos um dia nada mais que um corpo morto.

Olhei para Esquisito, na esperança de algum consolo, mas ele já tinha se entregado à tarefa de arrumar a cama revirada, improvisada sobre um sofá-cama em ruínas, então fiz o possível para me consolar sozinha. Passou, então, pela minha cabeça a ideia de que a morte de Pé Grande poderia ser considerada, de alguma forma, algo bom, pois o libertou da bagunça que era a sua vida. E libertou outros seres vivos dele. Eis que, repentinamente, me dei conta dos benefícios da morte e de como ela era justa, à semelhança de um desinfetante ou de um aspirador. Admito, foi o que pensei, e continuo com a mesma convicção. Era meu vizinho, menos de um quilômetro de distância separava as nossas casas, mas, por sorte, o meu contato com Pé Grande era esporádico. Normalmente avistava-o de longe — sua figura franzina e rija, sempre um pouco instável, se deslocava com a paisagem ao fundo. Ao andar, balbuciava algo e, de vez em quando, a acústica ventosa do planalto propagava os farrapos desse monólogo, essencialmente simples e pouco diversificado, trazendo-os até mim. Seu vocabulário era composto principalmente de palavrões aos quais acrescentava apenas nomes próprios.

Conhecia cada pedaço de terra deste lugar, pois parece que nasceu aqui e nunca foi além de Kłodzko. Era perito na floresta — sabia como usá-la para ganhar dinheiro, o que poderia vender e para quem. Cogumelos, mirtilos, lenha roubada, gravetos para acender o fogo, armadilhas, o rali offroad anual, as caçadas. A floresta alimentava esse pequeno gnomo, e por isso ele deveria respeitá-la, mas não era o caso. Uma vez, em agosto, durante a estiagem, ele incendiou todo o mirtileiro. Liguei, aliás, para os bombeiros, mas não consegui salvar quase nada. Nunca soube por que ele fez aquilo. No verão, caminhava pelas redondezas com uma serra e cortava as árvores cheias de seiva. Quando chamei sua atenção, reprimindo a raiva com dificuldade, ele respondeu de forma simples: “Cai fora, sua velha”. Só que com mais grosseria. Ele sempre ganhava um dinheirinho extra roubando alguma coisa, dando um jeitinho; quando os veranistas deixavam uma lanterna ou um podador no quintal, Pé Grande sempre aproveitava a ocasião para levar tudo e depois vender na cidade. Na minha opinião, inúmeras vezes deveria ter recebido punições, ou até ido para a cadeia. Não sei como sempre saía impune. Talvez tivesse a proteção de certos anjos; às vezes eles tomam o lado errado.

Sabia também que ele caçava ilegalmente de todas as formas possíveis. Tratava a floresta como se fosse a sua própria fazenda — tudo o que havia lá lhe pertencia. Era do tipo saqueador. Passei muitas noites em claro por sua causa. Por impotência. Algumas vezes liguei para a polícia — quando alguém enfim atendia, minha denúncia era registrada, mas nada acontecia. Pé Grande outra vez percorria o seu caminho com uma armadilha no ombro, gritando de forma agourenta. Uma divindade pequena e malvada. Maldosa e imprevisível. Sempre estava um pouco embriagado, e era provavelmente isso que lhe despertava o humor rancoroso. Balbuciava e batia nos troncos das árvores com uma vara, como se quisesse espantá-las do seu caminho. Ele parecia já ter nascido num leve estado de entorpecimento. Muitas vezes eu segui os seus caminhos e recolhi as armadilhas grosseiras de arame que ele deixava para os animais, laços amarrados a pequenas árvores inclinadas de tal forma que o animal preso neles era lançado para o alto, como se tivesse sido arremessado de uma atiradeira, e ficava suspenso no ar. Às vezes, achava animais mortos — lebres, texugos e corças.

— Precisamos transferi-lo para o sofá-cama — disse Esquisito.

Não gostei dessa ideia. Não gostei da ideia de tocar nele.

— Acho que deveríamos esperar pela polícia — disse, mas Esquisito já tinha arranjado espaço no sofá-cama e arregaçado as mangas do suéter. Ele me fulminou com seus olhos claros.

— Você não gostaria de ser encontrada assim, não é? Nessas condições. Isso é desumano.

Pois é, o corpo humano é certamente desumano. Especialmente um corpo morto.

Não era um paradoxo sinistro que agora nós precisássemos nos ocupar com o corpo de Pé Grande, que ele tivesse nos deixado esse último problema? Nós, os vizinhos que ele nunca respeitou, de quem não gostava, e com quem nunca se importou?

Na minha opinião, depois da morte, a matéria deveria ser aniquilada. Seria o método mais adequado para lidar com o corpo. Assim, os corpos aniquilados voltariam diretamente para os buracos negros de onde vieram. As almas viajariam para a luz com a velocidade da luz. Isso se de fato existir algo como a alma.

Quebrando uma terrível resistência, eu agia conforme Esquisito mandava. Seguramos o corpo pelas pernas e braços e o transferimos para o sofá-cama. Para minha surpresa, constatei que ele era pesado, mas não de todo inerte, teimosamente rijo como lençóis recém-engomados. Vi também as suas meias, ou aquilo que ele usava nos pés — panos sujos, grevas feitas de um lençol rasgado em tiras, agora cinzento de tão manchado. Não sei por que a imagem dessas grevas causou em mim um impacto tão forte que me atingiu no peito, no diafragma, no corpo inteiro, de tal forma que já não conseguia estancar o soluço. Esquisito olhou para mim com frieza, de relance, e com uma nítida reprovação.

— Precisamos vesti-lo antes que cheguem — disse Esquisito, e notei que o seu queixo também tremia ao olhar para essa miséria humana (embora por algum motivo não quisesse admiti-lo).

Primeiro tentamos remover sua camiseta suja e fedorenta, mas não havia como tirá-la pela cabeça, então Esquisito sacou do bolso um canivete complexo e rasgou o tecido ao longo do peito. Pé Grande estava prostrado agora diante de nós em cima do sofá-cama, seminu, peludo como um troll, com cicatrizes no peito e nas mãos, com tatuagens já ilegíveis, entre as quais não conseguia reconhecer nada que fizesse sentido. Seus olhos estavam ironicamente semicerrados enquanto procurávamos no armário quebrado algo decente para vestir antes que o seu corpo endurecesse para sempre e voltasse a ser aquilo que essencialmente era — um torrão de matéria. A cueca rasgada aparecia debaixo das calças de moletom prateadas, novinhas em folha.

Desenrolei cuidadosamente as grevas repulsivas e vi os seus pés. Fiquei surpresa. Sempre tive a impressão de que os pés são a parte do corpo mais íntima e pessoal, e não os genitais, ou o coração, nem mesmo o cérebro — órgãos insignificantes e supervalorizados. É nos pés que se encontra todo o conhecimento sobre o ser humano, é para lá que flui todo o sentido fundamental daquilo que realmente somos e de como nos relacionamos com a terra. Todo o mistério — o fato de sermos compostos de elementos da matéria e, ao mesmo tempo, estranhos a ela, isolados — jaz no contato com a terra, em sua ligação com o corpo. Os pés são nossos pinos da tomada. Contudo, nesse momento, esses pés nus eram, para mim, a prova de sua estranha ascendência. Não podia se tratar de um ser humano. Devia constituir uma forma inclassificada, uma daquelas que, como disse Blake, dissolvem os metais em vastidão, transformam a ordem em caos. Talvez ele fosse uma espécie de demônio.

As criaturas demoníacas sempre podem ser reconhecidas pelos pés, pois carimbam a terra com um selo distinto.

Esses pés — muito compridos e finos, com dedos delgados e unhas negras e disformes — pareciam preênseis. O dedão destacava-se levemente dos restantes, como um polegar. Estavam cobertos por uma pelagem negra e espessa. Alguém já viu algo parecido? Esquisito e eu trocamos olhares.

No armário quase vazio encontramos um terno cor de café um tanto manchado, mas obviamente pouco usado. Nunca o tinha visto com ele. Pé Grande sempre usava valenkis, calças desgastadas, uma camisa xadrez e um colete acolchoado, independentemente da época do ano.

Associei o ato de vestir o morto a uma forma de carícia. Duvido que ele tenha recebido tanto carinho enquanto vivo. Nós o seguramos gentilmente pelos braços e o vestimos. Sustentava seu peso com meu peito e, depois de uma onda inevitável de asco que me deixou nauseada, de repente me ocorreu abraçar esse corpo, dar tapinhas nas suas costas para acalmá-lo e dizer: não se preocupe, vai ficar tudo bem. Não o fiz porque Esquisito estava presente e poderia pensar que era algum tipo de perversão.

Meus gestos abortados transformaram-se em pensamentos e fiquei com pena de Pé Grande. Talvez sua mãe o tenha abandonado, e ele tenha sido infeliz durante toda a sua triste vida. Longos anos de infelicidade degradam um homem mais do que uma doença letal. Nunca vi convidados em sua casa, não aparecia nenhuma família, nem amigos. Nem sequer os catadores de cogumelos paravam na frente de sua casa para conversar. As pessoas tinham medo e não gostavam dele. Parece que andava apenas com os caçadores, mas mesmo isso era raro. Eu diria que ele tinha por volta de cinquenta anos. Quem me dera ver a sua oitava casa para verificar se havia lá a conjunção de Netuno, Plutão e Marte em algum aspecto no ascendente, pois, com aquela serra de dentes afiados nas mãos, lembrava um predador que vivia apenas para semear a morte e provocar sofrimento.

Esquisito o sentou para lhe vestir o paletó. Percebemos, então, que sua língua grande e inchada prendia algo na boca. Assim, depois de um momento de hesitação, cerrando os dentes de asco e retirando a mão sucessivas vezes, segurei o objeto pela ponta e percebi que o que tinha apanhado entre os dedos era um osso longo e fino, afiado como um punhal. Um som gutural e um pouco de ar emergiram da boca morta formando um assovio suave que lembrava um suspiro. Ambos pulamos para trás. Esquisito deve ter sentido o mesmo que eu: horror. Sobretudo porque, depois de um instante, um sangue escuro, quase negro, apareceu na boca de Pé Grande. Um fio sinistro começou a verter dali.

Ficamos paralisados, aterrorizados.

— Então — Esquisito disse com uma voz trêmula — ele se engasgou. Ele se engasgou com um osso. Um osso ficou preso em sua garganta, engoliu um osso, se engasgou — repetia nervosamente. E depois, como se estivesse acalmando a si próprio, acrescentou: — Mãos à obra. Não é um prazer, mas nossos deveres com os vizinhos nem sempre são prazerosos.

Percebi que ele se autodeclarara o chefe desse plantão noturno e me subordinei a ele.

Entregamo-nos por completo ao trabalho ingrato de meter Pé Grande no terno cor de café e acomodá-lo numa posição digna. Fazia bastante tempo que eu não tocava em nenhum corpo estranho, muito menos num morto. Eu podia sentir a inércia fluindo rapidamente dentro dele, que se tornava mais rígido a cada minuto. Era por isso que tínhamos tanta pressa. E, no momento em que Pé Grande estava deitado vestido com seu melhor terno, seu rosto enfim perdeu a expressão humana, e ele definitivamente virou um cadáver. Apenas o dedo indicador da mão direita não queria se sujeitar complacentemente à tradicional posição das mãos entrelaçadas, e se erguia para o alto, como se quisesse atrair nossa atenção e interromper por um instante nosso esforço nervoso e apressado. “E agora prestem atenção!”, dizia esse dedo. “Agora prestem atenção, há algo que vocês não enxergam, o ponto de partida essencial de um processo oculto, mas digno da maior atenção. Graças a ele todos nós nos encontramos neste lugar e tempo, numa pequena casa no planalto, entre a neve e a noite. Eu como um corpo morto, e vocês como seres humanos pouco importantes e um tanto envelhecidos. Contudo, é apenas o início. Tudo está apenas começando.”

Lá estávamos nós, num cômodo frio e úmido, no vazio gelado que tomou conta daquela hora cinzenta e monótona, e me ocorreu que aquilo que se desprende do corpo suga um pedaço do mundo, e não importa o quanto foi bom ou mau, culpado ou imaculado, ele deixa atrás de si um grande nada.

Olhei pela janela. Amanhecia e, aos poucos, os vagarosos flocos de neve começaram a preencher esse vácuo. Caíam vagarosamente, vacilando no ar e girando em torno do seu próprio eixo como se fossem plumas.



Pé Grande já partira, portanto não havia sentido em guardar qualquer ressentimento ou mágoa. Permaneceu apenas um corpo morto, enfardado num terno. Nesse momento parecia tranquilo e contente, como se o espírito se alegrasse de ter se livrado, enfim, da matéria, e a matéria contentava-se de finalmente ter se livrado do espírito. Durante esse curto espaço de tempo efetuou-se um divórcio metafísico. O fim.

Sentamo-nos à porta da cozinha e Esquisito pegou uma garrafa de vodca aberta que estava sobre a mesa. Achou um copo limpo e o encheu — primeiro para mim, depois para ele. A alvorada, leitosa como as lâmpadas hospitalares, penetrava lentamente pelas janelas nevadas e nessa luz percebi que Esquisito estava com a barba por fazer, uma barba tão branca quanto o meu cabelo, e que o seu pijama de listras esmaecidas aparecia desabotoado debaixo da samarra, que estava suja, com todos os tipos possíveis de manchas.

Tomei um grande copo de vodca que me aqueceu por dentro.

— Acho que cumprimos nosso dever com ele. Quem mais teria feito isso? — disse Esquisito, dirigindo-se mais para si mesmo do que para mim. — Era um pequeno filho da mãe miserável, mas e daí?

Encheu mais um copo, o tomou de uma vez e depois sacudiu-se, enojado. Claramente não estava acostumado a beber.

— Vou telefonar — disse e saiu. Pensei que estivesse tonto. Levantei-me e comecei a observar essa terrível bagunça. Esperava achar em algum lugar a carteira de identidade de Pé Grande com a sua data de nascimento. Queria saber, verificar seus números.

Sobre a mesa coberta por uma toalha impermeável gasta, havia uma caçarola com pedaços assados de algum animal; na panela ao lado, dormia um pouco de borsch sob uma camada branca de gordura. Uma grossa fatia de pão, a manteiga envolta em papel vegetal. No chão revestido de linóleo rasgado ainda havia alguns restos de animais, espalhados, caídos da mesa junto com o prato, o copo e os pedaços de bolacha. Tudo isso estava esmagado, pisoteado no chão sujo.

Foi então que vi algo numa bandeja de metal sobre o parapeito da janela que o meu cérebro, num esforço de fugir, reconheceu apenas depois de um longo instante: era a cabeça de uma corça cortada com precisão. Junto dela havia quatro patas. Os olhos semicerrados devem ter seguido, constante e atentamente, todos os nossos passos.

Sim, era uma dessas jovens esfomeadas que, no inverno, se deixam atrair ingenuamente pelas maçãs congeladas e, apanhadas na armadilha, morrem em tormento, estranguladas pelo arame. Enquanto percebia, aos poucos, segundo após segundo, o que acontecera ali, fui tomada pelo horror. Ele apanhou a corça na armadilha, a matou, então esquartejou, assou e comeu seu corpo. Uma criatura havia comido outra no silêncio e na quietude da noite. Ninguém protestou, nenhum raio caiu do céu. No entanto, o castigo atingiu o demônio, ainda que nenhuma mão tivesse guiado a morte.



(Sobre os Ossos dos Mortos; tradução de Olga Bagińska-Shinzato)



(Ilustração: Andrea Kowch, 1986)

sábado, 5 de abril de 2025

SONETO ERÓTICO, de anônimo do Século de Ouro espanhol

 




- ¿Qué me quiere, señor ? - Niña, hoderte.

- Dígalo más rodado. - Cabalgarte.

- Dígalo a lo cortés. - Quiero gozarte.

- Dígamelo a lo bobo. - Merecerte.



- ¡Mal haya quien lo pide de esa suerte,

y tú hayas bien, que sabes declararte!

y luego ¿qué harás ? - Arremangarte,

y con la pija arrecha acometerte.



- Tú sí que gozarás mi paraíso.

- ¿Qué paraíso ? Yo tu coño quiero,

para meterle dentro mi carajo.



- ¡Qué rodado lo dices y qué liso!

- Calla, mi vida, calla, que me muero

por culear tiniéndote debajo.



Tradução de José Paulo Paes:



— Que quer de mim, senhor? — Filha, foder-te.

— Diga com mais rodeios. — Cavalgar-te.

— Diga ao modo cortês. — Então, gozar-te.

— Diga ao modo pateta. — Merecer-te.



— Bem hajas que consigo compreender-te

e mal haja quem peça de tal arte.

Depois, o que farás? — Arregaçar-te

e com a pica alçada acometer-te.



— Tu sim hás de gozar meu paraíso.

— Que paraíso? Eu quero é minha porra

metida bem no fundo do teu racho.



— Com que rodeio o dizes, tão precioso!

— Caluda, amor, que de prazer já morra,

fodendo-te, eu por cima, tu por baixo.





Tradução de Silvério Duque:



– De mim, o que quer, Senhor? – Moça, foder-te.

– Diga-o com mais rodeios. – Cavalgar-te.

– Diga, ao modo cortês. – Quero gozar-te.

– Diga-mo feito um bobo. – Merecer-te.



– De certo, muito fiz por receber-te,

e fi-lo bem, pois sabes declarar-te!

– E logo, o que farás? – Arregaçar-te,

e, com minha pica em riste, vou comer-te.



– Tu gozarás, enfim, em meu paraíso…

– Que paraíso? Eu quero é o teu rabo

e nele enfiar inteiro o meu caralho.



– Diga-mo, então, de um modo mais preciso!

– Cala, minha vida, cala, que eu me acabo,

tilintando em teu cu com o meu vergalho.



(Ilustração: Agostino Carracci - Bachus et Ariane)

quarta-feira, 2 de abril de 2025

A NAU DOS INSENSATOS, de Michel Foucaut

A Narrenschiff é, evidentemente, uma composição literária, emprestada sem dúvida do velho ciclo dos argonautas, recentemente ressuscitado entre os grandes temas míticos e ao lado de Blauwe Schute de Jacob Van Oestvoren em 1413, de Borgonha. A moda é a composição dessas Naus cuja equipagem e heróis imaginários, modelos éticos ou tipos sociais, embarcam para uma grande viagem simbólica que lhes traz, senão a fortuna, pelo menos a figura de seus destinos ou suas verdades. É assim que Symphorien Champier compõe sucessivamente uma Nau dos Príncipes e das Batalhas da Nobreza em 1502, depois uma Nau das Damas Virtuosas em 1503. Existe também uma Nau da Saúde, ao lado de Blauwe Schute de Jacop van Oestvoren em 1413, da Narrenschiff de Brant (1497) e da obra de Josse Bade: Stultiferae erae naviculae scaphae fatuarum mulierum (1498). O quadro de Bosch, evidentemente, pertence a essa onda onírica.

Mas de todas essas naves romanescas ou satíricas, a Narrenschiff é a única que teve existência real, pois eles existiram, esses barcos que levavam sua carga insana de uma cidade para outra. Os loucos tinham então uma existência facilmente errante. As cidades escorraçavam-nos de seus muros; deixava-se que corressem pelos campos distantes, quando não eram confiados a grupos de mercadores e peregrinos. Esse costume era frequente particularmente na Alemanha: em Nuremberg, durante a primeira metade do século XV, registrou-se a presença de 62 loucos, 31 dos quais foram escorraçados. Nos cinquenta anos que se seguiram, têm se vestígios ainda de 21 partidas obrigatórias, tratando-se aqui apenas de loucos detidos pelas autoridades municipais. Eram frequentemente confiados a barqueiros: em Frankfurt, em 1399, encarregam-se marinheiros de livrar a cidade de um louco que por ela passeava nu; nos primeiros anos do século XV, um criminoso louco é enviado do mesmo modo a Mayence. Às vezes, os marinheiros deixavam em terra, mais cedo do que haviam prometido, esses passageiros incômodos; prova disso é o ferreiro de Frankfurt que partiu duas vezes e duas vezes voltou, antes de ser reconduzido definitivamente para Kreuznach. Frequentemente as cidades da Europa viam essas naus de loucos atracar em seus portos.



(História da loucura na idade clássica. Tradução: José Teixeira Coelho Netto)



(Ilustração: Hieronimus Bosch (1490-1500) - Narrenschiff - A nau dos insensatos)

domingo, 30 de março de 2025

MARIELLE PRESENTE, de Solange Padilha

 





O eco da fala propaga a onda

desdobra clamor

o corpo em mil pedaços rodopia

expande

Marielle presente.

Ela não é mais a que desce ladeiras sorrindo

mas a força da Maré que vem

e vira becos ruas avenidas

ondas de mulheres,

mães e filhas,

avós

muralhas que se erguem

aos cartuchos apontando

casas e corpos adolescentes.

Seu corpo estilhaçado no pano de boca da história

É a voz que clama

É a favela

e

o que dela

revivem

poética e resistência

rodas de conversas



Marielle

Eu Comum

matéria e fogo

nome que não morre

entre nós multiplica

Claudias, Suelis, Elisas,

Renascentes girassóis

Resistentes à barbárie

Presente

 

(Mulherio das Letras Portugal - Poesia)

 

(Ilustração: Elisa Riemer - Marielle vive)

quinta-feira, 27 de março de 2025

COM OS GOLFINHOS, de Mario Benedetti

 


María Eugenia: Acho que você vai entender por que não começo esta carta com “querida mamãe”, como eu fazia na distância das minhas antigas férias. A esta altura, nós duas sabemos (você sempre soube; eu, há apenas três anos) que você não é minha mãe, assim como Pedro Luis também não era meu pai. Agora que ele está morto, me dá um pouco de pena saber que você ficou irremediavelmente sozinha. Mas tenho muito mais pena dos meus pais verdadeiros. Sei de fonte segura, como você, que eles foram jogados de um avião no mar, e que foram jogados vivos. Agora é quase impossível provar se isso é verdade ou mentira, mas tendo a achar que é verdade, pois a comprovada sanha dos amigos de Pedro Luis, embora ainda nos impressione e nos repugne, foi uma coisa bem real.

No ano em que cheguei à casa dos meus avós, vez por outra eu ainda sonhava com você e com ele e não podia evitar uma última onda de carinho. Na época eu não sabia de toda a verdade. Mas agora, quando Pedro Luis aparece nos meus sonhos, acordo completamente enojada e quase sempre tenho que correr para vomitar no banheiro. Com você é um pouco diferente, pois de certo modo também foi vítima: lhe meteram nesse escárnio sem nem se darem ao trabalho de pedir seu consentimento.

Agora, reconstruindo nossos ambíguos 15 anos de vida em comum, lembro o estranho olhar que em certas ocasiões (cada vez menos frequentes) você me dirigia; um olhar que então só me causava estranheza, mas que agora posso (ou talvez queira) imaginar que queria dizer: “usurpei o lugar de outra”, ou “acho que ela gosta de mim, mas não mereço”, ou “qualquer dia vão tirar ela de mim”. Era isso? Por outro lado, tenho a impressão de que minha inesperada presença não só não contribuiu para a união de vocês como casal, mas, pelo contrário, causou uma deterioração irremediável, já que, para o nosso peculiar estilo de vida em Mendoza, um divórcio ou uma simples separação era algo no mínimo inconveniente, que os companheiros de armas de Pedro Luis jamais permitiriam. Mas como vocês podiam conviver com um passado tão infame? Como podiam se deitar e fazer amor (ou será que nem faziam?) sabendo que dos dois lados da cama apareciam e os olhavam os fantasmas dos meus verdadeiros pais?

Como é que a vida cotidiana pode continuar normalmente, sabendo que se baseia numa ação ignóbil?

Meus avós me amam, me mimam, me falam dos meus pais, tentam criar em mim um novo estímulo para viver, mas nos meus 18 anos atuais confesso que minha vida está destruída e nas minhas noites há outra fantasia recorrente em que eu também me jogo no mar. Por quê? Para quê? Para me unir a meus pais, ora. No sonho eles me recebem, muito juntos, de braços abertos, rodeados por golfinhos solidários que também se juntam ao festejo. E quando enfim acordo, ainda permanece em mim a sensação de ternura mais nítida de toda minha existência.

Tenho na minha mesa-de-cabeceira a foto dos meus pais e sei que venho deles e de mais ninguém. As adulações de Pedro Luis sempre me pareceram pura hipocrisia, e se as guardo na memória é para repelir todas elas. Sinto, ao contrário, que tuas demonstrações de carinho eram sinceras e eu as conservo como uma coisa positiva em meio a uma imensa fraude. Quem sabe um dia eu consiga reunir forças para voltar a te ver, mas por enquanto não. Ainda estou cheia de rancores e rancorezinhos. Depois de todas as comunhões, missas e homilias a que você me levou, não fiquei apenas sem pais, mas também sem Deus. Gostaria de saber o que você dizia ao seu confessor. E principalmente o que ele lhe dizia. Apossar-se de uma filha de pais desaparecidos e/ou assassinados por tua gente é pecado mortal ou venial? Com 15 pais-nossos e sete ave-marias a ficha fica limpa? Não posso rezar para um Senhor cujos representantes acobertavam cristãmente os carrascos. Agora compreendo o apelo rebelde do Cristo crucificado: “Pai, por que me abandonaste?” Ele, pelo menos, dizem que ressuscitou, mas meus pais afogados não voltaram. No melhor dos casos, não estão rodeados de apóstolos, mas de golfinhos. Talvez Deus, se existe algum, não more lá no Altíssimo, mas no fundo do mais profundo dos mares. E lá onde está, ignore tudo, embora de vez em quando abra suas brânquias e distribua bênçãos. Não descarto que uma noite dessas, eu, que não sei nadar, afinal me decida e mergulhe para buscá-lo, assim mesmo, sem boias, mas com a mochila cheia de recriminações. E mais nada. Tchau, PAULINA.



(Correio do tempo; tradução de Rubia Prates Goldoni)



(Ilustração: Carlos Terribili - ¡Basta!: obra que recuerda a las Madres de Plaza de Mayo)

segunda-feira, 24 de março de 2025

POEMA ÚNICO, de Soeiro Pereira Gomes

 


Para a C...



Menina dos olhos grandes,

Tão grandes que neles vejo

A minha imagem e o mundo

Com que sonho e que porfio...



Menina do riso ingénuo

À porta dos lábios mudos

Como fio de água fresca

Entre o musgo duma rocha...



Menina de tez morena

Que o sol beija e mais ninguém

E de corpo tamanino

E de rosto tão bonito...



- Porque usas carrapito?

P'ra realçar teus encantos

Que são tantos, tantos, tantos

Como estrelas há no céu?...



Menina do meu enleio

Menina doutras meninas

Que tenho nos olhos tristes:

- Solta as tranças, vai cortar

(Não dói nada... e é mais bonito)

Vai cortar o carrapito!



20/07/1949



(O PCP visto por dentro e por fora, Rui Perdigão)



(Ilustração: Christoffer Wilhelm Eckersberg, 1841, Kvinde foran et spejl)

sexta-feira, 21 de março de 2025

O ÚLTIMO REI E O ÚLTIMO PADRE, de Giba Assis Brasil

 


Quem for procurar no Google, e se contentar com a primeira página de resultados, vai descobrir que a frase "O mundo (ou o homem) só será livre (ou deixará de ser miserável) quando o último rei (ou déspota) for enforcado nas tripas do último padre" é de Diderot (ou Voltaire).

Mas a primeira página do Google é apenas um retrato da internet: uma babilônia de dados confusos, repetidos, contraditórios, inúteis e muitas vezes incorretos. Se fizermos o mesmo tipo de pesquisa apressada com, por exemplo, "Ainda que eu falasse a língua dos homens e dos anjos, sem amor eu nada seria", vamos chegar à conclusão de que a Primeira Epístola aos Coríntios foi escrita pelo Renato Russo.

Além da primeira página do Google, aparece a verdadeira riqueza oculta da internet: informação quase ilimitada, a biblioteca de Alexandria dos tempos modernos, eternamente em construção. Os únicos requisitos para chegar lá são curiosidade, paciência e um pouco de sorte.

A frase original em francês sobre reis e padres é um pouco diferente, tão violenta quanto a que chegou aos nossos dias, mas de um ponto de vista individual e não vinculado a uma possível libertação da humanidade: "Eu gostaria, e este será o último e o mais ardente dos meus desejos, eu gostaria que o último rei fosse estrangulado com as tripas do último padre." ("Je voudrais, et ce sera le dernier et le plus ardent de mes souhaits, je voudrais que le dernier des rois fût étranglé avec les boyaux du dernier prêtre.")

Desde 1729, ano em que a frase foi publicada, duas grandes revoluções e muitos embates menores arrancaram as tripas de muita gente, até mesmo de alguns reis e padres. E a frase foi sendo modificada de acordo com as conveniências do momento: "o mundo só será livre quando..." marca a crença na "revolução final" que viria libertar a humanidade de séculos de opressão; o ato criminoso, mas individual, do estrangulamento foi substituído pela forca, provavelmente numa tentativa de dar um caráter ritual à violência dos processos históricos; o próprio rei a ser assassinado deixou de ser um rei qualquer e foi especificado como déspota, certamente num período em que se supunha possível uma monarquia democrática ou "progressista". Mas o padre continuou lá, morto e eviscerado, em quase todas as versões, mesmo depois de João XXIII e do Concílio de Puebla.

E o mais surpreendente em torno dessa frase não é tanto o fato de ela ser anterior a Diderot, Voltaire e o enciclopedismo, mas que seu autor, na verdade, tenha sido um padre.

Jean Meslier (1664-1729), cura da aldeia de Étrépigny, passou seus últimos anos de vida rezando missas, celebrando batizados e matrimônios, enquanto, à noite, preparava uma tentativa de extrema unção do Estado católico francês: seu livro de memórias, de título quilométrico, geralmente reduzido para "Memória dos pensamentos e sentimentos do abade Jean Meslier", tratando dos "erros e abusos dos governos" e principalmente da "falsidade de todos os deuses e religiões do mundo". Foi neste livro que nasceu a frase, o "desejo mais ardente", as tripas de uns no pescoço dos outros.

Publicado postumamente, o livro do "padre ateu" Meslier tornou-o um dos precursores do iluminismo. Voltaire, então com 35 anos, foi seu primeiro editor, fazendo circular por toda a França suas ideias subversivas e anticatólicas numa versão reduzida, "Extrait des sentiments de Jean Meslier".

Diderot, que na época tinha apenas 14 anos, mais tarde escreveria (em "Les Éleuthéromanes") um poema em alusão direta à frase mais violenta e mais conhecida do "pai do ateísmo": "E suas mãos arrancarão as entranhas do padre / na falta de uma corda para estrangular os reis." ("Et ses mains ourdiraient les entrailles du prêtre / Au défaut d'un cordon pour étrangler les rois.") Violento sem dúvida, eventualmente visionário, mas sem a menção aos "últimos" e menos ainda à necessidade de mortes para a redenção dos sobreviventes.

Foi Jean-François de la Harpe, que só iria nascer em 1739, 12 anos após a morte de Meslier, o responsável pela confusão em torno da autoria da frase. La Harpe, um pós-iluminista que, ao contrário de Voltaire e Diderot, viveu para presenciar a Revolução de 1789 e o terror jacobino, tornou-se no final da vida um reacionário defensor da monarquia.

Em seu "Cours de Littérature Ancienne et Moderne" (1799), La Harpe alterou os versos de Diderot, citando-os assim: "E com as tripas do último padre / estrangulemos o pescoço do último rei." ("Et des boyaux du dernier prêtre / Serrons le cou du dernier roi.") Engano histórico? Talvez. Mas não me parece tendencioso ver aí uma deliberada intenção de acusar os iluministas (e por extensão os intelectuais, as ideias) pelos rumos violentos da História.

Seja como for, a frase seguiu seu rumo, às vezes usada para justificar assassinatos, outras para exprimir ódios mortais ou simples revoltas, às vezes apenas para atribuir culpas. O livro de Meslier, que eu saiba, só foi publicado em português em 2003, pela editora Antígona, de Lisboa, com tradução de Luís Leitão. Em 2004, Paulo Jonas de Lima Piva doutorou-se em Filosofia na USP com uma tese sobre "os manuscritos de um padre anticristão e ateu: materialismo e revolta em Jean Meslier".

Uma das muitas e criativas pixações de maio de 1968 em Paris propunha uma variação interessante para o desejo de Meslier: "E depois de estrangular o último burocrata nas tripas do último sociólogo, ainda teremos problemas?" ("Lorsque nous aurons étranglé le dernier bureaucrate avec les tripes du dernier sociologue, aurons-nous encore des problèmes?").

Quanto aos iluministas, eu prefiro ficar com outra frase de Voltaire, sem tripas, sem enforcamentos, sem mísseis: "Não concordo com uma palavra do que dizes, mas defenderei até a morte o teu direito de dizê-lo." É só estar preparado para ouvir (e ler) muita bobagem.



(Ilustração: Pieter Bruegel the Elder: the triumph of death, c.1562 – detail)

terça-feira, 18 de março de 2025

LUNEDÌ / SEGUNDA-FEIRA, de Primo Levi





Che cosa è più triste di un treno?

Che parte quando deve,

Che non ha che una voce,

Che non ha che una strada.

Niente è più triste di un treno.

.

O forse un cavallo da tiro.

È chiuso fra due stanghe,

Non può neppure guardarsi a lato.

La sua vita è camminare.

.

E un uomo? Non è triste un uomo?

Se vive a lungo in solitudine

Se crede che il tempo è concluso

Anche un uomo è una cosa triste.



(17 gennaio 1946; Ad ora incerta)



Tradução de Vasco Gato:



O que é mais triste do que um comboio?

Que parte quando deve,

Que não tem senão uma voz,

Que não tem senão um caminho.

Nada é mais triste do que um comboio.

.

Ou talvez um cavalo de tiro.

Está encerrado entre duas varas,

Não pode sequer olhar para o lado.

A sua vida é andar.

.

E um homem? Não é triste um homem?

Se viver muito tempo em solidão

Se achar que o tempo está acabado

Também um homem é uma coisa triste.



(Traduções e Versões de Poesia; 2017)



Tradução de Edney Cielici Dias:





há coisa mais triste que um trem?

parte em sua hora

percorre a mesma estrada

fazendo o mesmo barulho

nada mais triste que um trem



ou talvez um cavalo de tração

em rédeas, contido entre barras

olhar direcionado para a frente

uma vida de apenas seguir



e o homem? ele não é triste?

aquele que vive em solidão

o que crê no fim de seu tempo

também esse homem é coisa triste





(Ilustração: Paul Gauguin - Self Portrait with Halo and Snake)

sábado, 15 de março de 2025

COMO GANHEI O CONCURSO DE QUEM CONTAVA MELHOR UM FILME, de Hernán Rivera Letelier

 




“Somos feitos do mesmo material dos sonhos.”

Shakespeare

“Somos feitos do mesmo material dos filmes.”

Fada Docine [*]

Como em casa o dinheiro andava a cavalo e a gente andava a pé, quando chegava um filme no acampamento da Mina e meu pai – só pelo nome do ator ou da atriz principal – achava que parecia ser bom, as moedas eram juntadas uma a uma, o preço exato da entrada, e me mandavam assistir.

Depois, ao voltar do cinema, eu tinha de contar o filme para a família inteira reunida na sala. 

Era lindo, depois de ver o filme, encontrar meu pai e meus irmãos me esperando ansiosos em casa, sentados enfileirados que nem no cinema, penteadinhos e de roupa limpa, recém-mudada.

Meu pai, com uma manta boliviana cobrindo as pernas, ocupava a única poltrona que a gente tinha, e assim era a plateia lá de casa. No chão, do lado da poltrona, brilhava sua garrafa de vinho tinto e o único copo que havia sobrado em casa. A galeria era aquela bancada comprida, de madeira bruta, onde meus irmãos se acomodavam em ordem, do menor ao maior. Depois, quando alguns de seus amigos começaram a aparecer na janela, a janela virou o balcão.

Eu chegava do cinema, tomava rapidinho uma xícara de chá (que deixavam pronto me esperando) e começava a minha função. De pé na frente deles, de costas para a parede pintada a cal, branca feito a tela do cinema, começava a contar o filme “de a a z”, como dizia meu pai, tratando de não esquecer nenhum detalhe, nem da história, nem dos diálogos, nem dos personagens.

Aliás, devo esclarecer aqui que não me mandavam para o cinema só por ser a única mulher da família e eles – meu pai e meus irmãos – serem cavalheiros com as damas. Não senhor. Eles me mandavam porque eu era a melhor contando filmes. Assim mesmo, como se ouve: a melhor contadora de filmes da família. Depois, passei a ser a melhor da viela e em pouco tempo a melhor do povoado. Que eu saiba, não havia ninguém no povoado da Mina que ganhasse de mim na hora de contar filmes. Do tipo que fosse: de caubóis, de terror, de guerra, de marcianos, de amor. E, claro, os filmes mexicanos, que eram os que papai, como todo mundo que tinha vindo do sul, mais gostava.

E foi justamente com um filme mexicano, desses cheios de cantorias e muito choro, que ganhei meu título. Não foi nada fácil ganhar esse título.

Ou vocês acham que fui eleita só por causa da minha fina estampa?

Éramos cinco filhos na família. Quatro homens e eu. Nós cinco formávamos uma escadinha perfeita, em tamanho e idade. Eu era a menor. Vocês imaginam o que significa crescer numa casa só de irmãos homens? Nunca brinquei de boneca. Em compensação, era campeã em bolinhas de gude e no jogo de palitinhos. E na hora de matar lagartixas nas minas de cal ninguém ganhava de mim. Era eu botar o olho e paf, lagartixa morta.

Andava de pé no chão todo santo dia, fumava escondida, usava um boné de aba virada e tinha até aprendido a mijar de pé.

A gente mija de pé, a gente urina de cócoras.

E eu mijava em qualquer lugar do deserto de salitre, igual aos meus irmãos. Até nas competições de quem mijava mais longe às vezes eu ganhava. E contra o vento.

Quando fiz sete anos entrei na escola. Além do sacrifício de ter que usar saia, me custou um bocado acostumar a urinar como as senhoritas.

Custou mais do que aprender a ler.

Quando papai teve a ideia do concurso, eu tinha dez anos e estava no terceiro ano do primário. Sua ideia consistiu em mandar a gente, um por um, para o cinema, e depois nos fazer contar o filme. Quem contasse melhor iria toda vez que passasse um dos bons. Ou um mexicano. O mexicano podia ser bom ou ruim, para meu pai isso não importava. Desde, é claro, que houvesse dinheiro para a entrada.

Os outros iam ter de se conformar em ouvir, depois, o filme ser contado em casa. Nós todos gostamos da ideia; todos nós nos sentíamos capazes de ganhar. Não era em vão que, como todas as outras crianças do povoado, cada vez que íamos ao cinema saíamos imitando os mocinhos do filme em suas melhores cenas.

Meus irmãos sabiam imitar perfeitamente o caminhar cambaio e o olhar oblíquo de John Wayne, o gesto de desprezo de Humphrey Bogart e as incríveis caretas de Jerry Lewis.

Eu os matava de rir ao tratar de piscar as pestanas feito Marilyn Monroe, ou de imitar as boquinhas de menina inocente – voluptuosamente inocente – de Brigitte Bardot.

Alguns se perguntarão por que meu pai não ia, ele mesmo, ao cinema; pelo menos quando passassem um filme mexicano. Meu pai não conseguia andar. Tinha sofrido um acidente de trabalho que o deixou paralítico da cintura para baixo. Não trabalhava mais. Recebia uma pensão de invalidez que era uma miséria, mal dava para comer.

Nem preciso dizer que a gente não tinha nem para uma cadeira de rodas. Para levá-lo da sala para o quarto, ou do quarto para a porta da rua – onde ele gostava de beber sua garrafa de vinho tinto vendo passarem a tarde e seus amigos –, meus irmãos tinham adaptado as rodas de um velho triciclo na poltrona. O triciclo tinha sido o primeiro presente de páscoa do meu irmão mais velho e as rodas não aguentavam muito o peso do meu pai, dobravam, e era preciso ficar consertando tudo o tempo inteiro.

E a minha mãe? Bom, minha mãe, depois do acidente, abandonou meu pai. Abandonou meu pai e nos abandonou, os seus cinco filhos. Assim, num vupt! Por isso lá em casa meu pai tinha nos proibido de falar dela; da “sirigaita”, como a chamava com desdém.

“Não me falem dessa sirigaita” – dizia ele, quando algum de nós, sem querer, deixava escapar a palavra mamãe.

Depois, entrava no silêncio e a gente levava horas até conseguir tirá-lo de lá.

[...]

Devo confessar que nunca imaginei que seria a vencedora do concurso de quem contava melhor um filme. É que meu irmão Mirto, o segundo, apelidado de Pássaro, que em casa era o responsável pelas compras, era o favorito de todo mundo. Ele sempre foi alegre e falastrão e passava o dia contando coisas que aconteciam com ele; tinha muito senso de humor.

Já meu irmão Mariano, o mais velho, que por causa de sua gagueira era chamado de Caterpillar – ele se encarregava de cozinhar, apesar de ser o mais inteligente de todos, e “mais sério que cabo de polícia”, como dizia meu pai –, não tinha nenhuma possibilidade, por causa de sua fala quebrada. O coitado tinha começado a gaguejar quando nossa mãe foi-se embora.

Meu irmão Manuel, o terceiro (era quem cuidava da limpeza), nem gostava muito de cinema. Para ele, o que mais importava no mundo era o futebol; era um peladeiro impenitente; suas partidas duravam o dia inteiro, o primeiro tempo de manhã e o segundo de tarde, com um breve intervalo para o almoço. Por causa de seu hábito de fazer um montinho de terra cada vez que ia chutar a bola, foi apelidado de Morrinho.

No deserto, todo mundo exibia com orgulho a condecoração de um apelido; quem não tinha apelido era um nonato, um zé ninguém, não existia.

Meu quarto irmão, Marcelino, o Cabeça de Livro, tinha alma de artista. Gostava de desenhar e pintar com lápis de cor. Em casa era mais para o calado, gostava mais de ouvir que de falar. E sua única tarefa era tirar o lixo.

Depois vinha eu, e, por ser mulher, ninguém dava um tostão por mim. Eles achavam que as mulheres só prestavam para fazer as camas e lavar os pratos – daí que eu cuidava da casa – e por isso não tinha a menor chance. Acontece que havia três coisas que me davam vantagem em cima deles, embora nem eu mesma soubesse. A primeira é que eu devorava os quadrinhos de Hopalong Cassidy, de Gene Autry, de Kid Colt e todos os heróis do Velho Oeste, e eles não liam nada. A segunda é que eu era louca pelas novelas de rádio, uma paixão que tinha herdado da minha mãe, que, comigo nos braços, jamais perdia um capítulo de Esmeralda, a filha do rio. E a terceira era uma coisa que até papai ignorava: quando eu era muito pequena, minha mãe me fazia dormir contando para mim filmes românticos – os seus favoritos –, coisa que não fez com nenhum dos meus irmãos.

“Essas coisas são mais nossas, das mulheres”, dizia ao me dar uma piscada de cumplicidade que eu adorava. 

O primeiro a ir ao cinema foi meu irmão Mariano, o Caterpillar. Sua narração foi um desastre. Naquele dia passou um de guerra – alemães contra norte-americanos –, e a única coisa que se entendia e saía emendado da boca do pobrezinho era o matracar das metralhadoras. E a mímica. Sua mímica era genial. Eu acho que nos tempos do cinema mudo ele teria sido muito bom.

Na vez do meu irmão Mirto, o Pássaro, passaram um de índios, com Jack Palance. Sua narração foi extraordinária. O galope dos cavalos, os tiros, os gritos dos índios, os sinais de fumaça. A gente até achava que estava ouvindo o assovio das flechas passando sobre nossas cabeças, zuuuummm! A única coisa ruim era que Mirto contava tudo na base de “babaquices” e “cagadas”:

“Então, quando o babaca sacou do revólver e atirou na cabeça da babacona, deu uma tremenda cagada porque os outros babacas nem cagando iam deixar que cagassem neles daquele jeito…”.

Manuel, que até que contava direito, contou um filme de vampiros. Acontece que se perdeu por amor. Aos doze anos, estava apaixonado pela filha do dono da loja mais sortida da Mina – era o único dos irmãos que namorava –, e passou a hora e quarenta minutos que durou o filme abraçando a menina, que gemia de medo.

Já com meu irmão Marcelino aconteceu o cúmulo da má sorte. Calado por natureza – “desse menino, é preciso arrancar as palavras com um saca-rolhas”, dizia minha mãe quando morava com a gente –, na vez dele caiu O velho e o mar, um filme quase sem fala.

Sua narração só durou cinco minutos.

Duas semanas mais tarde chegou, enfim, a minha vez, a vez da irmã menor, Maria Margarita, M M, como às vezes meu pai me chamava. Embora eu não tivesse apelido oficial, sabia que pelas costas alguns meninos me chamavam de Maria Machona. O apelido, é verdade, não era muito refinado, mas se observarem bem verão que é composto por duas palavras que começam com a letra eme.

Durante essas duas semanas chegaram vários filmes bons, e alguns muito bons, mas não houve dinheiro para comprar a entrada. Eram meados do mês e mal dava para comer e para a garrafinha de vinho de meu pai.

“A gente tem que esperar o pagamento da pensão”, dizia ele. E aconteceu que justo no dia do pagamento apareceu no anúncio do cinema nada menos que Ben-Hur, o filme que todo mundo no povoado esperava com ansiedade.

Meus irmãos ficaram loucos.

Todos queriam ir ao cinema. Ou pelo menos que o Mirto fosse, já que até aquele momento tinha sido quem melhor havia contado um filme.

Mas meu pai, que era um homem justo, se negou.

“Agora é a vez de Maria Margarita e quem vai é a Maria Margarita.

E ponto final”.

O filme durou três horas. Chorei mais que Sara García, a veterana atriz do cinema mexicano. Eu nunca havia gostado tanto de um filme. Depois soube que, além de ser tão longo, tinha sido o filme mais caro da história. E que havia ganhado onze prêmios Oscar. E além de tudo, Charlton Heston era um dos atores de quem eu mais gostava.

Cheguei em casa com os olhos vermelhos. Todos me esperavam com grande expectativa. Tomei em silêncio a xícara de chá, me pus na frente deles, e sem que meus joelhos tremessem nem nada, comecei a minha narração.

Foi então que alguma coisa se apoderou de mim.

Enquanto contava o filme – gesticulando, dando braçadas, mudando a voz – ia como que me desdobrando, transformando, convertendo-me em cada um dos personagens. Naquela tarde fui Ben-Hur, o jovenzinho. Fui Messala, o malvado do filme. Fui as duas mulheres leprosas que Jesus curou.

Fui o mesmíssimo Jesus.

Eu não estava contando o filme, eu estava atuando o filme. Mais ainda: eu estava vivendo o filme. Meu pai e meus irmãos me ouviam e olhavam para mim de boca aberta.

“Essa menina é uma artista completa”, comentou meu pai quando, esgotada até a última gota, acabei de contar o filme.

Ele e meus irmãos pareciam estar flutuando.

E estavam com os olhos marejados.

Aquela narração, porém, não foi suficiente para me dar o título. Meu pai declarou empate: meu irmão Mirto e eu tínhamos sido os melhores. E como era um democrata convicto, disse que aquela questão ia ser resolvida através das urnas. E em votação secreta.

Mirto seria o candidato número 1.

Eu seria a candidata número 2.

Foram cortados quatro papeizinhos iguais, distribuídos entre os votantes (os candidatos não tinham direito a voto). Cada um escreveu o número do seu candidato e depois depositou o papelzinho num cone de papel.

E veio a contagem.

Dois votos para meu irmão e dois votos para mim (eu intuí que meu pai e Marcelino tinham votado em mim). Para desempatar, meu pai decidiu fazer o que era mais justo e razoável: nós dois iríamos, juntos, ver o próximo filme. E quem contasse melhor seria o vencedor.

Fomos então ver juntos um filme mexicano carregado de canções; se chamava Guitarras de medianoche e era com ninguém menos que Miguel Aceves Mejía e Lola Beltrán, duas das vozes que mais soavam nos bares do deserto. Meu irmão contou primeiro, e com a mesma graça de sempre. Principalmente quando imitava o sotaque mexicano.

Acontece que eu, que também dominava o tom da fala dos mexicanos (tantos tinham sido os filmes deles que eu tinha visto em minha curta vida), além de contar o filme descrevendo as paisagens e tudo, de repente desandei a cantar as canções interpretadas no filme (de tanto ouvir nos alto-falantes dos bares, sabia todas elas de cor). Eles, que nunca tinham me ouvido cantar, acharam estranho que eu cantasse. E que cantasse tão bem.

Até para mim foi uma surpresa.

Meu pai ficou deslumbrado. Principalmente quando cantei No soy monedita de oro, uma das suas canções favoritas. Foi quando o democrata se esqueceu de votos e plebiscitos e me declarou ganhadora absoluta.

“E ponto final!” rugiu ele quando Mirto quis insinuar um protesto. 

E assim me transformei oficialmente na contadora de filmes lá de casa.



Nota do blog:

[*] O nome da narradora é Maria Margarita, mas ela se deu o pseudônimo de Fada Docine, ao se tornar famosa na sua aldeia como contadora de filmes.



(A contadora de filmes; tradução de Éric Nepomuceno)


(Ilustração: Alexander von Wagner (1838-1919) - The Chariot Race, c.1882)